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Na montanha, etc.

Está na montanha e sabe que aqui as noites estão carregadas dos mistérios da mata ao redor e de perigos invisíveis. Um local também carregado de lembranças. Não chega a ouvir as vozes dos animais e dos ruídos dos perigos invisíveis, mas sabe que além do limite até onde as luzes alcançam é o território da natureza e de seus habitantes.

Continua olhando os postes de madeira fincados em linha quebrada ao longo da rua. Insetos entram mas logo saem do halo que se forma em redor das lâmpadas de iluminação pública. No lado esquerdo é o regato silencioso que passa pela ponte. No lado direito, a fileira de casas com suas luzes apagadas. Exceto uma.

A casa iluminada tem largas vidraças e dentro dela há pessoas conversando. Tomam café em pequenas xícaras de louça ou carregam copos de refrescos com seus canudos de plástico. Sorriem muito e parecem alegres. Folheiam revistas e livros que estão dispostos em prateleiras envernizadas. Sim, trata-se de uma livraria inaugurada há pouco. Uma livraria pulsando na fria noite da montanha. “Por favor, à vontade. Entrem, sou a Lilia, a proprietária. Fiquem à vontade, bem-vindos ao lançamento do livro.” Ficamos à vontade nessa livraria da cidade de Venda Nova do Imigrante, no Estado do Espírito Santo.

A emigração para os territórios da livraria por parte da população local tem qualidade. É formada, como de praxe, por pioneiros que vêm assuntar a novidade. Explorar o novo território que se abre em pleno coração da montanha. Como nos tempos d’antanho, quem traz a cruz de Cristo para fincá-la entre os livros é um padre, o padre Cleto, cuja entrada na livraria é saudada com muitos ós de aprovação. Ele chega apoiado em seu cajado de pastor octogenário e numa alegria adolescente. Chega também o secretário Gervásio da Prefeitura, acompanhado do Jovelino, da Secretaria de Cultura local. Ivantir e Maje, Glemar, Eugênio, Ricardo, Ivanyr e Maria Eugênia fazem parte do clã Borgo, que subiu a montanha para o lançamento do livro. Outros chegam e vão se incorporando aos rituais e gestos do mundo das livrarias de qualquer parte.

O escritor Francisco Grijó, professor de literatura, volta do andar superior com um ar de surpresa. Diz que ali é a redação do jornal da cidade e diz também que lembrou da redação da Águia de Winesburg, daquele escritor, como é mesmo o nome dele? Claro, é isso mesmo, digo eu. Mas o escritor, como é mesmo o nome dele? O branco da neblina que se vê lá fora entrou em nossas cabeças e só saiu quando, na estrada, na viagem de volta, apareceu o nome. Claro, Sherwood Anderson, naquela tradução da gloriosa Editora Globo de Porto Alegre. Winesburg, Ohio, um objeto arqueológico editado na metade do século passado. Um livro que influenciou, confessadamente, a ninguém menos que William Faulkner. Pois é, esse Anderson, que começou a publicar suas histórias, como diz um de seus comentaristas, à margem da ilusão infantil do otimismo ante acontecimentos desagradáveis, mas encontrando também dentro desses acontecimentos brechas para o exercício da esperança e da beleza. Além disso, dizendo coisas como as que leio agora numa entrevista de jornal do cineasta Domingos de Oliveira, a propósito do filme Invasões bárbaras, ou seja, na ideia de que a arte é um instrumento de expansão do conhecimento, de evolução, enfim. O prefaciador do livro de contos de Anderson menciona que ele publicava suas histórias em pequenas revistas cuja pobreza lhes permitia manter as convicções. Nessa esteira, vem à memória a revista Você, da Ufes, onde o entusiasmo do Reinaldo Santos Neves e do Joca Simonetti permitiam a mantença dessas convicções em meio a uma franciscana pobreza material. Mas isso foi sendo cogitado na viagem de volta, junto com a lembrança de quando comprei esse livro de Anderson em Cachoeiro de Itapemirim em 28 de março de 1952 (fui conferir).

O que estaria fazendo o Sherwood Anderson nas prateleiras daquela pequena livraria, falando da “inquietude americana?” O Winesburg, Ohio, traduzido como A grande mentira, modorrava lá na modesta livraria da beira do Itapemirim na companhia de outros editados pela antiga Globo gaúcha, como Vitória, de Conrad, Rua principal e O figurão, de Sinclair Lewis, Contraponto, de Huxley, Retrato do artista quando jovem, de Joyce, Sparkenbroke, de Charles Morgan, Gog, de Giovanni Papini, e outros que tais. Todos também em modorra, vivendo sob a indiferença de alguns, o que acabou sendo um bom negócio para mim. Os livros estavam sendo oferecidos em liquidação e adquiri uma pilha deles, inclusive A estrada do tabaco, que falava da miséria dos EEUU durante a recessão dos anos trinta. Paguei um preço quase simbólico pelos rejeitados e vários ainda estão em minha estante, inclusive o Luz de agosto, de Faulkner. Em respeito à senectude desses livros, nem os folheio pelo risco de suas páginas se desfazerem. Mas ali estão, bravos amigos de jornada. Cumprimento-os com respeito em minhas olhadas pelas estantes onde há muitos outros livros novos e bons, mas nenhum mais amado do que os velhos marcos literários, comprados a preço de banana numa tarde antiga em Cachoeiro.

Aquele livreiro superestimou a procura e acabou comprando mais exemplares do que o necessário. No entanto, o fato de existir uma livraria em Cachoeiro de Itapemirim, oferecendo títulos de vanguarda literária no início da metade do século passado, pode ser uma das pistas para a existência de tantas cabeças brilhantes em nossa Princesa do Sul.

Mas este é o momento de desejar à Lilia sucesso com a venda de seus livros na Folha da Terra de Venda Nova. Desejar também que faça suas encomendas de livro de acordo com a procura que vai ocorrer e que já está ocorrendo. Se errar (só um pouco) na expectativa de venda de alguns títulos do catálogo, que seja preferencialmente em livros seminais. Assim, poderá restar-lhe o consolo de que, um dia, os livros não vendidos sejam colocados em liquidação. E então, quem sabe, talvez apareça um jovem qualquer de bolso fraco que compre esses livros a preço de banana. Alguém que, através da literatura, possa ir descobrindo algo mais “sob a superfície das vidas” ou, mais modestamente, descubra um dos melhores prazeres que a vida oferece.

[Crônicas de 2004.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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