Nelson de Albuquerque Silva no cais do avião, em Santo Antônio, Vitória, ES. Foto Álvaro Silva. 2002. |
Entrevista de 22/06/2002
Eu me chamo Nelson de Albuquerque Silva, nasci em Campos, do estado do Rio, sou maratimba, nasci na beira rio… saí de Campos com uns 18 anos. A data é 2 de janeiro de 1920, faz uma ideia, eu tô cheio de rugas assim né? É por isso… (risos) Eu fiz oitenta e dois anos esse ano, né? Quer dizer, eu tô emendando o segundo século. Tô no século 21.
[Seus pais se chamavam Ludgero Ferreira da Silva e Lucília Augusta de Albuquerque Silva, ambos naturais de Campos, RJ. Casou-se com Dulce Vilella dos Santos, que nasceu a 5 de dezembro de 1921, em Salvador, BA. Com ela teve cinco filhos: Álvaro, Vera Lúcia, Flávio, Lucília Helena e Regina Maria. As três filhas moram atualmente em São Paulo, e os dois filhos moram em Vitória, ES.]
Meu pai tinha um estabelecimento comercial em Campos, uma padaria e armazém, vendia tudo, exatamente na região mais central da cidade, na rua Sete de Setembro — Subida da Praça — era o nome do local. Acontece que meu pai morreu muito novo, com 33 anos. Ele morreu do coração então nós tivemos que assumir, mamãe assumiu a criação dos filhos — em número de quatro. Eu tinha três anos e meio. Éramos, na verdade, cinco filhos, pois minha mãe estava esperando o quinto filho.
Como a casa comercial não era só de meu pai, quando ele morreu minha mãe recebeu a parte dele, e com esse dinheiro meu tio comprou uma casa na rua dos Frades, próxima ao centro da cidade. Era uma rua muito boa, e essa casa existe até hoje.
Minha mãe mudou pra lá, e lá eu morei até que fui para o Rio de Janeiro. No tempo que eu vivi em Campos era um menino muito levado e muito curioso, queria aprender tudo que dizia respeito a mecânica.
A nossa rua era na verdade uma pequena travessa, tinha uns duzentos metros, e nela havia uma Escola de Primeiras Letras, que funcionava na casa da professora, Dona Cotinha. Ela usava uma tintura no cabelo, de cujo cheiro ainda me lembro…
Eu estudei naquela escola, o primeiro ano, vamos dizer assim. E acontece que em frente a nossa casa morava um senhor chamado Dr. Freitas, um advogado. E mamãe se dava muito bem com a família dele. Uma das filhas dele, aliás as duas, eram professoras. E eu vivia naquela…
Minha educação foi meio truncada. Eu fiz o seguinte: [depois de ter estudado com D. Cotinha] minha mãe me matriculou de graça na Escola de Dona Jandira de Freitas, e eu estudei com ela uns dois ou três anos. Eu tinha então entre dez e doze anos.
Acontece que eu era muito inquieto, e então um amigo de família, o Cordeiro, arranjou para que eu estudasse de graça no melhor colégio de Campos: Colégio Teixeira de Melo. O prédio hoje está fechado. Já passei umas mil vezes por lá, tá sempre fechado. É um prédio antigo…
[D. Dulce: “Na rua do Leão morou Celso, um irmão dele.”]
É, Celso é meu irmão, morreu, faleceu há um ano mais ou menos. Ele ficou morando em Campos e a família dele continua lá, que eles têm uma casa lá, é na rua do Leão.
A rua do Leão justamente termina na praça onde está o Colégio Teixeira de Melo. Eu estudei lá somente um ano num nível que corresponderia à segunda série ginasial. O meu estudo nesse período foi muito puxado. Apesar disso foi formidável, porque eu gostava muito do colégio. Lá só tinha filho de fazendeiro, era um colégio especial e um lugar muito bonito, com muitos pés de jambo — até hoje eu como jambo lembrando de lá.
Havia problemas com o número de alunos, e eu também era levado, tudo isso era motivo para eu não continuar a estudar lá. Mas aprendi, lucrei muito durante aquele ano. Eu já estava muito adiantado, fiquei mais adiantado ainda em função desse período de estudo. Saindo de lá mamãe, para me penalizar, resolveu então me transferir para a Escola Técnica de Campos. E isso era exatamente o que eu queria.
Eu fui para a escola de mecânica, e fiquei lá somente um ano e oito meses, mas durante esse período eu corri todas as matérias da escola técnica. Eu obtive conhecimentos em mecânica de motores, torno, que é um aparelho para fazer peças, trabalhei na fresa. Fresa é uma máquina pra fazer engrenagem. Cursei também funilaria, e aprendi a fazer tudo de folha de flandres.
Isso pra mim foi uma beleza porque eu gostava muito de desenhar, então tudo que eu ia fazer eu desenhava primeiro. É, desenhava em cima da chapa, cortava e fazia peças como canecas, jarras, máquina de fazer café de cinco minutos, — que eu passei pra um minuto. E tudo que se pode fazer de flandres a gente fazia: abajures, porta-retratos, tudo. E fazia mesmo por economia, porque o governo não soltava muito dinheiro para as chapas. [Eram objetos utilitários, de maneira geral].
Às vezes havia encomenda de escolas, que a gente fazia, por exemplo, havia um colégio de flores, nas imediações, e a gente fazia, inventava ferramentas pra fazer essas flores de pano. Minha irmã gostava de fazer flores e eu dei um jogo [de ferramentas] para ela, de maneira que tudo isso era feito.
Além disso nós tínhamos também a fundição. Eu cursei fundição, mas eu fazia muito rápido, eu aprendia muito rápido, com muita facilidade não. Nós tínhamos lá um processo que se chama processo de fundição por cera perdida. Eu fazia uma peça e quando tirava ela do molde ela estava perfeita, moldada, como se tivesse sido esculpida.
Aliás [esse conhecimento] serviu para mim, porque depois eu tive uma fundição chamada Termoflux, onde eu confeccionava peças para automóveis. Tive também duas usinas de aço. A primeira era em São Paulo, em Água Branca, na entrada da via Anchieta.
[Álvaro: Nós estamos chegando em 1938.]
Ao fim do meu primeiro ano na Escola Técnica houve uma exposição em Chicago, e meu professor — meu mestre — chamava-se Pandolfo, Francisco Pandolfo. Era um gaúcho. Ele gostava muito de mim e eu dele. É um sujeito muito bom. Ele perguntou se eu queria fazer um trabalho para mandar para a tal exposição. Eu disse “o senhor escolhe o que você quer que eu faça, que eu farei”. Eu tinha acabado de fazer uma cama hospitalar. Ele falou assim, “não seria bom, nós mandarmos a sua cama, pra lá?”
(Essa cama eu desenhei, projetei e executei. Ela tinha todo o movimento de uma cama moderna. Eu incluí outros movimentos além daqueles que eu encontrei nas existentes.)
“Olha, a cama tá pronta, o senhor pode mandar”.
“Mas eu queria que você fizesse uma outra coisa, ainda temos um mês para enviar”.
“Olha, eu queria fazer uma espingarda de fogo central”.
Ele disse: “você pode fazer”.
Eu fiz uma espingarda, de um cano só, de cartucho dobrada, aquela coisa. Era uma espingarda de caça de calibre 28. Fiz a espingarda, e essa foi a minha contribuição para a exposição de Chicago. A cama foi também.
Na escola técnica tinha a escola de letras, tá vendo? Eram quatro horas de oficina e quatro horas de escola de letras, e na escola de letras exigiam muito de mim porque sabiam que eu vinha de uma escola muito adiantada e eu não tive dificuldade nenhuma, né?
Mas tinha uma professora lá que não gostava de mim. Ela tinha uma implicância desgraçada de mim, e de vez em quando ela dava uma reguada, na arte minha. Uma régua comprida ou então uma vara de bambu.
Palmatórias era mamãe. Mamãe me deixava de joelhos sobre milho.
Outra coisa lá em casa que me deixava doido. Mamãe botava eu e meu irmão pelados — isso é divertido — dentro de um tambor. Ela então chamava uma professora da vizinhança chamada Lúcia: “ô Lúcia, vem cá ver”. Aí Lúcia: “já vou”. Aí, lá ficávamos eu e Celso, se escondendo um no outro que era um pânico. Era só uma humilhação. Você vê que sistema educacional era antigamente.
E, então, terminado essa parte de remessa de materiais e equipamentos pros Estados Unidos, eu me desliguei da escola técnica porque eu gostava de lá mas não me sentia muito bem com o nível dos colegas, entende? Eu brigava muito. O convívio não era bom. Eu saí e fiquei um mês ou dois parado, fui para o interior — São Gonçalo, uma localidade de Campos — e quando voltei para Campos arranjei um emprego.
E, então eu voltei de São Gonçalo então eu resolvi estudar, continuar. Então estava aberta a inscrição na escola de comércio de Campos. Eu me matriculei e entrei para a escola. Estudei mais ou menos um ano. Foi quando o meu padrinho me ofereceu o emprego. Aí já estava eu com os meus 17 pra 18 anos.
Meu padrinho tinha um comissariado. Comissariado hoje tá fora de época, mas era o seguinte: as cidades que não tinham curso superior viam-se na situação de mandar os filhos para o Rio de Janeiro. Era o que acontecia em Campos, todo mundo ia pro Rio estudar medicina, direito… Era então necessário um elemento de ligação entre a família e o filho. E os filhos lá no Rio de Janeiro. Então o meu padrinho fundou esse comissariado.
As mães levavam lá doce, roupa, tudo isso e nós enviávamos cobrando uma taxa. Colocávamos numa cesta de vinho grande, com 50 quilos. Essa cesta ia no trem da Leopoldina — que tinha noturno todo dia, e ia pro Rio.
Lá no Rio nós tínhamos uma pessoa que retirava a cesta, botava dentro de uma condução, e levava pra agência, que ficava na Rua Teófilo Otoni.
Esse comissariado em Campos ficava na rua Sete de Setembro, em Campos, pertinho da padaria do meu pai. O comissariado do Rio estava localizado à rua Teófilo Otoni.
No Rio de Janeiro, as remessas ficavam á disposição dos alunos ou destinatários. Quando eles queriam receber em casa nós mandávamos, eles autorizavam, nós tínhamos um motorista. O destinatário pagava a corrida e recebia a remessa em casa. Era bem organizado o serviço. Então meu padrinho explicou tudo isso e disse: “você querendo poderá ir para lá tomar conta da agência. Isso porque o Pedro (que era o filho dele e tomava conta do negócio lá no Rio) fez concurso pro Banco do Brasil e passou. De maneira que ele vai ganhar mais. Você vai ganhar o que ele ganha, (que naquele tempo era trezentos e cinqüenta mil réis) e tomar conta do negócio.”
Mas dava, sabe, porque eu pagava cento e vinte de pensão, casa e comida. Eu ficava em uma pensão que tinha lá, na Teófilo Otoni mesmo, saía de uma porta entrava na outra. Eu tinha que economizar, porque, cento e vinte mil réis custava a pensão, era de graça.
