Ao ler O meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos, que peguei emprestado na biblioteca da escola, a minha idade oscilava entre um picolé de jaboticaba e um filme de Mazzaropi na sessão da tarde na tv, não tenho certeza. Nunca tive certezas, por sinal. Ao ler o livro citado me dediquei ao meu primeiro amor platônico — um pé de goiaba de porte médio, inquilino no quintal da casa. Goiabas vermelhas, e não brancas ou araçás.
Nos galhos da árvore, lia, devorava, amava as estórias do Sítio do Picapau Amarelo. Monteiro Lobato me sentenciou a pena, prisão, cruz e delícia, vida afora: o mundo da literatura. País, município, bairro, rua onde ainda moro. Na tarde em que caí do “Meu pé de goiabas vermelhas”, quebrei, quebranto, o braço direito — o mesmo que equilibrava A chave do tamanho. Junto ao gesso no punho, ficou na pele talvez a minha única certeza: os livros, a poesia.
Sempre fui na escola o moleque magrelo, tímido, alemão-da-água-doce-deu-um-pum-e-se-borrou-se, que tinha medo da mulher-de-algodão que morava no banheiro. E se refugiava na biblioteca, fuçando as lombadas à procura de títulos e sonhos. Em uma dessas buscas, li e suspirei: Perto do coração selvagem — Clarice Lispector!
Levei pra casa e: páginas lidas noite adentro. Entendia, não entendia, entendia, não entendia, malmequer, bem-me-quer. O bem-me-quer venceu. A epígrafe do livro de Clarice Lispector retirada de Retrato do artista quando jovem, de James Joyce, virou meu epitáfio: “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida.” A minha criança acabara de ser sepultada sob a goiabeira.
Clarice Lispector me levou a James Joyce, Joyce a Virginia Woolf, as estantes da biblioteca escolar eram muito desarrumadas, e eu, desorientado, cheguei ao Crime e castigo de Dostoievski, passando pelo Rio de Janeiro de Machado de Assis, a França de Flaubert e Stendhal, ao sul de Érico Veríssimo, voltando à misteriosa Clarice.
E Cecília Meireles?
Os trocados para a merenda não saíram do bolso da calça de tergal que compunha o horrível uniforme colegial, durante semanas. Foram vários picolés, fantas uvas, pão com salame, economizados.
E Cecília Meireles com isto ou aquilo?
Entrei, depois de muitos olhares enamorados, em uma livraria, suando, comprei meu primeiro livro: Mar absoluto, Vaga música. Dois títulos em um só. O livro de Cecília só sobreviveu, por alguns anos, devido à providência de uma de minhas irmãs ao encadernar a capa com papel aveludado cor vinho. Meus dedos quase que eram páginas diárias das poesias de Cecília. Cecília Meireles me apresentou cordialmente a Emily Dickinson. A partir daí fui colecionando estes amigos, estas amigas, esses ou estes, onde ou aonde, nunca vou saber, não acumulo certezas (como afirmei no início).
Não sei das minhas influências. Quando li os poemas do americano E. E. Cummings quase desisti. Alguém já fazia, há muito, com perfeição o que eu pretensiosamente, adolescente, intencionava.
Prefiro parar por aqui com estas confidências literárias, que começam a doer. Antes de recolher-me à minha insignificância, peço permissão, peço perdão a você, para, cabotino, citar trecho de um poema meu. Acredito que vá complementar este pequeno e incompleto relato de livros, de literatura, de vida, vida “que lateja como meu coração craquelê / a suavidade que me resta se faz estilizada / é a parte da memorabilia do meu coração resguardado”.
[In revista Você, UFES/SPDC]
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Sérgio [Luiz] Blank é poeta natural de Vitória, ES, e nasceu em 1964. Publicou diversos livros de poesia, alguns reeditados recentemente. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)