Os registros da história cachoeirense assinalam o Capitão Henrique Deslandes como o inaugurador da navegação a vapor do rio Itapemirim. No entanto, dois ex-presidentes da Província capixaba dão-nos, em relatórios, informações diversas. O mais antigo, José Fernandes da Costa Pereira Júnior, escreveu, em 1863, que em virtude da dita navegação ter sido autorizada por lei, no ano anterior, ele firmava contrato com o Major Caetano Dias da Silva, que se obrigava a fazer duas viagens por semana, da Barra Cachoeira (foi assim que escreveu), e vice-versa, com os pontos de parada intermediários que fossem convencionados pelos fazendeiros. Deveria, ainda, rebocar os navios que demandassem à barra e levar passageiros para bordo do Juparanã. Este vapor, de 120 cavalos, que fazia a cabotagem da Corte a Vitória, em pouco mais de 36 horas, pertencia à Companhia Espírito Santo & Campos. Demorava-se, ordinariamente, cinco horas na Barra do Itapemirim. Ele acabou num trágico incêndio, em 1871, nas proximidades de Campos, dando notoriedade ao seu imediato, Joaquim Calixto Ferreira, que, num gesto de bravura, repetiu a façanha do capixaba Caboclo Bernardo e, nadando até a terra, salvou, por uma corda, amarrada à cintura, dezesseis passageiros.
O outro ex-presidente, Eduardo Pindaíba de Matos, solicitava a 3 de setembro de 1864, ao Ministro e Secretário do Estado dos Negócios do Império, a condecoração (Comenda de Cristo), para Caetano Dias da Silva, informando textualmente: “… Tendo chegado no mês passado o vapor comprado à custa do dito cidadão para dar início à dita navegação, para o que ainda está ele despendendo largas somas com a desobstrução do rio e edificação de armazéns, trapiches, e outras obras dispendiosas…”
Uma impressão errônea que ficou aos pósteros é a de que, no século passado, o rio Itapemirim tinha maior volume d’água, crença reforçada pela existência, outrora, das pujantes florestas.
Nos primórdios de Cachoeiro, isto é, em 1868, o seu vigário Manoel Leite Sampaio Melo relatava ao presidente da Província que o rio Itapemirim, nas ocasiões das secas, forçava os canoeiros a levarem pás e enxadas para irem abrindo caminho em valas, minuciando: “A razão é ser ele todo cheio de voltas e bastante entulhado de paus; tem meses que fazem as viagens em quatro dias e outros em oito e nove.”
Dez anos depois, ou seja, em julho de 1878, a Câmara Municipal do Cachoeiro relatava, em ofício, ao presidente da Província: “…Na época das grandes secas, como sucede atualmente, não há em muitos pontos do rio a profundidade de dois palmos d’água, sendo seu leito tão arenoso que os canais abertos em cada dia, pela manhã, com o auxílio de enxadas, acham-se já obstruídos à tarde.”
A canalização só seria proveitosa com custosas e demoradas obras, as quais superavam os recursos então disponíveis.
O transporte por terra mantinha constante formigar de muares. As tropas vinham de Minas carregadas de toucinho, carne-seca, queijo e fumo, até o Alegre e o Cachoeiro, e voltavam com fazendas e sal de cozinha. Na época da estiagem (abril e outubro), quando a navegação se tornava tão dificultosa, os muares podiam atingir, em um dia, o porto da Barra, enquanto a navegação fluvial tartarugava por dois dias, rio acima, um percurso correspondente.
Mas, a despeito dos entraves, a via líquida gozava da predileção dos comerciantes e fazendeiros, porque, na estação chuvosa (novembro a março), quando as estradas viravam um tijuqueiro e se inundavam, ficando intransitáveis, a navegação era livre: os vapores rebocavam pranchas e faziam a viagem num espaço de cinco a oito horas.
Os negociantes mais fortes da Vila do Cachoeiro, bem como os mais abastados fazendeiros, possuíam, para transporte de mercadorias e do café, condução própria. O português Luiz Bernardino da Costa, um dos mais antigos comerciantes, no dizer do historiador Marins, tinha algumas pranchas. Uma delas, a Perua, era conduzida pelo mestre José Bento de Magalhães. Outros, como Gabriel Ferreira Pena ou o português Manoel José de Araújo Machado, negociante em alta escala, também mantinham embarcações fluviais.
Em balsas se exportavam madeiras, notadamente o jacarandá e a cabiúna. E havia os exímios conhecedores dos encachoeirados, das corredeiras, dos bancos de areia, disputados canoeiros, prancheiros e condutores de balsas, dos quais são recordados: Antônio Ferreira e os irmãos Manoel e João Severo.