O restante era pros alfinetes, como se costumava dizer.
Na pensão eu tinha almoço, janta e café de manhã cedo. Eu tinha tudo.
Só que na pensão eram quatro num quarto né? Eram duas camas aqui. Eu tinha até um colega que era estudante de medicina, e embaixo da cama dele era praticamente um necrotério, cheio de peças, ossos (risos). Ele ia no cemitério e voltava com um embrulho (risos).
Eu comecei a trabalhar lá foi em 1939. Eu estava com 19 anos. Trabalhei somente seis meses porque acontece o seguinte, eu tinha contato com muita gente que ia lá, eu recebia, atendia, a instalação era bem feitinha, tá vendo, muito organizada, prateleira. Além disso fornecíamos recibo daquilo que se pagava.
Uma ocasião chegou um senhor alto — parece que tô vendo — se apresentou, e queria mandar uma encomenda pra Campos. Eu disse “pois não, é aqui mesmo.”
“Eu sou Dr. Antônio Ribeiro de Castro.” Pronto.
Antes de dizer o que queria, ele começou a conversar comigo: e onde é que você mora lá, e tal, aí eu disse, eu moro na rua dos Frades, e tal, e houve aquele contato, e ele gostou de conversar comigo.
Então ele disse: “olha, eu queria mandar esses livros para lá, mas são livros que não podem extraviar, não pode acontecer nada.”
Eu disse “não, aqui se o senhor quiser que a gente mande o táxi entregar na residência, nós mandamos, porque lá em Campos quando a encomenda chegar, o escritório telefona e a pessoa que receber o telefonema.”
“Foi uma boa ideia, você pode mandar um táxi.” (nós temos um táxi em cada cidade, de confiança, que faz as entregas).
E, assim eu tive contato com o Dr. Antônio Ribeiro de Castro, pai do Dr. Flávio Torres Ribeiro de Castro, que é o padrinho do meu filho Flávio.
Aí ficamos amigos. Passados alguns dias ele voltou lá. “Olha Nelson, eu vou precisar de um outro favor seu.” Ele disse que tinha mais um assunto pra mim em Campos. Ele tinha uma sociedade, Socorros Mútuos, e queria regularizar a situação dele nela. Eu me propus a escrever uma carta para um primo — Inácio — que trabalha lá.
“Eu vou escrever para ele uma carta, e falar depois por telefone recomendando tudo o que o senhor pediu.”
Inácio era uma pessoa formidável, esse meu primo. Ele atualizou tudo, mandou toda a despesa, com tudo pago e com recibo.
A comunicação com Campos era diária através da Leopoldina. Eu todo dia ia até a estação esperar o noturno. Todo dia vinha, doze caixas daquelas. Do Rio pra lá era menos, de Campos para o Rio é que vinham muitas. A volta era quase que vazia, tanto que uma caixa, ou cesta [de vime], era maior do que a outra, pra poder caber, evitar muito frete.
O Dr. Flávio conferiu tudo, ficou muito satisfeito, viu quanto era, tirou um cheque. Quando ele foi emitir o cheque perguntou se eu permitia que ele aumentasse o valor como forma de me agradecer, mas eu não aceitei.
Ele então me agradeceu e falou assim: “você não se sente deslocado aqui nessa agência?”
Eu até olhei para o outro funcionário não ouvir, e disse “não, eu sou o gerente aqui, [o negócio] é pequeno, mas dá para comer.”
Ele disse “você não quer melhorar?”
“Ah, quem não quer melhorar?”
Então ele me deu o cartão dele e disse “você faz o seguinte, na hora que tiver tempo, apareça lá no escritório, no edifício da Noite, sétimo andar.”
O edifício da Noite fica na praça Mauá. Era o mais alto daquele tempo. Hoje já deve ter outro lá. De todos os elevadores que eu andei na minha vida, o do edifício da Noite é o mais rápido. Você chega a sair do chão. É um negócio. O escritório, ele ocupava três salas maiores do que essa e era uma construtora civil, que pegava serviços de empreitada. Era a Construtora Mauá.
Aí eu fui lá. No outro dia. Cheguei lá toquei a campainha e fui atendido por uma moça. Eu me apresentei e pedi para falar com o Dr. Flávio. Aí ela saiu, foi lá na outra sala, chamou-o, ele veio.
“Ah, você que é o Nelson?”
“Sim senhor, Dr. Flávio.”
“O senhor vai bem?”
“Vou, sim senhor, e o senhor?”
Aí aquela história, né?
Ele me disse: “olha, o papai me falou sobre você, de maneira que eu quero saber se você quer trabalhar conosco.”
Eu disse: “dependendo do que eu for fazer…”
De maneira que eu, aí ele conversou comigo, então me perguntou o que eu fazia e o que havia estudado. Eu disse o que ele queria saber, e ele disse o seguinte: “eu tenho um serviço pra você, mas é um serviço meio difícil.”
Eu disse: “eu gosto é de coisa difícil.”
“Olha você tem que ir pra roça.”
“Sem problema. Eu não sou da cidade, eu sou da roça, eu sou da sua terra” — Ele também era campista assim como o Dr. Flávio.
“Pois é, eu tenho várias obras: em Cachoeiro, Vitória [ES], e Macuco [RJ]. Eu preciso de alguém de confiança para tomar conta, você não vai ser um escriturário não, você vai tomar conta de tudo lá [em Macuco]. Lá tem um alemão, procura se dar bem com ele porque ele é difícil. Nós estamos construindo lá uma represa.
Eu disse: “ótimo, eu gosto muito dessas coisas.”
Ele perguntou se eu precisava de alguma coisa e eu disse que precisava (eu sou muito sincero). “Preciso de melhorar o meu guarda-roupa.” (risos)
E brincando com ele, disse: “essa calça aqui está meio puída.”
Ele na mesma hora chamou a senhora dele, que era a contadora, e falou: “Maria, faz um cheque para o Nelson, ele vai trabalhar conosco e providencie a passagem pra ele ir o quanto antes para Macuco. Faz uma carta de apresentação, explique a ele como é que faz pra chegar lá.”
Lá eu encontraria o alemão, Dr. Carlos Duenck.
Eu fiz então a minha mala e me preparei. Eu fui a Campos falar com mamãe, fui falar com meu padrinho, agradeci a ele, e pedi para que ele o quanto antes para que eu pudesse seguir viagem, porque o doutor falou que tava com pressa, né? Meu padrinho autorizou, já tinha uma outra pessoa pra levar pra lá.
“Você leva esse rapaz e engrena ele antes de ir embora.”
Eu mandava então cinquenta mil réis para minha família, pois mamãe passava aperto com os outros filhos. O mais novo morava com a madrinha. Eu tinha minha irmã, Maria, que morava conosco; José, que era o mais velho; e Celso, que morreu recentemente. O Dudu, que era o quinto, nasceu mais ou menos uns quatro meses depois da morte de meu pai. Ele está à morte. Aqui, em Vitória, e trabalhava ali no DETRAN.
Meu padrinho me dispensou do comissariado, me pagou, me deu uma gorjeta, né, um, pelo serviço prestado, ficou muito barato até.
Então, terminado isso, eu retornei ao Rio de Janeiro. Até aproveitei e ainda fiz a última viagem com as encomendas, dentro do trem. Cheguei lá no Rio, desembarquei a mercadoria e levei para a agência. Passei dois dias treinando o novo funcionário (o outro que trabalhava lá estava treinado), e depois me apresentei no novo escritório. D. Maria me deu a correspondência pra eu levar, uma carta de apresentação para o coronel, que era dono da fazenda de Macuco, coronel Rego Monteiro (do exército).
Eu fui para lá [1939] cuidar da empreitada para a construção da represa, e nunca tinha visto esse tipo de construção antes.
Ela tinha várias obras. Nós tínhamos uma obra da panela. No Aeroporto Santos Dumont nós construímos um galpão, tudo na mesma época. Eu vivia andando pra lá e pra cá.
De Macuco eu não saí. Cheguei lá, fiquei um ano, certinho, trabalhando na represa.
Na represa eu não tinha função certa e fazia de tudo. Eu fazia a escrita. Durante dois dias eu aprendi a fazer com dona Maria a escrita, a contabilidade da obra, além disso eu já tinha algum conhecimento de contabilidade, que eu tinha passado um ano estudando na Escola de Comércio, de maneira que eu aprendi aquilo com o rabo nas costas, né?
Meu trabalho na represa, vamos assim dizer, era de um gerente da Mauá, e aonde eu chegasse era a mesma coisa, e fazia tudo: a escrituração, fiscalização da obra e escafandro. Você vestia uma roupa de metal, vidro na cabeça e mergulhava a cinco metros de profundidade, que era a profundidade da barragem. Era divertido, eu gostava.
Mas então até isso eu fui, até que chegou uma época que tínhamos de concretar. Fui mestre de obra, controlava o corte de madeira para as fôrmas. Aqui por exemplo, tem uma coluna e dentro vai o concreto e o ferro.
(Por incrível que pareça, eu fabricava três mil toneladas de aço por mês e não tenho um pedaço de ferro aqui em casa. Aquele o Flávio levou e eu não tenho pra mostrar outro. Depois eu peço ao Flávio que mostre um, tinha uma amostra aí.)
[A represa estava sendo construída no] rio Grande. Era um rio que não tinha nada de grande, e nós construímos a represa justamente na parte mais estreita dele. A parte mais estreita dele tinha uns 150 metros. Era a parte mais estreita e mais funda, dava pra você juntar maior quantidade de água.
Tinha uma rópia de um lado, outra de outro. Você construía, você tinha toda a altura do nível até a crista — porque chama-se crista — a crista da barragem, pra você encher aquilo de água.
Lá eu me encarregava de tudo, mas nós tínhamos o engenheiro, que era Dr. Carlos Duenck, que morou aqui — eu não sei o nome da empresa que ele tinha aqui não. Que aliás gostava muito de mim, e me chamava de Nerso.
[Álvaro: “Ele não pronunciava direito o nome dele, seu português era péssimo.”]
Ele era o engenheiro lá, e tinha um encarregado, que era um compadre meu, que ficava lá junto com os operários, virando concreto e tudo mais. Eu que ficava a cavalo, acompanhando, fiscalizando. A represa fica a mais ou menos 50 quilômetros distante da vila de Macuco, e eu morava na casa da fazenda. Mais tarde fui morar na vila.
Tudo estava muito abandonado, até a casa era uma coisa horrível. Uma casa imensa de fazenda caindo aos pedaços. Uma coisa, o assoalho tudo podre…
O dono não cuidava, morava no rio. Os bois morriam à toa, uma coisa horrível. Quando um deles morria, a gente comia carne. Quando acontecia de um boi cair do barranco, a gente ia lá pegá-lo, assava a carne e comia. Ele atrasava muito o pagamento, era um buraco, sabe?
