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No vazio da onda

Comer uma pizza em Honolulu? Entre naquela fila, pague o preço, depois entre em outra fila e pegue a pizza. Finalmente, entre em outra fila para candidatar-se a uma mesa no restaurante lotado e, em a conquistando, equilibre como puder sua pizza no prato de papelão. A partir desse momento o desconforto o leva a uma recordação agradável nesse bom exercício de comer pizza. Lá está a Sophia Loren fabricando pizzas numa rua de Nápoles. O filme? Pão, amor e fantasia (claro, no Trianon de Jucutuquara). A imagem é a da Loren atraindo consumidores de pizza com sua beleza e um melodioso canto regional.

Estão assim fincadas as balizas que medem a distância entre a multidão dos devoradores de pizza na capital do arquipélago das antigas ilhas Sandwich e os esporádicos degustadores que não resistem ao tempero e ao apelo da Loren. Em ambos os casos, a meta é o consumo daquela deliciosa lâmina de trigo tostado, com queijo derretido por cima, mas com um mundo de diferença entre eles: o consumo na idade industrial, produção em série, e o consumo de um bem artesanal. A grande quantidade de pessoas que podem comer uma pizza, como em Honolulu, e a pequena parte da população que pode saboreá-la em Nápoles.

Mas já vai longo o nariz-de-cera que de fato quer apenas misturar um pouco de racionalidade a esse festim tropical que Honolulu exibe a um sul-americano perplexo. Com toda cautela, vou me aventurando nos meandros desse paraíso cravado nas longínquas águas do Pacífico. Vejamos. Esta é a praia de Waikiki. Sem pedir informações cheguei até ela acionado por um impulso individualista que ao menos um pouco me livrasse da tirania do Michelin. Releve-se a originalidade zero em se tratando de praia do Havaí. No íntimo, um certo ar descobridor porque principalmente ao olhar para a esquerda vejo a montanha Diamond Head, onde está o vulcão, veterano figurante daqueles filmes da Metro. E aí está. O primeiro apoio familiar encontrado nessas ilhas Sandwich: no céu, pouco acima da linha do horizonte e destacada na imensidade azul do mar, uma tela de cinema imaginária onde vê o sacerdote que se prepara para o sacrifício ritual. Há uma enorme faca que vai ser cravada no coração de Dorothy Lamour, vítima inocente que depois seria jogada nas labaredas do Diamond Head. De repente, surge o John Hall, o mocinho, que salva a bela virgem. No final, os dois se beijam num cenário de pôr-de-sol, silhuetas de esguias palmeiras e uma mesa majestosa onde há montanhas de abacaxis, mangas, bananas e laranjas banhadas pelo famoso tom avermelhado do technicolor da Sra. Natalie Kalmus. Em seguida, em plena Waikiki, os lamentáveis sons da marcha de John Philip Souza, nos tangendo para a Vitória dos anos cinquenta e suas magras segundas-feiras.

Muito bem. Agora é o próprio Diamond em pessoa que me olha a menos de dois quilômetros. Para espantar as últimas dúvidas e ter a certeza de que não se trata de um cenário de papelão, resolvo ir até lá. Passo por um túnel de lava solidificada e chego à cratera agora coberta com uma camada de asfalto. Um vulcão extinto, decretam os manuais, com a sofrível convicção de um conhecimento de sismologia que não terá mais de uns poucos séculos, enquanto a terra guarda seus segredos de bilhões de anos. Por causa disso, por via das dúvidas, antes que um desses segredos me apareça de surpresa, resolvo pular fora daquele buraco. Mas o tempo foi suficiente para me certificar que o Diamond Head é acidente geográfico e não apenas uma sombra na tela do cinema espreitando Deborah Kerr e Burt Lancaster a um passo da eternidade. Uma certa sensação de alívio que só pode ser completamente imaginada por quem esteve ilhado nesta ínsula vitoriense lá pela metade do século passado.

No caminho, de regresso à praia, me detenho numa colina donde se avista grande parte do lado oeste da ilha de Oahu, com sua arrasadora beleza. Hora de pensar em Gauguin, em Stevenson, no Conrad de O pária das ilhas, enfim em todos esses europeus que vieram ver de perto uma das encruzilhadas do mundo nas ilhas dos mares do Pacífico. Hoje os sinais da encruzilhada estão um tanto apagados e a pizza falada no início talvez seja um dos símbolos da mudança, a marca da mudança de hábitos de consumo como ruptura entre o sagrado e as novas necessidades. Ou, como gostariam místicos modernos em geral, a separação de coisas naturalmente heterogêneas. Mas ir por esse caminho é difícil. E aqui os que por acaso estiverem lendo estas linhas talvez devam pular os próximos períodos porque não resisto a explorar um pouco mais esse ângulo da mudança, com algum viés histórico.

Feita a advertência, vamos lá. Luiz Fernando Veríssimo, em crônica de jornal, cita o crítico George Steiner que fala do “longo verão” da burguesia européia, que durou mais ou menos desde a derrota de Napoleão (1815) até o começo da Primeira Guerra, como um “armistício da História”. Veríssimo diz que a generalização tem um defeito por esquecer 1848. Exato. As profecias otimistas de Adam Smith (1776), com apoio na revolução tecnológica, é verdade, produziram uma avalanche de bens econômicos inédita na história humana. Minimizar essa façanha creio que é tão bobo como acreditar que tais bens foram distribuídos parcimoniosamente atendendo ao sagrado princípio da tal “demanda efetiva” que não pode ser transgredida. Quem não “demanda” que se dane.