As firmas do Cachoeiro também tinham barcos de cabotagem, que faziam o intercâmbio da Barra do Itapemirim com Vitória, Campos e a Corte: Deus te Ajude e Santa Bárbara, de Bernardino Ferreira Rios; Novo Destino, de Aurélio Jorge Quintais; Califórnia, dos Velascos; Querido e Desquerido, de Narciso da Costa Pinto; Leocádia e Tomásia, do Barão de Itapemirim; a escuna Safra, da fazenda do mesmo nome, e O Casaco de Ferro, de uma firma do Itabapoana. Tais percursos eram servidos pela Companhia Espírito Santo & Campos e pela Cia. de Navegação e E[strada] de Ferro Espírito Santo e Caravelas. Os vapores: Cores, Presidente ou Maria Pia realizavam, mensalmente, duas viagens, tocando até a costa da Bahia.
Pelo porto do Itapemirim, no ano de 1882, frequentado pelas aludidas embarcações, a vela ou a vapor, embarcavam e desembarcavam, em média, cem passageiros e quatorze mil volumes de cargas.
Ao findar a Guerra do Paraguai, o Capitão Henrique Deslandes, paranaense de Paranaguá, que lutara como voluntário, foi-se estabelecer no Espírito Santo, montando ateliê fotográfico em Vitória. De lá, transferiu-se para a Vila de Itapemirim, onde continuou como fotógrafo, exercendo, ainda, as profissões de dentista e mecânico. O progresso da região, aquele movimento crescente de cargas e passageiros, animou-o a pleitear, junto ao Governo, concessão para navegação a vapor do rio Itapemirim, tendo firmado contrato de acordo com lei provincial de 1872. Três anos decorridos, cuidou da inovação do contrato, “obrigando-se a estabelecer, até o dia 14 de junho de 1875, a sobredita navegação, fazendo, pelo menos, oito viagens redondas, mensalmente, e duas por semana, sendo sempre quatro consideradas por conta do governo geral”. O vapor teria o calado de dois palmos, no máximo; marcha nunca menos de oito milhas por hora; força de doze cavalos, no mínimo, e acomodações para vinte passageiros de lª e 2ª classes.
O Capitão Deslandes fez uma sociedade com Manoel Ferreira Braga (Braga & Deslandes), adquirindo, na Barra do Itapemirim, o trapiche de Silva Lima & Braga, cujo primeiro proprietário fora o Barão de Itapemirim. Somente a 3 de abril do ano seguinte ao compromisso firmado, era inaugurado o serviço, com quatro vapores: dois de rodas e dois de hélices. Pouco depois, foi providenciada a aquisição de mais dois vapores e uma barca de passageiros, e encomendado outro vapor na Inglaterra.
Muito embora o calado das embarcações atendesse ao especificado no contrato, nas grandes secas a navegação era completamente interrompida, durante meses. Por essa notícia do jornal O Cachoeirano, datado de 17 de junho de 1877, tem-se ideia real das dificuldades: “O vapor que veio buscar a mala do Correio para a Corte no dia 13, aqui chegou às 9 horas, tendo saído na véspera, da Barra. Encalhou em diversos lugares, por estar o rio com pouca água e ter o Cachoeiro, que faz esta viagem, maior calado que o Três de Abril, que na manhã do dia da saída foi encontrado submerso no porto da Barra, sendo ignorada a causa da submersão. No mesmo dia foi o Três de Abril posto a nado, e assim já poderá efetuar a próxima viagem.”
Quanto ao preço das passagens do Itapemirim ao Cachoeiro, até que não era caro: três mil réis, na 1a. classe, e mil e quinhentos réis, na 2ª As crianças, de quatro a doze anos, pagavam dois mil réis na lª e a metade na 2ª classe.
Os fretes obedeciam à seguinte tabela: cento e setenta réis por arroba ou pé cúbico e trezentos e cinqüenta réis por alqueire.
A acomodação dos passageiros é que deixava muito a desejar: era apertada na ré, com todo o desconforto. O vapor, por vezes desasseado, fazia da viagem um suplício. Arrastava-se pelos bancos de areias, ora encalhando, ora parando para consertar as máquinas, ora abalroando as margens ou os troncos de árvores caídas. Não raro, a viagem se interrompia em qualquer ponto do rio, para esperar amanhecer o outro dia. Enquanto isso, o percurso por terra podia ser transposto, a cavalo, no espaço de cinco a sete horas.
Tantos tropeços relegaram o vapor ao desprezo dos passageiros e do transporte de cargas, permanecendo quase que só para carregar as malas do Correio, que nunca chegavam antes do segundo dia em que eram desembarcadas na Barra.