Então ele [o coronel] disse pra mim: eu só posso pagar a você quando eu vendo uma vaca. Eu pedi um crédito. Ele fazia e tava se movimentando, hipotecou ao Banco do Brasil, mas ele tinha hipoteca em cima de hipoteca, era um negócio.
Então, eu morava numa pensão lá em Macuco. Aí então a última discussão que eu tive com ele eu peguei o cavalo, quando eu vou atravessando a porteira, ele, acendeu, eu nem sei se foi ele, ou quem foi. A bala pegou na porteira. Aí eu apressei o cavalo, galopei e saí do alcance da bala dele, de maneira que o negócio era de amargar.
Depois foi o Numinato. Ele era vaqueiro da fazenda. Eu tinha uma namorada na fazenda, era aniversário dela e ela me deu uma porção de comida. Eu peguei aquele pacote enorme e fui caminhando para a fazenda, que ficava no caminho. Era um cemitério. Tinha um bambuzal enorme do lado de baixo, que cobria a estrada. A estrada era escura. A minha sorte foi isso, que quando eu passei dentro da estrada eu caí, o cavalo arregou, ele caiu para um lado, eu caí pro outro. Eu rolei, porque aquelas estradas antigas têm sempre uma vaza pra correr água. Eu corri e rolei para a beirada, eu andava armado, ninguém lá andava sem um ‘canhão’. Eu descarreguei o canhão, deixando só uma bala. E ainda dei um tiro nele, andei até o lado dele, dei um tiro, era o lá de cima, e cheguei na fazenda. Deixei lá os troços e voltei para o meu caminho. Ia mais à frente não me recordo bem, não sei se ia na casa do Mário. Mas nessa altura do campeonato a construção estava no fim, a barragem foi concretada.
Resumindo: o negócio lá do Macuco, da represa, chegou numa situação que eu passei um telegrama lá pro Dr. Flávio. O Dr. Carlos não aguentou e foi pro Rio, deixou a obra lá. Mas isso não tinha importância, que a obra andava de qualquer maneira, já estava tudo concretado.
Passei um telegrama para Dr. Flávio dizendo que eu me via forçado a paralisar a obra, porque depois de quatro meses sem receber os operários estavam adoecendo e não havia jeito. Eu pretendia embarcar no outro dia para o Rio, mas naquele mesmo dia eu recebi telegrama informando que eu poderia parar a obra, mas em vez de eu ir pela Leopoldina, deveria voltar para o Rio. Me orientaram para que eu tomasse o trem em Manoel de Morais, uma outra cidade a 70 ou 100 quilômetros. Parti à noite, a cavalo, para Manoel de Morais, e de lá fui até Cachoeiro me encontrar com Dr. Flávio.
Quando desembarquei em Cachoeiro de Itapemirim [1940] fui para o hotel que ele tinha determinado, e ele estava lá me esperando. Aí eu contei a história toda a ele, que disse: “é vai ser difícil porque não sei como é que nós vamos arranjar para pagar todo mundo”. Mas ele pagou.
Ele falou para mim: “olha nós vamos começar aqui em Cachoeiro um serviço de tratamento de água na cidade.”
Então eu disse: “olha, aqui nós temos uma barragem, uma usina de tratamento de água, e temos duas pontes.”
“A barragem, a usina de tratamento nós vamos começar, você vai tomar as primeiras providências. Nós começamos a obra, e depois que as coisas estiverem andando, você vai ter que fazer a mesma coisa de sempre.”
Eu tinha então uma moto. A moto do Marcelo.
Começamos a obra em Cachoeiro. Construímos o serviço de tratamento de água e a usina foi terminada, só que eu não fiquei até o fim.
[Nessa época ele veio pra Vitória — comentário de Álvaro Silva, seu filho.]
[Comentário sobre a usina]: Você olhava, no fundo, do tanque de cristalização, você via um alfinete a dez metros, vinte de profundidade. Não tinha nada, aquela água horrorosa de […]. O tratamento era feito da seguinte forma: primeiro a água é decantada [os sedimentos descem até o fundo]. O primeiro tanque é o da sedimentação. É por etapa: Você tem um tanque, depois um degrau, um segundo tanque, de decantação. No primeiro tanque você só dá uma dose de sulfato de alumínio.O sulfato de alumínio agrega todos os corpos, formando flocos brancos que precipitam, vão para o fundo. Esse material precipitado vai sendo descarregado por baixo e o que flutua sai por cima, e água ia tá já meia tratada. E nesse tanque a água vai chegando sempre.
E tem um homem também, que tira o grosso né? Palha, essas coisas assim. Agora, sempre do primeiro tanque não decanta, porque há o tempo entre a água que entra no tanque e ela pula, por cima da crista. Há um tempo que ela leva pra fazer isso, para ocorrer a reação do sulfato de alumínio, depois ela passa pro segundo tanque.
Depois disso a água vai pra fora, volta para o rio. Tem uma calha do lado, que recolhe.
No segundo tanque a água recebe uma quantidade de sulfato de cobre. Essas duas coisas eu até usava na piscina lá de casa. Era o sulfato de alumínio. Sulfato de alumínio no primeiro tanque e sulfato de cobre no segundo, para acelerar a precipitação, decantação.
Então fica tudo lá embaixo. Esse material é então retirado por baixo, da mesma forma que é feito no primeiro tanque, por um dispositivo abre e fecha logo, dependendo do tempo de decantação. Esse sistema pode ser automático ou manual, depende da quantidade de sujeira que tem a água.
A água ainda passa por um terceiro tanque, parece uma série de cachoeiras. É o que se chama de bater a berbatida. Terminado esse terceiro tanque, a água cai numa canaleta, num tubo coletor. A água está então limpa, mas ainda não é tratada.
É quando ela vai para o dosador. Isso só a química. Mas então ela entra na usina, e nela passa por uma calha que tá em função da capacidade de vazão E ela recebe do dosador uma quantidade de cloro, que fica pingando. Aí em função da composição da água, você bota mais cloro ou adiciona alguns elementos. Há ocasiões de epidemia, por exemplo, em que se entra com outros valores, isso o Ministério da Saúde fornece.
Agora, dessa dosagem de cloro ela cai no tanque de distribuição e depois tem o segundo tanque. São, ao todo, três tanques externos e dois internos. É um complexo.
Do último tanque de decantação ela ia pra torre de elevação, e da torre de elevação no caso ia pro reservatório que ficava no alto de um morro que daí era distribuído pras casas.
Isso foi feito em Cachoeiro, na Ilha da Luz, perto de onde fica a fábrica Pio Coelho.
Participei também de outras obras lá em […], duas pontes. Eu não tenho o nome delas, guardei o número, a número um e a número dois. Eu não sei, eu sei, que desde que eu saí, terminei o meu serviço lá na Ilha da Luz, nunca mais eu voltei pra Cachoeiro.
Eu administrava a construção das pontes, como fazia em todas as obras de que participei. Tudo passava por mim: escrituração, fiscalização, pagamento de operários, cobrança etc.
Aqui por exemplo tinha duas pontes lá pro lado de Cariacica.
O trabalho sempre representava risco, por isso “fogo na cinta”.
Lembro de uma passagem muito gozada. Tem um rio aqui, o Bubu, o outro Murumbu. Nós estávamos fazendo a ponte.
Durante a obra da usina de tratamento de Cachoeiro, eu voltava aqui e ia a Cachoeiro, voltava, até que eu vim morar em Vitória. Isso foi mais ou menos em 1942.
Mas eu participava várias obras que estavam andando paralelamente, não tinha nada parado, esperando não. Eu tava num lugar e quando queriam falar comigo, ou me achar precisavam ver lá no mapa onde é que eu estava. Tinha também uma construção em Jabaquara [lugarejo entre Guarapari e Alfredo Chaves]. Aquela ponte foi construída por nós.
Iconha. Nós construímos em Iconha três pontes. Uma só tá lá. As outras afundaram. Para a construção da ponte, foi feita uma concorrência antes de nós e o sujeito fez o estudo, fez o desenho e tudo mais, dando a fundação e o tipo de ponte. Só que a ponte era de pau. Quando nós começamos estávamos no fim da construção da de Jabaquara, e o governador quis que a gente fizesse a ponte de Iconha. Isso foi 1943, aproximadamente. Eu estava então casado.
Bom, aí eu tinha a ponte de Iconha. Eles fizeram o desenho e tudo mais, mas não realizaram a fundação como estava no desenho. Eles tapearam. Eu fui até com o Dr. Flávio. Eu fui ao Departamento de Obras conversar com o engenheiro, o — esqueço o nome dele — “vocês querem que se construa uma ponte de concreto em cima dessas fundações? Não fomos nós que construímos a fundação. Esse rio aqui, espremido, com chuva pesada a ponte vai embora.”
Isso daí o Dr. Flávio falou com o governador.
“Ô, Jones, nós vamos ter que fazer um adendo ao contrato, e qualquer problema que venha a surgir com a ponte, relacionado com as fundações, é de inteira responsabilidade de vocês.”
Nós temos duas pontes nessas condições: essa ponte e a de Aimorés. A de Aimorés uma tromba d’água levantou e levou rio abaixo. Subiu. Quem viu disse que não acreditar. Não ficou nenhum remanescente da ponte.
A ponte de Aimorés foi feita pela Mauá sem a minha participação. Mais tarde passei a trabalhar para a Mauá, mas nessa época eu ainda não era funcionário dela.
A ponte de Iconha sumiu sob uma tromba d’água, que levou inclusive suas fundações. Aí nós construímos uma outra que está lá. Agora além dessa, nós construímos umas dez pontes ao longo da estrada Jones Santos Neves, até a fronteira, menos aquela da fronteira.
Essas obras foram realizadas durante o governo Jones dos Santos Neves e também depois.
Mais tarde eu deixei a Mauá.
Agora pra você ter uma idéia, nas pontes de Murundu e Bubu [década de 1950?]. Havia pouco dinheiro, então…
Eu ia pagar o pessoal e tinha um motorista que se chamava Celso Picú.
[Álvaro: “Ele veio de Cachoeiro pra Vitória, acompanhando as obras da Construtora Mauá. Depois que esteve em Cachoeiro, ele veio direto pra cá, foi em 1939 ainda. Ele passou por Cachoeiro e veio pra cá. Aqui a Mauá tinha obras, Uma pontezinha perto de Paul. Ela é um arco e fica em cima de roletes. Era uma ponte ferroviária que está totalmente desativada hoje, cheia de mato. Mas ali passava estrada de ferro. Essa ponte a Construtora Mauá fez. Era do porto. Era pra o trem descarregar o minério no porto, no Péla-Macaco. E essa ponte existe até hoje, que jamais derrubaram, só que ela liga nada a lugar nenhum. E justamente nessa época, que ele chegou aqui, aí teve essa obra dessa ponte, tinha a Construtora Mauá tinha obra do prosseguimento da construção do cais do hidroavião. Porque o cais do hidroavião já existia, mas tinha que ser concluída construção dela.]