O alvoroço que essas circunstâncias produziram na Europa. De um lado, os bem pensantes e os bem de vida celebrando os novos tempos sem nenhuma restrição. Do outro, os que duvidavam. Em 1871, explodiu a Comuna de Paris, isto é, mais um movimento dos que se opunham à distribuição dos bens tal como era feita, os que duvidavam. Durou dois meses a ilusão de se instituir uma nova ordem. Hoje, restaram as tristes fotografias dos derrotados líderes do movimento dentro de seus caixões mortuários e a eterna perplexidade dos inconformados com esses novos tempos que produziram tantas novidades promissoras mas carregam velharias de um tempo cruel.

Gauguin nasceu exatamente nesse ano de 1848. Foi corretor da bolsa em sua mocidade mas acabou entrando para o grupo dos que duvidavam. O que haviam feito com a Europa nesses dois últimos séculos? A vida é isso? Pintar esse jarro tendo como única preocupação a luz que o banha? Não. Era preciso voltar a certas origens, era preciso ir à Bretanha, às Ilhas Marquesas, na Oceania, para descobrir elos perdidos nessa brusca ruptura que a Europa fizera com os antigos processos. Ruptura que compreendia vários planos da vida social, inclusive o da existência de uma superpopulação relativa que, ao contrário do que sucedia na época da expansão marítima, passava a ser um problema cuja solução teria de passar ou pelo inconformismo dos que não se adaptavam aos novos tempos e emigravam para o Novo Mundo ou se conformavam em se transformar em mercadoria nas periferias das cidades industriais.

Portanto, havia um mundo ainda intocado e seria necessário vê-lo, saber como funcionavam esses paraísos terrestres.

Deixo a praia e, como é quase hora de almoço, resolvo tomar um drink num bar que o havaiano do hotel me recomendou falando num dialeto que é uma mistura de inglês com uma língua impossível de ser identificada. Como meu inglês capenga é também uma espécie de dialeto individual, nos entendemos bem. “Vá até o John Domini’s. Você vai gostar” — diz ele.

Entro no Domini’s e gosto. Quem não gostaria? No fundo do bar, uma cascatinha natural cercada de palmeiras. Móveis de bambu com almofadões floridos, lustres com luzes multicores. Muita gente, mas o ambiente é agradável porque as pessoas nas mesas conversam suavemente ao som plangente de guitarras havaianas que ouço ali pela primeira vez nessa viagem. Arranjam-me um lugar ao redor de uma grande mesa onde estão outras pessoas, perto de um casal. O barman me sugere um drink chamado “Screw driver”. Nunca ouvi falar. Peço a ele para me mostrar um modelo e ele mostra o copo de um cidadão pouco adiante. O visual me agradou com aquela fatia de laranja na borda lembrando um daqueles anúncios que a revista Seleções publicava no pós-guerra. O barman fala do drink como algo que surgiu durante a corrida do petróleo no Texas, uma coisa assim. Não compreendi bem mas mandei vir. Talvez não fosse o drink ideal para quem vai almoçar. Mas como também o dia estava quente, tudo bem, que venha o “Screw”, inclusive em nome do pós-guerra. Enquanto olhava admirado para aquela beleza de ambiente, ainda que falassem baixo não pude deixar de ouvir pedaços do diálogo do casal ao meu lado. Caí do terceiro andar, como diria mestre Machado. O casal estava tão absorto no próprio diálogo que parecia habitar um mundo exclusivo. Eventuais ouvintes não teriam a menor importância. Meu drink não chegara à metade, não havia nem jeito de deixar de ouvir o que falavam nem outro lugar onde pudesse me sentar.

Resumo da conversa: a moça, bonita, com ares aristocráticos, era de Boston. O rapaz, queimado de sol e vestindo uma dessas camisas havaianas onde a cor mais discreta era o vermelho-melancia, limitava-se quase todo o tempo a ouvir o que a moça dizia. Ambos, americanos de Boston, pude saber mais adiante. O rapaz veio para passar uma temporada em Honolulu e acabou ficando, embora tivesse um compromisso com a moça, etc..

Como disse, caí do terceiro andar, o que é pior do que cair das nuvens conforme o citado mestre. Esse casal é o mesmo daquele conto de Somerset Maugham cujo título é, se não me engano, “O degenerado” ou coisa parecida. Um jovem que vai para uma ilha dos mares do Sul e acaba ficando por lá, fascinado pela vida mais próxima da natureza, rompendo o compromisso que assumira com a noiva. Enfim, o tema recorrente. Acabei o meu drink e saí mas o casal não havia ainda chegado a uma conclusão.

Será que o conflito entre esses dois mundos somente será resolvido no futuro, quando o conforto e o bem-estar construído pela civilização ocidental puder se generalizar e quando isso não importar um modo de vida insatisfatório? Quem leu Noa Noa de Gauguin se encanta com a mais bela das descrições já feitas quanto às ilhas do Pacífico. Num pós-escrito, entretanto, Gauguin revela toda sua decepção com a realidade que efetivamente encontrou do ponto de vista da organização social.

Para concluir, e como já fiz uma vez em outra circunstância, volto a citar Kenneth Boulding em seu Significado do século XX quando diz: “Uma vez saboreado o fruto da árvore do Saber, como a Bíblia tão bem ilustra, o Paraíso fecha-se para nós. Não podemos voltar à infância de nossa raça, do mesmo modo que voltar à nossa própria infância. Perdemos para sempre o Paraíso e a sua entrada é guardada por um anjo empunhando uma espada flamejante.”

[In Novas crônicas de Roberto Mazzini, da “Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas”, em 2003.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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