O Capitão Deslandes, penosamente, esforçava-se em cumprir as condições do contrato, e a subvenção anual de seis contos de réis, que recebia da Província, não lhe deu ânimo a ir além dos meados do ano de 1881. Nessa época, obteve, do Governo, autorização para transferir o contrato ao negociante português Simão Rodrigues Soares, da Barra do Itapemirim. Soares conseguiu, dos cofres geral e provincial, a subvenção de dezoito contos anuais e reinaugurou, a 3 de abril do ano seguinte, a navegação, pondo em trânsito um novo vaporzinho Três de Abril. Leve, construído para viagens em qualquer seca, tinha 75 palmos de quilha, 14 palmos de boca e 3 de pontal, e o calado de 8 a 12 polegadas. Luiz da Mata Coutinho e Silva foi o seu mestre. Obedecia ao seguinte horário: saídas do porto da Vila de Itapemirim às cinco da manhã e partidas do Cachoeiro às nove horas da manhã.
Enquanto a navegação a vapor não realizava progressos, pelas condições desfavoráveis do rio, as firmas comerciais aumentavam o número de pranchas, balsas e canoas, ocupando, em 1892, mais de cem homens nesse tráfego. Havia, então, três movimentados trapiches de importação e exportação: Samuel Levy; Manuel A. Carneiro e L. Loiola. No ano seguinte, Francisco Finamore e Joaquim Aires adquiriram uma prancha de ferro, construída nos estaleiros de Campos, com 90 palmos por 20 de boca, o calado de 3 palmos d’água e capacidade para carregar 350 sacos de café. Em fevereiro de 1895, Joaquim Aires fazia anúncio, em página inteira de O Cachoeirano, de um armazém no bairro Bahia-e-Mjnas, com grande estoque e vendas por atacado, no sistema de “vender muito e ganhar pouco”: farinha de trigo, mandioca, açúcar, bacalhau etc., especializando-se na compra de café.
O Capitão Henrique Deslandes, espírito vanguardeiro e progressista, volveu o interesse para o transporte ferroviário, obtendo a concessão para construir, no Cachoeiro, onde passou a .residir, a primeira estrada de ferro, primeira, aliás, do Espírito Santo.
Para substituir uma velha fotografia do vaporzinho navegando o Itapemirim, que não me consta ainda existir, contento-me com os instantâneos, em poesia, que Valentim Magalhães divulgou, em 1888, na folha O Constitucional (lançada em seus primeiros números na Vila de Itapemirim e transferida para o Cachoeiro). São versos de três sonetos, bastante bucólicos:
Garças, marrecas, piaçocas voam,
Assustadas, grassando, pelos ares;
As rodas do vapor n’água ressoam.
Flutuam água-pés e nenúfares,
E ao fundo, no capuz dos nevoeiros,
O Frade e a Freira erguem-se, altaneiros.
[…]
Bufa do fumo o vômito violento,
Desenrolando-se em novelos brancos;
O vaporzinho corta as águas lento,
Às vezes esbarrando nos barrancos.
[…]
Clareia mais o dia o firmamento
Uns de pé ou deitados sobre os bancos
Os passageiros ‘stão na tolda, ao vento.
Surgem aqui e além velhas fazendas,
Engenhos a moer, brancas vivendas,
Casarões ermos, sem sinal de vida…
Eis, enfim, a Itabira e apresenta
Todo o espaço do alto dominando
Em que do Cachoeiro a vila assenta.
Raso, o Itapemirim vai-se alongando…
Pára o vapor, atraca na barranca,
E a vila surge, sossegada e branca.
O progresso ferroviário tornaria obsoleto e desprezado o demorado tráfego fluvial. Os trilhos da Estrada de Ferro Caravelas subiam o percurso do Itapemirim não navegável. E acabou aparecendo a Estrada de Ferro Itapemirim para cobrir o percurso da baixada. A 24 de novembro de 1890, chegava à cidade, no vapor Cachoeirano, a comissão de engenheiros, incumbida dos estudos preliminares da via-férrea Barra-Cachoeiro, da qual faziam parte o Dr. Pederneiras e o Dr. Caetano Rodrigues. Essa estrada viria promover o melancólico fim da navegação fluvial.
[In Crônicas de Cachoeiro. Rio de Janeiro: Gelsa, 1966. Reprodução autorizada pela família.]
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Levy Rocha nasceu em 14 de merco de 1916, em São Felipe, então distrito de São João do Muqui. Graduado em Farmácia, residiu em Cachoeiro de Itapemirim e no Rio de Janeiro, interessando pela história de seu Estado natal. Publicou vários livros. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)