Bom, além dessa ponte, na verdade chamada de viaduto, eu construí um outro viaduto atrás da Leopoldina, da estação. É um viaduto de vigas Gerbel, um tipo de viga reta. Não se vê viaduto, apesar dele estar lá. Ele não tem aquele arco, nada disso. É reto. Chama-se viga Gerbel, em alemão. Depois desse, nós fizemos um outro, que eles chamam de paliteiro, e que fica lá no Paul.
E tem as pontes de Bubu, Murundu, da Leopoldina, só. Essas. Mas é ponte pra chuchu.
Construímos um pontilhão que fica dentro do terreno da Vale, e, além disso, construímos uma ponte em Resplendor. Eu então já era sócio do Flávio, da Mauá.
Pontilhão. Década de 1940. |
Eu tenho que abrir um espaço aqui, depois a gente volta ao contexto.
Eu me mudei daqui para São Paulo em 1954.
[Álvaro: “O voo de papai vai cair.”]
É, aquele mesmo. “O voo de papai vai cair”. Ele [Álvaro] entrava no avião comigo e Dulce, e ficava dizendo: “o voo de papai vai cair”.
Eu, pro Flávio, era um filho dele.
[Álvaro: “Porque Dr. Flávio era muito mais velho do que papai. O Dr. Flávio no fim da vida ele perdeu tudo, e acabou vivendo os últimos dias dele na casa de papai, em São Paulo.”]
Eu que o enterrei. Fui a única pessoa que foi ao enterro dele.
[Álvaro: “Porque ele não deixou descendentes, não teve filhos.”]
Dr. Flávio apareceu lá na porta em 1954 com um maço de documentos e disse:
“Ô, Nelson, eu quero uma passagem, mas quero que antes você leia isso aqui, examine que eu preciso de você em São Paulo pra fundar essa firma.”
Eu disse:
“Ô, Flávio, deixa isso aqui comigo. Eu vou ler.”
[Naquela ocasião havia um boato de que as Aerovias estaria sendo vendida.]
Descasquei o negócio. Li e estudei todo aquele documento. Era uma patente para a fabricação de vergalhões torcidos.
Eu não teria muita dificuldade na execução daquele projeto porque eu já conhecia mecânica e metalurgia.
E eu fui e falei assim:
“Caramba, isso aqui é um ovo de Colombo. Eu acho que tem futuro.”
Para você ter uma ideia, um vergalhão de ferro era torcido numa uma máquina simples, como se fosse um barbante… e se esse barbante que tinha anteriormente resistência para, por exemplo, suportar dez quilos, passava depois disso a suportar vinte.
Chama-se a isso helitraço, hélice tracionada de aço.
Essa tecnologia já existia na Espanha, mas não aqui. Nós fomos a primeira empresa a adquiri o direito de explorar a patente no Brasil.
A Armaduras Helitraço de São Paulo S/A era uma empresa com três sócios: eu, o Dr. Flávio e o espanhol (dono da patente). Os outros eram só para constar, já que uma sociedade anônima precisa de no mínimo seis sócios. Assim o espanhol, que era o dono da patente, tinha garantido o seu direito. E já que no Brasil a patente espanhola não era reconhecida, Flávio registrou-a no Brasil.
O nome do espanhol eu não lembro, só sei que era Jesus… e entrou Jesus no meio, danou. Eu sou ateu, sabe?
Para comprar nossa casa em Vitória eu fiz um empréstimo com Asdrúbal Resende Peixoto, que dono do Banco […] Quando fui para São Paulo eu vendi a casa. Depois disso verifiquei que daquele empréstimo, já quitado, deixei de receber a devolução de uma das promissórias, que acabei tendo que pagar novamente.
Eu botei anúncio na rádio de São Paulo, falando com ele: “Asdrúbal, esteja você onde estiver, meu escritório é na rua Ipiranga, avenida Ipiranga, número tal, andar número tal. Vem, que você encontra o amigo Nelson lá.”
E ele foi ao meu encontro.Eu o recebi e emprestei dinheiro a ele.
Eu cheguei em São Paulo, arranjei um terreno no começo da Via Anchieta… tem um riozinho. Ali termina São Paulo e começa o ABC.
Com a minha vinda para o Espírito Santo, a Mauá começou a se envolver em muitas obras, e nessa ocasião o governo resolveu se estender pro Norte. Então nós fizemos um projeto da ponte de Linhares. Mas não construímos.
Fizemos o projeto e construímos a ponte de Colatina.
Depois disso nós continuamos no rumo de São Mateus e de Linhares. Em São Mateus não havia nada, era só uma extensão imensa, uma reta de perder de vista, então nós fizemos isso, até houve um acidente lá, no meio do caminho um acidente com bondes. Dr. Flávio tava dirigindo a caminhonete e um homem dormiu no meio da estrada. De longe o farol não tava muito bom, nós pensamos: será que é gente ou bicho? E ali era ruim parar. Aí ele resolveu passar por cima. Passou e era um homem. Paramos, botamos o corpo do sujeito — que estava vivo ainda — na caminhonete e continuamos para São Mateus. Isso foi um incidente na estrada.
Chegamos em São Mateus, já estava pronto o projeto, porque os projetos todos eram feitos no Rio. Nós construímos uma pequena usina de tratamento de água para São Mateus, que a cidade era muito pequena, era uma praça grande, tinha umas casas velhas, uns sobradões…
Era por volta de 1943, eu já tava casado. Então construímos a usina e fizemos a ligação domiciliar em todas as casas, digamos, do campo.
Isso foi no governo Jones, tudo Jones. Acontece que Dr. Flávio tava achando que o dinheiro que tava entrando era curto, e falou: “Nelson, vê se você apressa isso daí, e vai diminuindo a folha, sabe, pra poder ficar mais fácil.”
Tinha um empregado chamava-se Numinato. Era um cearense que quando soube que eu ia dispensá-lo — e eu ia dispensar todo mundo — me procurou.
“Ó, senhor Nelson, eu soube que o senhor vai me mandar embora também, eu tenho onze filhos…”
Eu disse:
“Olha, eu lamento, mas isso aqui é uma obra transitória, e quando termina a gente tem que dispensar os operários. Quando tem outra obra a gente aproveita, mas aqui não tem. De maneira que vou ser obrigado, mas eu vou pagar você tostão por tostão. Se você quiser, eu mando um caminhão levar as suas coisas, não tem problema.”
“Ah, sim senhor.”
Eu tinha um homem que tomava conta de mim, a gente precisava de um guarda. Era o Teófilo. Teófilo dois dias depois chegou pra mim e disse:
“Olha seu Nelson, o senhor tá numa enrascada.”
“Eu numa enrascada?”
“É. O senhor vai botar o Numinato na rua e ele disse que não vai não, que vai lhe matar.”
Continuação da entrevista em 29/06/02
Então eu fui fazer minha partida de bilhar, eu gostava de matar o tempo jogando bilhar. Fui para o bilhar, joguei umas quatro ou cinco partidas. Quando eu saí, o Teófilo estava do lado de fora esperando. Lá tinha uma figueira grande, não sei se cortaram, no meio da praça, é uma praça grande, cercada de casarões. Quando eu me aproximei da figueira Numinato saiu de trás dela e perguntou:
“Seu Nelson, o senhor vai me mandar embora mesmo?”
“Já mandei, Numinato, o que que eu vou fazer?”
“Então o senhor vai comigo. Pegou o revólver, puxou o dedo cinco vezes.”
Aquilo foi tão rápido que eu fiquei parado. Pum, pum, pum, pum, pum. Aí, quando parou, parou tudo, pararam aqueles tiros, o Teófilo agarrou, mais dois seguraram ele. Aí eu tirei a capa — não estava sentindo nada — procurei, mas não tinha nada, só uns arranhõezinhos. No chão tinha cinco balas. A arma dele era muito velha. Aí eu peguei as balas e disse:
“Olha, você me deu cinco tiros e está todo mundo de prova. Vamos lá para a polícia.”
Aí fomos lá no delegado, chamar o delegado, o delegado estava dormindo. Mas resumindo, o Teófilo não serviu de nada porque não se moveu, mas no interior tem dessas coisas, a gente tem que andar sempre preparado. Eu não puxei minha arma, eu estava armado, mas não puxei porque foi pum, pum, pum, pum, pum. E aquele negócio, parecia São João, só que era dezembro. Bom. Então nesse caso, além das obras que já descrevi, para o sul, nós também fizemos outras para o norte. De algumas eu nem me lembro direito mais onde estão, porque este traçado da BR-101 daqui até a fronteira, sofreu muitas alterações. Era desvio daqui, desvio ali, já está hoje mais ou menos retilínea, de maneira que, seguramente, umas quatro ou cinco ou seis pontes foram abandonadas. Dessa forma você tem já aí a parte que diz respeito às construções do Sul… tem a construção dos viadutos, o de Paul, o da Leopoldina, o do péla-macaco… e agora te dei uma dica do serviço de água.
* * *
Quer dizer que então isso aí tem seguramente tudo em matéria de ponte sem descrição minuciosa de cada uma. Agora, um assunto que, muito interessa você também é o cais do hidroavião. O cais, o aeroporto marítimo de Vitória. É um nome pomposo. Está escrito lá: Vitória. Mas nem Aeroporto Marítimo eles botaram. Bom, aquele aeroporto foi construído pelo Departamento de Aeronáutica Civil.
O projeto e a construção foram da Mauá, tudo nosso. Quando eu comecei na Mauá, eu já trabalhava — como disse a você — na parte alta do Espírito Santo. Flávio me tirou de Macuco (RJ) e me mandou para Cachoeiro de Itapemirim. De lá que eu vim para aqui.
Então quando eu saí de Cachoeiro e vim para Vitória, o cais do avião foi o primeiro serviço que tive.
[Álvaro: “Muito provavelmente a obra teria sido iniciada em fins de 1938, porque em janeiro de 39 houve um acidente, inclusive com um avião que estava fazendo uma escala de abastecimento em Vitória, um hidroavião. Então foi no final de 1938 com toda certeza. O cais de avião de Vitória foi o segundo a ser construído no Brasil. Agora não sei qual foi o primeiro. Provavelmente foi o do Rio.”]
Quando se fez o contrato para realizar a obra do aeroporto marítimo não se pensou no flutuante. Nós já estávamos no fim da obra e o Flávio me chamou ao Rio. Eu fui lá e ele me falou:
“Olha, nós vamos ao Ministério da Aeronáutica, que eles querem que a gente faça um flutuante.”
Aí eu peguei um, eu nem sei se trem ou avião, para o Rio. Fomos lá no Ministério da Aeronáutica Civil. O tamanho a disposição do Dr. Flávio e o, a quantidade de gasolina que queria e de óleo, de mais materiais para poder ele calcular o peso, saber o tamanho do flutuante.
