Pedro, o escrivão, vinha com um maço de quiabos tirado da horta que plantara no quintal da delegacia quando dona Lenilda o avisou:
“Seu Pedro, tem gente querendo falar com o senhor.”
Era um mulato claro, com lábio leporino. Pedro introduziu-o em sua sala, ofereceu-lhe uma cadeira e deu-lhe a palavra.
“Eu vim recomendado pelo seu João Bonino.”
“É meu amigo do peito. Apreciamos a Nona de Beethoven com igual empolgação,” respondeu Pedro.
“Especificamente o que eu preciso é de uma orientação sua,” disse o recomendado de Bonino.
“Pode falar,” estimulou-o Pedro.
“Meu nome é Ezequiel e sou pastor da Igreja Ecumênica do Caráter Divino.”
“Há muito tempo que o senhor é pastor?”
“Especificamente há dois anos. A igreja foi fundada por mim e pelo Dr. Gervásio. Ele era ortopedista, mas largou a medicina para ser bispo.”
“Conheço muita gente boa que anda fazendo a mesma coisa…” disse Pedro, preparando-se para acender seu indefectível cigarro.
“Conheci Dr. Gervásio no ambulatório do Porto de Santana, onde eu era paramédico. Quando ele me convidou para fundar a igreja, aceitei a proposta e larguei o emprego.”
“Vocês foram os únicos fundadores?” perguntou o escrivão, em meio a um cogumelo de fumaça.
“Especificamente sim. Mas depois, para atrair os crentes, formamos um concubinato de ministros.”
“Concubinato de ministros?” espantou-se Pedro.
“Não é o coletivo de ministros?”
“O coletivo de ministros é ministério. Você está confundindo com cabido, coletivo de cônegos,” professorou Pedro.
“Sabe que agora é que aprendi a diferença?…” disse o outro.
“E a ação do ministério deu resultado?” interrogou o escrivão.
“Só eu consegui alistar mais de três mil pessoas.”
“Quantos filiados a igreja tem?”
“Especificamente mais de quinze mil.”
“E por que motivo você veio me procurar?”
“É que o Dr. Gervásio vendeu a igreja para um empresário da construção civil por dois milhões de reais. Grana paga no toco. Vendeu com tudo: galpão, camionetes, computadores, telefones e celulares, pastores e crentes. Eu fui incluído no negócio sem que o Dr. Gervásio me consultasse ou me desse qualquer participação na venda.”
“Os outros pastores também querem a parte deles?” quis saber Pedro, tirando os óculos de aros redondos para limpar as lentes com o lenço. Sem os óculos parecia que estava nu.
“Eles ainda não sabem de nada,” explicou Ezequiel. “Mas vão querer também. Veja, doutor: especificamente eu não sou contra o Dr. Gervásio vender a igreja, até porque é um direito que ele tem como dono dela.”
“Você não disse que fundaram a igreja juntos?”
“Fundar, fundamos. Mas todo o dinheiro veio do Dr. Gervásio. Eu dei apoio moral e contribuí com meu trabalho de pastor. Mas na hora da venda isso não vale nada?” lamentou-se Ezequiel.
“Acho que vale… Mas você pediu ao Dr. Gervásio alguma participação?” indagou Pedro.
“E o senhor acha que ele quer saber de conversa? Está fugindo de mim como o diabo da cruz. Já soube que vai até abrir outra igreja em Ecoporanga.”
“Pelo visto, o negócio é um maná,” disse Pedro, esmigalhando o toco do cigarro no cinzeirinho em forma de panela de barro.
“Especificamente é um negócio muito bom. E bom em todos os sentidos: dá dinheiro, dá ibope, dá voto para quem quer ser deputado, dá mulher…”
“Mulher também?” E as lentes dos óculos do escrivão luziram concupiscentes.
“Em penca! Elas procuram os pastores cheias de problemas. Aí, conselho vai, conselho vem, nasce uma roçadinha aqui, uma mãozinha boba ali, e da roçada mais a mãozinha vem uma bimbada. Eu chego a pensar que muitas crentes inventam problemas para poder transar.”
“E essas crentes também se queixam ao bispo?” inquiriu Pedro, sem que o outro percebesse a ironia da pergunta.
“Especificamente ele é o preferido de todas e ainda recebe dízimo especial. Aliás, graças aos dízimos nossa igreja cresceu desde o início.”
“A renda é boa?”
“Sem dúvida. Alguns fiéis reclamam, mas pagam. O senhor lembra daquele programa do Chico Anísio, com o pastor dizendo ‘vamos passar a sacolinha’? Especificamente é tal e qual. Na nossa igreja o dízimo rende uma base de oitenta mil reais por mês. Fora o que entra pela Rádio FM, que funciona há três meses tocando música evangélica vinte e quatro horas. Sacou o prejuízo que vou ter com a venda da igreja?”
“Mas você também participava da receita geral?” E eis Pedro a fazer contas mentais.
“Todo ministro participa. A igreja paga comissão sobre as prédicas da semana. Tem semana que especificamente eu fico rouco, de tanto que oro, porque o tempo que se prega a palavra do Senhor também conta para a comissão.”
“É uma espécie de… incentivo fiscal? Um fundapinho eclesiástico?” tornou a ironizar o escrivão.
“Dá para o churrasco dos amigos. Mas, então, doutor, o que o senhor acha que eu devo fazer?”
“No seu lugar eu entrava com uma ação trabalhista contra a igreja…” orientou Pedro.
“Não dá, doutor. O novo dono já me convidou para continuar como pastor, com carteira assinada e comissões garantidas. Não sou besta de perder a oportunidade. Além disso, numa ação contra a igreja eu não raspo nada do Dr. Gervásio…”
“Se é assim, meu caro, não tenho nada a sugerir… especificamente. Peça desculpas a João Bonino por não lhe ser de grande prestança. E use a palavra prestança, que ele vai gostar.”
“Não se preocupe, doutor, porque a prestança da lição eu já tirei.”
“É isso aí, meu amigo: Camões morrendo, Camões aprendendo.”
“Gostei do verso, doutor. E obrigado pela atenção.”
Quando Ezequiel saía, passou pelo delegado Digital que chegava à delegacia.
“Quem era o elemento?” perguntou o delegado a Pedro.
“Um pastor enganado por outro mais sabido. A propósito, Digital, topas fundar uma igreja evangélica?”
“Mais uma ?”
“Por que mais uma?”
“Porque já sou dono da Igreja Sacramental das Virtudes Eternas.”
“Você não perde tempo, hein, Digital?”
“Não é porque eu seje delegado de polícia que não sei que espiritualidade é espiritualidade e materialidade é materialidade.”
“Falou e dizeu, Chefe.”
“Não me chame de chefe que você sabe que eu não gosto.” E gozando Pedro: “Me chame de pastor!”
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)