A roda do carrinho de mão passou a ranger alto demais e isso poderia desagradar a Shirley Temple. Apanhou a lata no bolso da calça e espalhou graxa no eixo de seu potente veículo. A partir daí a viagem foi tranqüila e Shirley continuou a dormir encostada no saco de milho.
Foi chegando ao sítio do Wruck, aquele que tinha laranjas pendendo até quase o meio da estrada. Estacionou o carrinho, tirou o canivete do bolso e pegou uma laranja seleta bem amarela. Depois, pegou outra. Mas Shirley acabou acordando por causa da cantoria de um galo sentado numa cerca de arame farpado. Deu uma laranja para ela e ela gostou porque também sabia que, no mundo, não havia laranjas mais doces que as do sítio do Wruck. O momento era muito bom para agradá-la e acabar com as brigas dos últimos dias. Shirley Temple, sua namorada secreta, vinda dos filmes de Hollywood e, no momento, viajando com ele em seu carrinho de mão, era muito ciumenta. Então e por isso, com surpresa, viu as brigas recomeçarem. Ela sentou-se no carrinho, jogou a laranja em cima dele e ficou apontando o bolso de sua camisa.
“O que é esse JC bordado no bolso da camisa”?
Mas Shirley nem quis ouvir suas respostas. Saltou do carrinho e escapuliu para o outro lado da estrada. Subiu o barranco e, quando ia entrando na capoeira do morro, defronte, ainda pegou umas amoras e as jogou em sua direção.
Ficou preocupado. Deixou o carrinho na beira da estrada não sem antes dar um tapa no desastrado do galo que continuava em cima da cerca. O galináceo (nome que tinha aprendido na semana passada na classe de linguagem) saiu apavorado jogando pena para todo o lado e foi se esconder numa touceira de capim.
Subiu o morro, deu uma olhada na gruta de pedra onde ela havia se escondido depois daquela briga do mês passado, mas nada de Shirley.
Sentou-se numa pedra e aproveitou para dar uma olhada lá em baixo onde sua casa era a primeira logo antes da mata.
Sua mãe devia estar fazendo café porque a chaminé começou a fumegar. Deu vontade de estar lá. Lembrou do pão mimoso quente onde colocava a manteiga que escorria pelas gretas da massa e, antes que caísse na toalha, botava na boca e tomava uma golada de café. Café que ele torrava no quintal numa lata de querosene cortada pelo meio, varada por um cabo de vassoura. Fazia uma fogueira, amarrava a lata em cima de uma trempe e balançava a lata pra lá e pra cá. Dali uns quinze minutos o aroma de café torrado se espalhava pelo quintal e invadia a casa. Sua mãe sabia exatamente o momento de tirar a lata do fogo para o café não queimar. Dava o aviso lá mesmo de dentro da casa. Dessas coisas que só as mães sabem.
Ouviu um barulho de galhos secos quebrados e deixou de pensar em sua casa. Podia ser a Shirley. O barulho foi aumentando e dali a pouco ele olhou bem e, quase sem acreditar, viu-se frente a frente com o “Mão Pelada”, o desgraçado do bicho que parecia um cachorro mas o que era mesmo era ladrão de galinha.
A última proeza do “Mão” foi com a pata que resolveu chocar no mato. Durante um tempo seu pai pensou que a pata tinha fugido porque deixou de aparecer no quintal por vários dias. Ou então porque foi levada pela enchente, falando de uma enchente que fez o córrego dos fundos do quintal vir até perto do jirau de chuchu. Mas não foi nada disso. Dias mais tarde a pata apareceu no terreiro, muito magrinha. Deu fubá molhado com água para ela, que logo depois pegou a estrada de volta, essa que passa perto do córrego e sobe o morro. Com cuidado para a pata não perceber começou a segui-la e acabou descobrindo que ela estava chocando uma ninhada de uns dez ovos numa moita de capim gordura dentro da mata. Passaram-se dias. Mais do que os necessários para que os patinhos nascessem. Falou com seu pai que a pata estava demorando a reaparecer e então eles foram juntos ao local do ninho. Chegando lá viram pedaços da pata, cheios de formigas e muitas penas espalhadas. Dos patinhos, nem sinal. Seu pai disse que aquilo havia sido obra do “Mão Pelada” que andava rondando por ali há vários meses. Por uns três dias, depois que o sol se punha mas antes que escurecesse, acompanhava o pai para caçar o “Mão”. Um dia o encontraram. O pai atirou nele com a “fogo central” mas, infelizmente, não acertou no bicho, que saiu correndo no meio da fumaceira e pegou uma picada que dava num matacão, onde desapareceu. Voltaram ainda por uns dois dias e depois o pai desistiu.
Puxa, e agora, ele ali. O bicho outra vez na sua frente com uma pose de desafio ou pelo menos era o que ele achava. Na falta de uma “fogo-central” apanhou um galho grosso para dar uma cacetada na cabeça do “Mão” e acabar com a raça dele. O quê? O canalha simplesmente virou para o outro lado e sumiu por trás do matacão outra vez. Correu para lá, procurou mas nem sombra do bicho assassino.
Continuou sentado na pedra pensando em sua vida e em todas aquelas coisas em que se pensa quando se está sozinho no meio do mato. Foi quando olhou para o lado e viu bem perto, ao alcance de sua mão, um baita de um sabiá-laranjeira. Nunca tinha visto um passarinho tão de perto. Ainda mais um sabiá. Ficou bem quieto para não espantá-lo. Uma das alegrias de sua vida era ouvir o sabiá cantando, pousado sempre no mesmo mourão de cerca, próximo da cozinha, depois de uma chuvarada. Deixou o sabiá voar e ficou acompanhando seu vôo em direção às árvores mais altas e foi aí que viu que o sol já estava bastante deitado e não demorava a descer por trás do morro do Bautz.
Levantou-se da pedra e se convenceu que era melhor usar outra tática com Shirley Temple. Fingir indiferença.
Voltou para o carrinho de mão estacionado ao lado das laranjeiras do sítio do Wruck e seguiu caminho para o moinho do Schlenz. Toda quinzena ia entregar um quarto de saco de milho e receber de volta outro tanto de fubá moído naquele seu moinho d´água que produzia o melhor fubá de toda a região, segundo seu pai, e dava para fazer umas polentas gostosas.
Como sempre, o Schlenz, muito seco, não disse uma só palavra. Ele também não falou nada. O Schlenz pegou o milho, trouxe o fubá e ele pagou com duas moedas de prata de quatrocentos réis.
Voltou para casa.
Tomou banho com sabonete Eucalol. Ao tirar a camisa viu as letras JC bordadas em seu bolso e lembrou-se das ciumeiras da Shirley. JC eram as iniciais do nome de seu grupo escolar e não as iniciais de Joan Carroll, a outra menina artista de Hollywood, rival da Shirley e motivo de suas ciumadas. Sem razão. Jurava.
Mas pensou também que afinal não seria diferente daquela vez. Shirley reapareceria ao lado de sua cadeira “pata-choca” onde, depois do banho, voltaria a ler Tarzan, o invencível e ela não teria medo de ficar sozinha nas selvas africanas porque sabia muito bem que ele, como sempre, a protegeria naquele ambiente selvagem.
[Crônicas publicadas no livro Novas crônicas de Roberto Mazzini, da “Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas”, em 2003.]
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)