Eu esperei lá o Dr. Flávio que em uma semana fez o projeto. Eu levei o projeto com o Dr. Flávio até o Ministério da Aeronáutica para eles analisarem. Um mês depois eu voltei ao Rio — o projeto já estava aprovado — e trouxe a planta com ordem de começar a obra.
Bom, a obra acabou em 1941. Eu não estava presente na inauguração. Eu estava no Rio. E então eu trabalhei lá nessa obra. Essa obra, não era de vulto, mas foi minuciosamente tratada e executada. Porque se trata de uma construção de concreto em cima da água do mar, e de água salgada. E a água salgada ataca muito as ferragens. Mesmo aquelas protegidas pelo cimento sofrem às vezes. Então quando eu cheguei aqui a obra estava adiantada. E ela é constante de um edifício de dois pavimentos, tem uma ponte, que se alonga mais ou menos 100 metros, e que já estava pronta quando eu cheguei.
A ponte lembra um píer coberto até o mar, e lá na ponta desse píer nós posteriormente, a pedido do Ministério da Aeronáutica, construímos um flutuante para poder colocar gasolina, óleo, pessoal, ferramenta, tudo isso. O problema do píer é muito simples, mas a física explica. Ele foi feito todo de cimento, mas o navio também é de ferro, e não vai para o fundo. Está em função sempre do volume da água que desloca.
Quando ele ficou pronto e nós cortamos as amarras e o deixamos correr para dentro d’água. Ele ficou que não tinha um palmo mergulhado, o resto estava tudo de fora, para receber o óleo.
O píer repousa em cima dos pilares de concreto armado. O flutuante é importante principalmente pelas mudanças de maré. Era por onde as pessoas embarcavam, e do píer ao flutuante havia uma passarelazinha de cimento.O flutuante ficava preso a um estrado de madeira, e o estrado de madeira ao píer por correntes.
No edifício funcionava a estação, com bilheteria, banheiros, bares…
[O flutuante, além de ser o ponto de atracamento do avião era também o local de embarque e desembarque de passageiros. O atracamento do hidroavião é semelhante ao dos barcos.]
Tinha o primeiro piso e o segundo piso. A ponte é coberta. […] para o vento não passar. Fiz uma biruta bem grande.
Bom. Tem a ponte, e depois uma parte de madeira, que faz a ligação entre o píer e o flutuante. Ele sobe e desce com a maré. A variação de maré aqui, na região de Santo Antônio, chega a mais de um metro.
[Álvaro: “1,10m, 1,15m, porque também tem uma variação dependendo da época do ano; a maré de março, aquela época que começa e termina o verão, é a maré mais forte. A variação é maior também durante o final do verão, menor nas outras épocas do ano, mas a média é 1,10m, 1,15m.”]
O flutuante tem a forma de m cubo. Aqui dentro tinha o tanque, vamos assim dizer, redondo, como se fosse tonel de gasolina, que abastecia os aviões. Tem também a caixa de óleo e outra de ferramentas. Era um depósito que servia para reabastecer os aviões.
O flutuante ficava preso por correntes a uma base de concreto — a poita ou âncora — no fundo do mar. Eram ao todo quatro poitas às quais o flutuante ficava preso por correntes. Quatro “P”. O flutuante é de concreto. É o tal negócio, com um volume suficientemente calculado, você consegue fazer até um navio de cimento. Aqui é uma questão de física. A quantidade de água deslocada é que dá a sustentação.
A conexão entre a parte fixa e o flutuante é de madeira, e flexível, assim como o flutuante.
O prédio tinha que ser muito bem construído suportar a agressividade do mar, haja vista que são decorridos 60 anos e ele está lá em pé direitinho.
Tinha o caisinho de madeira, com o flutuante, a ponte e o prédio. Os aviões chegavam e ficavam aqui, amarrados. Então o funcionário abria lá aquela mangueira e tal e enchia os tanques dos aviões. Acontece que depois do flutuante concluído o cais ficou desativado.
Agora, passamos a falar da construção do flutuante. Tinha um espanhol, Salvador, que era encarregado daqui. Nós precisávamos construir o flutuante. Ele perguntou:
“Como é que nós vamos fazer isso seu Nelson?”
Dr. Flávio não estava nesse dia. Para fazer esse flutuante, temos que fazer aqui um deck. O engenheiro era Carlos Duenck, um alemão, e estava conosco ali, em volta da mesa. Eu falava com Dr. Flávio todos os dias por telefone, e disse para ele que teríamos que construir uma rampa, ou deck, para montar o flutuante. O deck é um suporte, feito uma carreira, com grau de inclinação devidamente calculado. É uma rampa de madeira, para se poder construir a parte de cimento, ou flutuante, por cima. Depois passamos um pouco de graxa, retiramos os calços e deixamos o flutuante escorregar para dentro d’água como se fosse um navio. Eu assisti ao lançamento do flutuante no mar.
As instruções foram todas dadas por Dr. Flávio, por telefone.
Depois de lançado, o flutuante, no mar, nós o posicionamos corretamente e o prendemos. O flutuante era todo revestido com cimento especial para não haver infiltração. Enfim. Fizemos tudo que era necessário e entregamos a obra, mas na verdade quem entregou não fui eu.
Depois de alguns anos, isso aí estava criando problemas, parece que para a Capitania dos Portos. A Capitania estava implicando com essa história, aí o Flávio me chamou. Com o cais fora de uso, e excessiva oscilação do flutuante, uma das poitas quase arrebentou a corrente. O flutuante não chegou a ser ativado.
Eu fui ao Rio conversar com Dr. Flávio, e com ele fui até a Aeronáutica. Fomos lá na Aeronáutica e eles deram ordem de afundar o flutuante. Isso foi na década de 1950.
Eu havia levado para lá todas as plantas, tanto da construção como o projeto para o afundamento do flutuante.
Aí eu afastei aquele pessoal todo de lá e combinei tudo com o governador, Jones dos Santos Neves. Eu fiz o seguinte: tirei o tampo, que servia de entrada. Tinha também uma escada. Aí fomos lá, fui para primeira e última vez ver o bicho, que estava todo enferrujado. A água tinha entrado nele. Aí eu falei com Félix, empregado que estava ali, e expliquei tudo a ele. Eu disse para ele apanhar uma, duas ou três bananas de dinamite e amarrá-las, botar o pavio dentro de uma delas, e colocá-las na proa do flutuante, para ficar mais longe das pessoas.
“Você pode botar e calçar. Leva uma pedra, um pedaço de pau, o que você tiver lá. Para calçar e o bicho não rolar. Depois você acende o pavio. Agora isso aí tem um minuto.”
Aí ele fez, eu fiquei lá fora, na ponte. Ele botou, furou, saiu, pegou a cartela encostou. Aí que o negócio explodiu. Explodiu, mas rachou para o lado. A água entrou e foi para o fundo em, mais ou menos, dez minutos. Mas ele foi arrastado do lugar onde estava, lá mais ou menos uns quinhentos metros fora da barragem. Está lá até hoje, nunca mais ninguém mexeu.[O entrevistado se equivocou neste ponto. Embora tenha sido relatado a ele o reboque e o afundamento do flutuante um pouco distante da praia, na verdade a estrutura de concreto armado foi afundada bem ao lado do Cais do Avião, e seus restos estão lá até hoje.]
O edifício foi construído para durar, porque naquela ocasião era uma época muito importante, foi o início da Segunda Grande Guerra. Então já se estava prevendo dificuldades inúmeras. Para construir aeroportos demorava muito. Então o Brasil foi um dos primeiros a construir estações de embarque para aviões. Porque nós tínhamos o Catalina, tinha o Dox, tinha vários, centenas de aviões e anfíbios que pousavam lá, além de hidroaviões.
Seguramente, havia no Brasil, ao todo, uns 50 hidroaviões… por aí, em vôos regulares, comerciais.
[Álvaro: “Olha, o Sindicato Condor tinha 16. Isso eu sei porque eu vi informações oficiais, a empresa é filiada ao Ministério da Aeronáutica, que informa isso.”]
E no caso, três cais de hidroavião, um aqui em Vitória, outro em Salvador e mais um no Rio de Janeiro.
[Álvaro: “Em muitos lugares o hidroavião era atracado em rampas improvisadas, acontecia isso em Natal, por exemplo. Eram locais improvisados. Estrutura aeroportuária completa só havia em Vitória, Rio de Janeiro e Salvador.”]
Agora, naquele tempo ainda havia muito poucos hidroaviões. Quando eu estava mexendo com isso, havia muito pouco, porque o mundo estava em guerra. A demanda era grande, mas o nosso país estava voltado para Europa. Eu, por exemplo, fui convocado durante a guerra, mas não fui. Fui depois, desligado. Meu primo foi convocado e foi, porque ele era — como se diz? — ele era voluntário. Eu não fui como voluntário. Eu estava noivo de Dulce.
Durante a construção do cais de hidroavião de Vitória apareceram alguns problemas, que até hoje existem, problemas de construção mesmo. Ele não tem telhado, isso aí, é uma cobertura, mas lá em cima tem umas placas de papel e — como é que é aquilo? — um piche, papel coberto com piche, para não penetrar água. Mas sempre penetra. Fizemos várias reformas. Não pudemos pôr telhado porque aqui tem muito vento. O vento arranca tudo.
O primeiro avião que pousou aqui trouxe o Dr. Flávio. Esse eu vi, que eu estava esperando por ele. O cais ainda não estava pronto. Foi o hidroavião da Pan-Air. Um catalina.
[Álvaro: “Catalina é um hidroavião de fabricação norte-americana. Ele existe até hoje voando pelo mundo todo”]
Esse é um avião que voa muito pouco. Para você ter uma idéia, a velocidade média desse avião é de 200 km/h.
[Álvaro: “A velocidade do hidroavião é muito menor por causa do arrasto excessivo. Aquele flutuante dele, que é necessário que ele leve, pesa muito e provoca muita resistência ao ar, reduzindo a velocidade final. Ele tem aquelas duas “lanchas” — flutuadores — embaixo. Então, aquilo tem peso e arrasto. Chama-se arrasto ao atrito. Esse foi um dos motivos pelos quais o hidroavião foi abandonado. A partir do momento em que o Brasil passou a ter uma estrutura aeroportuária razoável, o hidroavião deixou de ser utilizado. Na verdade ele não morreu de todo, mas o avião convencional tem muitas vantagens em relação ao hidroavião. Ele é mais econômico, e de mais fácil manutenção.”]
Só para você ter uma idéia, um DC-3, esses aviões comuns que antigamente pousavam aqui em Vitória, levavam cada um 28 passageiros. A velocidade de cruzeiro era 260, 280 km/h. Mas havia também DC-3 que pousava na água, com adaptações que substituíam o trem de pouso. Inclusive os DC-3, que depois da guerra continuaram voando, pousando em terra, esses também eram aviões de pouca velocidade, cruzavam 280 quilômetros, mas levavam uma carga grande. A gente decolava com dois mil e duzentos quilos. Com dois motores de 1.600 cavalos.
