Quando estou de plantão noturno, os casos que mais ocorrem são os de viciados em tóxicos. Isto me deprime, meu irmão Lauro era um deles, Deus o tenha em bom lugar.
Naquela noite a Rádio Patrulha trouxe um jovem classe média alta, envelhecido precocemente. Qualifiquei-o, era de uma gente antiga de Cariacica, os Pereira, e ia mandá-lo para o banho de água fria, procedimento de rotina, quando Geraldo Martins Pereira, o jovem, tartamudeou palavras que a custo entendi:
— Doutor, Mirela não se matou…
O nome era estranho, nas não me era estranho. Trouxe-me à lembrança o caso daquela moça da Praia do Canto que pulou do décimo andar de um edifício, arquivado como suicídio.
Para mim, a dúvida sempre existira. Quem vai suicidar não arruma as malas tão meticulosamente como ela o fizera. Na época a história foi primeira página dos jornais e a manchete mais bombástica foi: “O suicídio da bela italiana…”
Depois do banho frio, a história veio em pedaços, porém coerente. Resumo-a, assim:
“Foi no tempo em que começou a extração de mármore e granito no Estado. Deixei meu emprego na Eletrônica G. R., e fui trabalhar numa firma italiana, exportadora, onde ganhava muito mais. Era assistente da diretoria, nome pomposo, subordinado ao Sr. Gadioli. Me topou logo, pois eu sou oriundo por parte de mãe. Mas o que eu era, na verdade, era um moço de recados, ordenança do exército burocrático, um pau para toda obra.
Um dia (maldito dia) Gadioli me disse:
— Pereira, vai lá no meu apartamento e traz a pasta preta que está no meu escritório…
Peguei o carro da firma (eu era também motorista) e me mandei para um daqueles prédios novos, em frente à praça dos Namorados.
Mirela é que me recebeu. Quinze anos? Dezoito anos? Calça blue-jeans. Malha ressaltando dois cabritinhos pontudos. Carinha de anjo…
O pai já telefonara, ela estava com a pasta na mão. Nem me convidou para entrar, eu um subalterno. Mas tantas vezes voltei lá que passei a bater sempre um papinho com a menina. Perguntei-lhe pela Itália. Num português delicioso, com sotaque, disse:
— Eu sou italiana, mas não me lembro da Itália. Nós viemos do Egito. Onde meu pai tinha uma exportadora, que fechou depois da morte do rei Farouk…
Para mim foi amor à primeira vista. Sonhava casar com a italianinha. Dona Francesca, a mãe, raramente aparecia. Eu sempre tomava uma coca-cola com a menina.
Fizemos uma grande exportação de mármore, por incrível que seja, para Carrara, na Itália, cujas encostas forneceram o mármore dos mais belos monumentos renascentistas.
Houve um coquetel comemorativo no Cerimonial Brasília, aquele de Bento Ferreira. Coisa muito chique. O senhor se lembra, não? Eu vi Mirela de longe. Dissera-me, antes, que era a primeira festa noturna a que comparecia. Parecia uma artista de cinema.
Uma noite eu estava fazendo hora próximo a uma das boates de Camburi, quando, surpresa minha, vi entrar um vulto que era tal e qual Mirela. Era ela sim. Confirmei na saída, nos braços de um “pinta brava”. Não acreditei em meus olhos… Mas as risadas ébrias da moça confirmaram que era ela, sim.
No dia seguinte, logo cedo, telefonei para o apartamento do Gadioli. D. Francesca atendeu e gentilmente me disse que a filha dormira na casa de uma colega, onde fora estudar para as provas…
Passei a ser, de Mirela, a sombra. Segui-a noite após noite, sufocado pelo ciúme. Estava sempre estudando com uma coleguinha, no Barro Vermelho. O gigolô, descobri, era um tal de Carlos Bonzo, um bandido. Entrava com ela nos bares e saía sozinho… Mirela, moça de programa, não me conformava. Pensei em dar um telefonema anônimo… Uma carta…
Não tive coragem. Eu, doutor, ainda pensava casar-me com Mirela. Recuperá-la.
Mas, no dia fatal, encontrei-a muito excitada. Disse que precisava falar com ela.
— Outro dia, Gerardo, assim me chamava ela…
Desabafei:
— Você está destruindo sua vida! Quando a beleza se for…
Usei todos os comuns argumentos em casos semelhantes…
Fui à geladeira, buscar uma coca-cola para ela, à porta havia imantado um bilhetinho: “Mama, desculpa. Mais tarde a senhora compreenderá. Mirela.”
Tive a certeza de que ela ia fugir.
— Case comigo, Mirela, supliquei.
Debochou de mim:
— Você ganha em um mês o que eu gasto em um dia…
E confessou:
— Vou para Londrina, no Paraná, trabalhar numa tevê de lá… Quer ver o contrato?…
Apaziguei-a. Desejei-lhe felicidades. E, aproveitando de sua distração, lancei-a no abismo, doze andares abaixo. Desci pela garagem como sempre fazia. Ninguém me viu. Ainda alucinado, vi uma pequena multidão que se formava em torno ao corpo de minha amada.
Na manhã seguinte os jornais noticiaram o suicídio. A gravidez de dois meses, que desconhecia. O bilhete que justificava o ato: “Mama, desculpa. Mais tarde a senhora compreenderá. Mirela.”
Só o senhor, doutor, se aproximou da verdade. Por isto estou lhe confessando tudo.
Deixei o emprego. Fui caindo, caindo, num túnel sem fim. Me prenda, seu delegado, me bata, me mate, faça comigo o que quiser, porque não posso trazer de volta Mirela, Mirela do Egito, que eu matei, e me matei também…
[Reprodução autorizada pelo autor.]
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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)