Os DC-3 transportavam carga e passageiros. Teve um ano em que eu mandei um jipe para Maceió num deles num DC-3 147, que é de terra mesmo.
Havia muitos modelos de hidroavião. O mais antigo que eu me lembro, — eu fabriquei um, quando criança — era o Dox. (Eu fazia aeromodelo para as meninas, porque eu adorava aviação. Depois de velho eu ainda fiz um. Brincava com aquilo no… como é que chama aquilo lá? No Ibirapuera [São Paulo].)
[Álvaro: “O cais ficou ativo até 1943. O que aconteceu foi o seguinte: a maior parte dos aviões que voava no Brasil naquela época era de fabricação alemã. Eram aviões Junker e Dornier em sua maior parte. Em 1942 o Brasil entrou em guerra contra a Alemanha e aí cessou o fornecimento de peças de reposição de aeronaves e tudo. As empresas aéreas tiveram dificuldades, elas canibalizavam alguns aviões, ou seja, tiravam o avião de rota e iam passando peças dele para outros aviões que precisavam de manutenção. Isso foi diminuindo a frota de hidroaviões e a sua eficiência. E naquela época o hidroavião já apresentava uma série de desvantagens operacionais e econômicas em relação ao avião tradicional.
E começou a haver um crescimento da estrutura aeroportuária do Brasil. A frota aérea brasileira, que era essencialmente de fabricação alemã, foi modificada, passou a ser essencialmente norte-americana. Os aeroportos marítimos morreram em função disso.
Quando a guerra chegou ao fim, os Estados Unidos se viram numa situação interessantíssima. Durante a guerra, eles tinham desenvolvido vários aviões de transporte. Um desses aviões era o chamado C-47, fabricado pela Douglas, que hoje também fabrica o MD-11 e outros mais. No final da guerra havia mais de 2.000 mil C-47 prontos e voando. Com o fim da guerra não havia mais utilidade para aqueles aviões. Eles eram aviões que transportavam tropas, equipamento e tudo mais.
Não se podia simplesmente sucatear esses aviões no final da guerra, porque havia a indústria aeronáutica americana que fabricava suas peças. Se isso acontecesse, toda a indústria quebraria. Então o que os americanos fizeram? Eles adaptaram esses aviões para transporte de passageiros. O avião adaptado passou a se chamar DC-3. Era o mesmo C-47 adaptado para uso civil, para o uso comercial.
Esses aviões, eles foram vendidos para empresas aéreas do mundo todo a preço de banana. Por quê? Porque a empresa aérea comprava o avião, fazia as adaptações colocando poltronas etc.
No momento em que se precisasse de peças para reposição, elas então eram vendidas a preço real.”]
O Brasil depois passou a produzir peças…
[Álvaro: “Foi por causa disso que surgiu naquela época uma quantidade imensa de empresas de aviação. Era muito fácil comprar o avião, era barato demais, só que a manutenção era cara e as empresas quebraram em seguida.”]
Algumas empresas não faziam manutenção de qualidade, o que deu origem a uma série de acidentes. Aí o governo botou ordem na casa e passou a fazer uma série de exigências.
Entre 1944, 1945 e daí até meados da década de 50, as empresas aéreas brasileiras operavam basicamente o DC-3. Era o avião padrão do transporte aéreo comercial brasileiro. Depois disso a Douglas mesmo começou a desenvolver outros projetos aéreos e lançou o DC-4, DC-5, DC-6, DC-7. O primeiro avião a jato dela foi o DC-8, que foi um avião lançado depois do Boeing 707, que era americano.
A Boing era concorrente da Douglas e lançou o segundo jato comercial do mundo. Depois disso a Douglas lançou o terceiro.
O primeiro jato comercial do mundo, para transporte de passageiros, foi o da empresa aérea inglesa […] Haveland, e se chamou Comet. Essa empresa pagou o preço do pioneireirismo. Eles não conheciam algumas peculiaridades do avião a jato de grande porte, que é a questão da fadiga do material, e os primeiros Comets sofreram dois acidentes aéreos horrorosos. E… então houve uma investigação violenta para esclarecimentos, descobrindo-se o problema da fadiga de material provocada nos vôos de alta velocidade. Esse problema foi logo corrigido.
A Boeing, que estava com o projeto do jato na prancheta, aguardou mais um tempo até que se descobrisse a falha. Quando soube dos resultados, corrigiu e aprimorou seu projeto, lançando o seu jato sem aquele problema e acabou com a concorrente inglesa. Daí para frente os Estados Unidos dominaram a indústria aeronáutica de fabricação de aviões comerciais no mundo todo, principalmente de aviões de grande porte, posição que eles mantêm até hoje.”]
Hoje, para você ter uma idéia, um Concord voa a 2.200 km/h. Para você ver, 260 para 2.000 km/h.
[Álvaro: “Um jato hoje voa de 900 a 1.000 km/h. Existem jatos que voam a partir de 800 quilômetros por hora. Os jatos regionais, de menor porte, eles voam entre 800 e 900 km/h. E os jatos intercontinentais, de 900 a 1.000km/h. Para distâncias maiores, o avião é projetado para voar mais rápido.”]
E o motor também é diferente. Antigamente era motor a pistão, como motor de automóvel. Depois passou a ser turbo a hélice. Era uma turbina sem pistão, que rodava uma hélice. Ainda existe hoje. E depois passou a ser turbo a hélice.
A asa do avião é lisa embaixo e faz uma curva na parte de cima. Ela é alta na parte da frente, chama-se bordo de atraso, faz uma curva para baixo e afila na parte de trás, que é o bordo de fundo. Então o que acontece? Como ela é reta embaixo, o ar passa embaixo numa velocidade constante. Como ela tem uma curva em cima e ela se afila, o ar acelera quando passa na parte de cima. A parte de cima se torna mais leve do que a parte de baixo, invertendo a lei da gravidade e formando uma força que empurra a asa de baixo para cima. Forma então uma região de turbulência. À medida que o avião vai acelerando, maior é a força que o empurra para cima, ou seja, maior é a velocidade do ar que passa por cima e menor é a velocidade do ar que passa por baixo. Quando essa força se torna igual ou superior ao peso do avião, o peso do avião zera. Então ele tem um negócio chamado velocidade de sustentação, que o faz flutuar no ar. Nessas condições ele gasta menos combustível, pois pode reduzir a velocidade dos motores.
O avião só usa motor pleno na decolagem e no freio, na hora de pouso. No ar, ele precisa apenas manter uma velocidade de sustentação, reduzindo a potência do motor. É a mesma técnica de vôo dos pássaros. A asa do avião é copiada da asa dos pássaros.”]
Mas a gente não pode correr muito porque tem que parar em certos cantos. Por exemplo, os ingleses e os franceses fizeram um acordo. Para fazer o primeiro avião a jato, supersônico, que ultrapassasse a velocidade do som. O som tem velocidade de 1.200… 1.220 km/h. Então fizeram o Concord. Ele voa a 2.200 km/h. Acontece que não tem freguês para ele.
E para fazer isso, ele é muito fino, tem asa demais, tem um nariz mecanizado, abaixa o nariz para poder decolar e pousar, está vendo? Então o custo para o passageiro acaba sendo muito alto. E estão sendo usados hoje mais para quem quer pagar. Vindo de Londres para Nova Iorque uma vez por semana, ou duas, ou todo dia.
[Álvaro: “O Concord foi suspenso do Brasil.”]
Agora o Brasil não aceita. Por causa do barulho. Quando ele rompe a muralha do som dá um estampido que quebra tudo. Aquilo é o ar, você não vê, mas, à proporção que o avião vai aumentando a velocidade, ele vai comprimindo a camada de ar, como se fosse se espalhasse aqui uma rama de algodão e depois fosse apertando aquele algodão. Quando chega num ponto, o algodão envia ao ar, é mais fraco do que a força do avião, e dá um estrondo e aquela onda de som caminha seis vezes a velocidade que foi gerada. Com isso ele dispara na frente do avião a 12.000 km. É até perigoso para outros aviões, que aí cria um problema.
Para a minha biografia ficar mais completa, eu sou aviador, eu sou piloto de avião. Eu tenho mais ou menos duas mil e seiscentas horas de voo.
Nelson de Albuquerque Silva. Foto Paes, Vitória, ES. 1948. |
O avião que eu pilotava qualquer um pode pilotar, o Zezeco pilotava e não era piloto, e ele ia uma cidadezinha comigo. Porque o perigo é na hora de pousar, mas lá em cima eu dava para a minha sogra!
Todo pessoal da minha família voou. Minha mulher quase morreu de medo. Eu peguei um temporal, e tivemos que pousar. Ela sujou o avião todinho. Até hoje não me pagou a limpeza do avião.
Nos hidroaviões eu voei duas vezes como passageiro. Como piloto eu viajei daqui a Baixo Guandu, e daqui a São Mateus. Era um avião que pertencia a Wilson Freitas. Quando ele vinha aqui eu voava com ele. Eu voei muito com Wilson Freitas, aliás, o primeiro vôo que eu dei na minha vida foi com. Ele quis saber se eu gostava de avião, e fez dezenas de piruetas. Quando ele parou, eu falei: “Não tem mais? Acabou?”
[Álvaro: “Wilson Freitas é considerado um dos maiores remadores que o Espírito Santo já teve. E era um prático do Porto de Vitória, um profissional que trazia navios para o porto e botava navios no mar. Ele morreu num acidente aéreo com avião do Aeroclube do Espírito Santo em Barra do Itapemirim. Ele, de brincadeira com os amigos que estavam num jipe, fez um vôo rasante, o avião dele bateu com a asa na capota do jipe e explodiu. E ele se queimou horrivelmente e foi transportado para Cachoeiro de Itapemirim, morrendo oito horas depois na Santa Casa de lá.”]
Eu sempre adorei aviação. Quando eu era garoto, tudo que tinha avião mexia comigo. Então, aos quinze anos, no tempo da Escola Técnica de Campos, eu fiz um, e naquele tempo não havia solda de alumínio. Então eu procurei tudo quanto foi jeito, mas não consegui, ninguém soldava. Eu queria fazer de alumínio, eu tinha uma fotografia do Dox, e eu fui passei, naquele tempo eu desenhava. Passei para o papel o desenho do Dox perfeitinho. Cortei todinho em alumínio, peça por peça e montei com cola. Havia uma cola fabricada na Alemanha e eu colei as partes por dentro para não ficar preto, porque a cola era preta, colei tudo. Estava pronto meu Dox. O motor, tudo, tudo, tudo. Ele tinha um metro, mais ou menos, de comprimento e asa, porque a cauda é proporcional. Eu fiz tudo: janela e tudo o mais.
Eu também fui dono de uma empresa fabricante de ultraleve, a Planatec, em São Paulo. Foi no final do período de minha permanência naquele Estado. Depois eu desisti de tudo e vim embora trazendo comigo dois ultraleves. Um eu vendi a um advogado de Vila Velha e o outro, nem sei que fim levou.
Ultraleve. |
Bom, na época da construção do cais de avião, em Vitória, eu era como um inspetor. Eu não tinha cargo definido. Eu admitia, pagava e demitia empregados e também ia ao Rio de Janeiro para atender ao Dr. Flávio. Eu fazia de tudo praticamente.
Nessa época eu morava aqui, numa pensão, num hotel, então, foi quando eu conheci Dulce [esposa], em 1941. Trabalhávamos na construção eu, o Dr. Carlos Duenck, e Orlando Paulielo, que nem sei se vive. E eu saía de manhã cedo, pegava um bonde, que tinha aqui, Santo Antônio, descia lá e ia para o cais e passava lá o dia.
Eu gostava de montar esse negócio, Orlando Paulielo não se dava comigo. Ele era escriturário. E da família Paulielo tinha lá o Nino Paoliello, que já faleceu. E Carlos Duenck era pagador como eu. Ele era o engenheiro alemão que trabalhou comigo na represa de Macuco, em Cachoeiro de Itapemirim e em Vitória. Trabalhamos juntos um tempo.
Quem é que trabalhava mais… O corpo era pequeno. O resto era operário. Nós tínhamos uns trinta operários. O corpo de operários, de técnicos não era muito grande. Houve um outro engenheiro também, Dr. Jurucey Pocu de Aguiar, que era do Rio e veio para Vitória acompanhar a obra. Ele não se deu bem, brigou com o Dr. Carlos e acabou saindo.
Tem uma passagem muito gozada, vou abrir um parêntesis, que o Flávio… num dos dias que o Flávio, ele vinha todo mês aqui, e disse:
“Nelson, faz o seguinte. Apanha esse revólver, leva num armeiro aí para mim, que de vez em quando ele masca e não sai a bala.”
E eu comecei a usar arma. Nessa época eu estava fazendo a obra de Murundu e Bubu, lá para o lado de Cariaciaca, e não estava andando de lancha, mas de caminhonete.
Quando a Morrison estava construindo, ela tinha uns caminhões todos de aço, que atrapalhavam, ficavam no meio da estrada e não me davam passagem. Aí eu pedia, insistia, mas eles não davam. Nesse dia eu estava com o fígado azarado e com o revólver na cinta. Aí eu falei assim:
“Sai esse inferno desse […] de caminhão aí. Buzina.”
Celso buzinou e ele nem aí.
“Buzina mais duas vezes. Se ele não abrir eu taco fogo.”
Aí buzinaram duas vezes e não resolveu. Então eu saí e abri a porta.
“Seu Nelson!”
“Não tem Nelson, não tem nada.”
Pá! No pneu. Pá! Pá! Terceiro tiro. Ti, ti, ti, ti. Eles encostaram. Aí eu já estava verde.
Eu saí com o revólver na mão, abri a carroça do caminhão, mandei o americano sair, xinguei ele de tudo quanto era nome que eu tinha no meu vocabulário, ninguém piou. Trinta e tantos homens em cima de um caminhão, e ninguém piou.
Para você ter uma idéia, Dr. Flávio pediu que eu fosse mergulhar assim no cais do porto. Eu fui na Groenbilv, e lá me apresentei e falei, muito bem:
“Eu estou com uma obra aí, e queria descer a 14 metros de profundidade aqui no cais.”
“Pois não”, e chamou lá um camarada.
“Olha o Dr. Nelson vai descer…”
Me botaram no escafrandro, entrei, abriram um cilindro, entrei para o cilindro, fecharam o cilindro.
Quando a pressão equilibrou-se, abriu a porta de baixo eu desci, e estava a 14 metros de profundidade.
De sapato molhado, tudo molhado lá embaixo e eu andando. Andei uns vinte metros de comprimento, um quadrado. Andei lá embaixo, fui duas vezes lá embaixo. Lá não se vê a água, porque a parede é de aço. Você vê a água onde a parede encosta-se ao chão e não é certo o chão. Tem uma pedra aqui, outra lá, mas a água não entra porque a pressão é maior.
Lamentavelmente o cais foi pouco utilizado, por não ser economicamente viável. Mas ele ainda pode vir a ser utilizado, até pelo governo.
Onde o hidroavião foi muito usado foi na Amazônia, e é usado até hoje. Agora diminuiu por causa do helicóptero. O helicóptero fez desaparecer a utilidade disso.
Bom, agora eu vou falar a respeito do aeroclube.
Eu fui para o Rio, quem arranjou esse emprego foi até a Dulce. O chefe dela estava procurando um gerente e queria alguém que conhecesse aviação. Como eu era piloto com mais de mil horas de vôo, segui para o Rio e me apresentei lá. Fui muito bem tratado, e já conhecia algumas pessoas lá da companhia. Depois fui contratado para ser agente de cidade.
[Álvaro: “Do lado do Glória, tinha um café. Este café, o local existe até hoje. É uma tabacaria que, perto do Glória, naquela ruelazinha que liga o Glória ao Fábio Ruschi, não tem? Tem a tabacaria.”]
E em frente eu tinha o meu escritório, onde tem o edifício Martinho de Freitas. Ali tinha um prediozinho velho, que era a loja, logo depois do Diário Oficial, que ficava na Capixaba. Era um escritório de representação, que eu consegui uma representação da Aerovias Brasil S.A., e eu já era piloto.
Eu tinha ali a agência de aviação. Era bonita a agência.
Essa Agência durou de 1945 a 1954.
A loja funcionava ao lado da Larica [avenida Jerônimo Monteiro, centro de Vitória, ES]. Montei lá, tudo direitinho… tem até fotografia. Eu fiz um contrato com eles, em que, dependendo do desenvolvimento, eu poderia voltar, vir a ser funcionário da companhia. Então vim para cá, e fundei a empresa. Eu tinha boas relações. Eu fiz a loja, uma agência de turismo: Vitória Transporte e Turismo Ltda.
Eu já tinha a casa pronta mais ou menos, companhia. Construí, lá no aeroporto, um galpão de mais ou menos uns oito metros de altura, por dez para botar lá as coisas.
Eu fui criando amor por aquilo, e fiquei nove anos nisso. Por fim a companhia me convidou para ser gerente de cidade. Gerente de cidade é um cargo já quase de diretoria. Eu me dava muito bem com todos eles, tivemos o acidente aéreo aqui, morreu um piloto, morreu um empregado meu, o sujeito decolou sem ordem, estava um tempo muito ruim. Foi um vôo de chefe de instrução, para ver se o avião estava com […], porque o avião veio do Rio com o comandante Carlos Gomes Remo. O avião ficou vários dias aqui porque chovia muito. Tinha mais ou menos uns trinta aviões parados, aviões de guerra. Americanos.
Eu não me dava com o Remo. Tive um aborrecimento com ele. Eu estava pilotando avião. E houve, durante um período em que os comandantes estavam facilitando muito, e os pilotos traziam, do norte, artesanato de conchas, água de coco com cachaça, enfim, todo avião trazia um negócio daquele. Quatro, cinco caixotes. E os exploradores ali do comércio do aeroporto eram muito amigos.
[Álvaro: “Naquela época, havia bases americanas ainda no Brasil, principalmente no Rio Grande do Norte, e muitos tripulantes de aviões faziam contrabando do Rio Grande do Norte para o Rio de Janeiro, sobretudo.”]
Um dia chegou uma circular. Era uma circular séria. Se eu autorizasse o desembarque daquelas coisas seria demitido. Então, levei para cada comandante tomar conhecimento. Eles tomaram conhecimento e assinaram, menos Remo.
“Ah, não assino nada.”
“Então o senhor não traga. Se o senhor trouxer, fica aqui.”
No dia de autorizar o vôo fazia um tempo horrível. Eu fui até o aeroporto e Rômulo, que era um empregado meu, fez o romaneio de embarque. Eu estava em pé no galpão, quando Remo chegou. Eu disse:
“Aqui não pode passar, o tempo está fechado, só quando o aeroporto abrir.”
“Então eu vou ficar lá dentro do avião, o senhor faz favor, manda me avisar.”
Ele foi lá para dentro do avião, sentou lá para conversar com os mecânicos e tudo mais. Aí chegou um, dois, três, quatro, cinco, perguntando se podia ir eu digo negativo, negativo, negativo. Um empregado também, eu disse que não podia voar. Mas ele foi. A comissária chegou, rádio-operadora, e disse que podia ir. Á aeromoça eu disse: negativo. Vôo de teste ainda manda para o comissário. Ela sentou lá no aeroporto e ficou esperando. Salvei a vida dela. Aí houve uma melhora de tempo, e começou com muita gente andando por lá. Então eu chamei a torre do aeroporto para saber se já estava livre, e ela disse que não. Ela abrira provisoriamente só para um avião da PanAir pousar, porque estava com o motor falhando. Aí eu fiquei lá observando: o PanAir pousou, circulou e, falhando mesmo, encostou lá no pátio. Depois de algum tempo o aeroporto continuava fechado. Aí alguém me avisou que um avião nosso estava rodando. Ia em direção à cabeça da pista. Ninguém havia autorizado e eu mandei que ele regressasse. O piloto desligou o rádio e continuou. Foi lá pra cabeça da pista e a gente não via mais, só ouvimos o ronco dele passando em frente à estação. Nunca mais vi. Eles morreram, e os destroços nunca foram encontrados.
Eu tenho a impressão de que ele decolou daqui do aeroporto completamente fora de controle. Você, ao decolar, fala com a torre e pede autorização, e ela orienta a decolagem, indicando a pista faixa de segurança etc.
A faixa de segurança é como um túnel aéreo, uma aerovia. Esse túnel tem, em relação ao solo, a altura que deu a torre, e depende da viagem e da conformação do trem. Onde é que ele der, mil e duzentos metros, ele vai voar a mil e duzentos metros. E isso aqui tem trinta quilômetros de largura. Ele pode variar dentro dessa faixa, trinta quilômetros, e não pode sair. Para sair desse lugar ele tem que falar com a torre. A cada trezentos metros pode ter um avião.
Mas, para você fazer uma idéia, o tráfego Nova Iorque-Londres é tão intenso que estão estudando o problema da […] de ficar sem piloto. Querem tirar o piloto do avião e fazer o vôo automático.
Foi uma pesquisa que levou mais de sessenta dias. Não rigorosamente, mas os… a semana, os sete dias foi tenso. Eu bati com a asa do meu avião procurando por ele, lá perto de Guarapari. Porque tinha caído. E veio, do Rio, o comandante Guimarães, que ficou uma semana comigo.
Acontece o seguinte: quando você está autorizado a voar, você vem voando e quando chega tem a altura de bloqueio. Chama-se isso altura de bloqueio. Todo aeroporto tem uma altura de bloqueio. Depende da situação topográfica. Aqui são mil e duzentos metros. Você chega sem enxergar nada, o avião vem voando. Quando esse aparelho está aqui em cima, quem passa desse ponto, de mil e duzentos metros, aqui tem um ponteiro, marcando zero. Zero é a posição da estação em relação ao avião. Enquanto estiver zero o piloto sabe que a proa dele está virada para a estação, e ele está a mil e duzentos metros de altura. Tudo indica lá. Quando ele passa um minuto de lá, esse ponteiro vira, e marca para cauda, ele está com a estação na cauda. Então você faz uma curva de dois ponteiros. Ele tem que fazer uma curva, que leva dois minutos. Mas é impressionante. Tudo é marcado. É dois minutos e você está na cabeça da pista.
[Álvaro: “Você acompanha a posição que a agulha do gônio está te mostrando. Que ela está recebendo onda de rádio, e vai te acusando a quantos ângulos você está.”]
E com o relógio na mão marcando. São dois minutos. Se passar de dois minutos alguma coisa errada. Você faz a curva, mas primeiro você entra num afastamento. Você tem autorização para se afastar. Quando você chega a 120 graus, você inicia a curva dos dois ponteiros. Quando você está no retorno, a duzentos metros da cabeça da pista e a duzentos metros de altura, você vê o aeroporto. Se você não vir o aeroporto arremete porque está fora do lugar, alguma coisa, não está certo: ou tem neblina, baixou o teto, e você sai fora. De maneira que isso tudo é controlado assim.
Eu comecei a sentir que havia alguns problemas, na aerovia. Eu fui lá, eu tinha um grande amigo, que era o diretor comercial. Era o Moura. Um dia eu comentei com ele, que disse: “olha Nelson, você é meu amigo já há sete anos. Isso aqui tem política para diabo, o Ademar é que é dono disso aqui. Tinha morrido o presidente da Aerovias, Olavo Fontoura, num acidente de helicóptero. Ele era também dono da Fontoura White (que produzia o Biotônico Fontoura)
Depois da morte de Olavo Fontoura, Ademar perdeu um pouco o apoio necessário, perdeu muito dinheiro, e a Aerovias estava dando prejuízo, você está vendo aí. Eu normalmente dispunha de quatro ou cinco passagens diárias para distribuir de graça: para políticos e amigos
Meu amigo Moura disse:
“Você se prepare porque a coisa aqui está ficando feia. E estão querendo vender essa empresa para a Real”, que era uma outra companhia de aviação do mesmo porte da Aerovias. E a Aerovias, a Real também está sendo vendida para a Cruzeiro.
“Você toma cuidado porque você está se dedicando praticamente só a isso”, e eu estava mesmo.
“Você é piloto, você não quer vir voar aqui?”
Eu disse:
“Olha, é um troço bom, mas não serve. Você precisar se matar para poder ganhar. Eu não estou com vontade de me matar por dez contos. Eu vou pensar, eu agradeço.”
Foi quando Dr. Flávio chegou do Rio de Janeiro, cheio de papéis em baixo do braço.
“Preciso de você para analisar isso aqui. A gente conversar depois.”
“O que é isso?” Sentamos lá no hotel, e ele descascou o verbo.
Um ministro, D. Franco, — ah como tinha gente boa. Aí que eu comecei a dizer o nome dele, naquele dia parei. D. Jesus e Ribas de Miguel, D. Pedro Gonzalez Bueno. Para todos os efeitos, para os ministros que vinham para cá, eu era D. Nelson. D. Flávio, era tudo Dom. E são meus amigos.
E os ministros vieram aqui, esses dois ministros, me procurar. Foram lá em casa conversar. Quem indicou o meu nome foi o dono da refinaria de petróleo de Manguinhos, do Rio de Janeiro.
Ele foi lá em casa com o cartão do ministro. Eu fiquei sem jeito de dizer que não. Eu disse a ele que pelo menos ia estudar. Mas eu tinha outra pessoa para estudar comigo. Eles propuseram montar duas usinas, uma no Rio, outra em São Paulo.
Dr. Flávio:
“Eu trouxe isso aqui para você ver. Você tem o tempo que você quiser, uma semana ou um mês. Se você se interessar pelo assunto, vá até o Rio para nós conversarmos.”
“Está ok.” Peguei aquela papelada toda, me debrucei sobre ela e estudei mesmo. Achei que a idéia valia a pena. Era a duplicação da resistência de um vergalhão de aço através da torção. Você poderia economizar trinta por cento do rolo e de terra, diminuir doze por cento do concreto armado, sabe-se lá quanto você estava economizando. E pagar dois cruzeiros? Um cruzeiro e cinqüenta? Que era o que eu ia cobrar. Eu fornecia cinco toneladas por mês. Isso era uma maravilha.
Aí eu conversei com Dr. Flávio:
“Nós não temos máquina, mas eu estou de acordo com tudo. A exploração da patente só vale quinze anos, não tem prorrogação, vai até vinte anos. Está bem, dá tempo para ficar rico.”
Eu disse:
“Olha Flávio, o problema lá é ver essa máquina, ver se eu vou poder fazer uma máquina dessa aí.”
Fui até lá. Eu olhei, um trambolho.
Ele tinha um torno velho, mas eu não queria desfazer do torno, que era Dr. Flávio, aí eu pensei, tenho que levar esse torno para São Paulo. Aí eu falei:
“Olha Dr. Flávio não é muito difícil levar esse torno para São Paulo?”
“Ah, você deixa comigo. Eu boto esse torno lá a hora que você quiser.” Ou seja, me ferrei todo. Tenho que pegar o torno.
Os vergalhões eram torcidos um a um.
Quando o negócio [torno] chegou eu disse:
“Olha, Dr. Flávio, eu só quero um favor: que o senhor me dá a liberdade para fabricar a máquina que eu quiser.”
“Você tem liberdade até de jogar essa porcaria no lixo”.
Então eu peguei a caminhonete, fui para o Aeroporto, Campo de Marte (primeiro aeroporto do Estado de São Paulo). Tinha um sujeito chamado Paulo, que comprava tudo quanto era avião, e peça de avião.
Fiz projetos de todas as máquinas. Agora não tem mais nada, está tudo jogado fora. Tinha até de uma máquina de forno. Eu nem sei se está aí ainda.
Aí eu disse o seguinte:
“Paulo, vamos arranjar engrenagens de avião (Fiz uma porção delas). Eu quero essa aqui. Com doze dentes, vinte dentes, quarenta. Você me arranja isso?”
Comprei engrenagem que não acabava mais. Eu pretendia reduzir o tempo de trabalho e ganhar força. Os eixos ligados. Até com um dedo, se eu quiser, ela se mexe. Eu fiz isso. Fiz todas as máquinas.
Fiz um dispositivo para esticar o ferro, porque enquanto ele girava vai entortando. Fiz um sistema de catraca, para recuar. Tudo sozinho. Perguntei nada para o Flávio, perguntei nada para ninguém. Tudo da minha cabeça.
Cada vergalhão ficava pronto em,no máximo, vinte minutos. Eu tive também uma máquina que fazia três fios de cada vez, dois fios de cada vez. É, mas não podia passar de três não, porque às vezes arrebentava e aí dava um trabalho danado.
Em um mês dava para fazer 50 toneladas. Eu tinha lá seis máquinas.
A parte de divulgação ficou por conta do Flávio. Ele escrevia em uns livros. A parte comercial era comigo.
Não haveria dificuldade se um bandido não tivesse vindo da Espanha e montado aqui em São Paulo, da Alemanha, da Itália, e montado aqui as máquinas. Tudo escondido lá, e estava vendendo aço. Já tinha vários prédios sendo construídos com aço torcido. E nós não sabíamos.
Nós tivemos que entrar com uma ação contra eles. Nós fomos os únicos a obter o direito de explorar aquela patente.
Dr. Flávio não acreditou nisso. Veio a São Paulo e eu arranjei então o melhor advogado de patente. O advogado pediu uma fortuna.
Isso aconteceu em 1954.
Aí nós estudamos uma forma de arranjar o dinheiro. O capital da nossa firma era treze milhões e o advogado queria quinhentos milhões.
Flávio descobriu uma pessoa que era amiga desse advogado. Essa pessoa conversou com o advogado.
Então o advogado acabou nos propondo o seguinte:
“Vamos fazer o seguinte: nós fazemos um contrato, e quando vocês conseguirem produzir e ganhar dinheiro vocês me pagam parcelado.”
Eu pensei: “é um negócio da China, vamos levar toda a vida para pagar, mas está bom.”
Entramos então com uma ação, houve despacho de busca e apreensão, e nós entramos na fábrica do sujeito, que ficava pertinho da USP. Nós pegamos um táxi e levamos o advogado. Fomos em cinco: Flávio, eu, Vanios, que era o engenheiro que trabalhava comigo, o motorista e o advogado.
Não queriam nos deixar entrar, mas entramos assim mesmo, e pedimos para falar com o chefe. Veio só o meu inimigo, que mais tarde deu um tiro na cabeça. Eu disse:
“Olha, esse é o nosso advogado, nós somos da empresa Armaduras Helitraço de São Paulo S.A.”
Foi um pedido de busca e apreensão. Filmamos tudo, fotografamos. Conseguimos todas as provas.
Aí foi bom, porque tinha um ponto muito interessante numa máquina dessas — que eu estava construindo as minhas ainda —, e me abriu a cabeça e melhorei muito, todas as minhas máquinas eu melhorei muito com os troços que eu vi lá.
No fim de tudo, dissemos:
“O senhor sabe que sua fábrica está sendo fechada, não é?”
Aí veio o pessoal todo de São Paulo para lá, para ver aquilo, não acreditavam. Lacramos tudo e fomos embora. Aí eu tratei de fazer uma máquina da noite para o dia e tratei a trabalhar.
Nós então fazíamos também estruturas. Aumentamos o negócio.
Essa estrutura era um pilar cheio de ferro. Era de vários tipos: uns que tem quatro, outros de quarenta vergalhões. A quantidade varia com a finalidade, se o prédio fosse alto, o esforço seria maior e a estrutura deveria estar preparada para dar a sustentação necessária. As amarrações eram feitas com uns vergalhões fininhos chamados estribos. Eu importei da Itália duas máquinas de dobrar ferro para preparar essas amarrações.
Eu vendi a máquina de dobrar o ferro, sabe para quem? Para o filho do Ramos, que havia se formado em engenharia e me escreveu pedindo para comprar a máquina. Eu já tinha desistido da fábrica.
Nelson de Albuquerque Silva no cais do avião, em Santo Antônio, Vitória, ES. Foto Álvaro Silva. 2002. |
[Entrevista realizada, transcrita e editada por Maria Clara Medeiros Santos Neves. Reprodução autorizada pelo entrevistado e família.]
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© 2002 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Maria Clara Medeiros Santos Neves, coordenadora do site ESTAÇÃO CAPIXABA, é museóloga formada pela Universidade do Rio de Janeiro e pós-graduada em Biblioteconomia pela UFMG, autora do projeto do Museu Vale e de diversas publicações. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)