Caiado viu Pedro, Pedro viu Caiado.
Abraçaram-se. Interrogaram-se, um querendo saber da vida do outro, aquele papo de colegas do primário que se encontram depois de vinte anos. O que você tem feito, quantos filhos tem, quantas mulheres, quantas sogras, quantos empregos, onde está morando, pegou dengue, está acompanhando a merda geral em que o Brasil está se convertendo?
“E as pernas de Dona Risoleta, você ainda se lembra delas?” perguntou Caiado a Pedro, recordando-se da mútua paixão que sentiam pelas pernas da professora, sobretudo quando ela as cruzava embaixo da mesa, mas não tão embaixo que Pedro e Caiado não pudessem flagrá-las numa cruzada à Share Stone, durante as aulas,em São Josédo Calçado.
“As pernas de Risoleta me seguem eternamente” disse Pedro, como se recitasse um verso de Bandeira, mas omitindo o “dona” em benefício do lirismo da frase. “Aliás, as pernas e aquele rabinho empinado que ela tremelicava no ritmo das palavras que escrevia no quadro negro, lembra-se?”
“Meu Deus, que imagem recuperada! E o quadro ainda era negro, nada de quadro verde, um modernismo pedagógico que veio depois,” emocionou-se um Caiado que retrocedeu aos doze anos de idade.
E foi só. No bumbum empinado de Dona Risoleta e no quadro que não era verde, mas negro, esgotou-se o assunto entre os dois amigos, no vazio da separação de vinte anos, instalando-se entre ambos um silêncio de precipício.
“Em que posso ajudá-lo”, investiu-se Pedro da sua função de escrivão de polícia, retornando do fundo do precipício onde o papo despencara.
“Venho atrás de uma orientação sua, ou até mesmo para registrar uma queixa.”
“Vamos primeiro à orientação. Como escrivão de polícia procuro sempre dissuadir as partes de registrar queixas,” explicou Pedro, com solenidade. “Sei como a coisa funciona… ou não funciona,” e esboçou um sorriso de um Pedro-que-ri-de-lado.
“Então vamos à orientação”, concordou Caiado, abancando-se na cadeira dos queixosos. Abancando e abrindo o verbo.
“Eu estou morando em Morada de Camburi, sabe onde é?”
“Já tive uma namorada por ali,” disse Pedro, o olhar de bons tempos avivando-lhe o menino dos olhos. “É um bairro calmo e dadivoso,” arrematou, sem saber por que usara o termo dadivoso.
“Exceto quando passam os aviões de carreira”, lamentou-se Caiado. “Ai tremem as casas e some o som da televisão. E se você está falando no telefone, parece que um desses monstros entra pelo aparelho adentro. Fora isso, é um bairro realmente calmo. Tão calmo que todos os dias, pela manhã, eu saio de casa para dar uma voltinha de bicicleta.”
“Você ainda anda de bicicleta?” indagou Pedro, lembrando-se que o amigo tinha sido medalha de ouro na modalidade, nas competições escolares de antigamente.
“É o meu hobby. Pelo menos não perdi o equilíbrio até hoje.”
“O seu pedido de ajuda tem a ver com o seu hobby?”
“Diretamente.”
“Por quê?”.
“Andar de bicicleta é bom quando o pneu não fura” sentenciou Caiado. “Se fura, é uma aporrinhação dos diabos. Quando a gente era garoto, consertava a câmara com a maior facilidade. Bastava pregar um remendo sobre o furo, com cola Michelin. Tinha-se todo o tempo do mundo. Agora, é mais fácil levar a bicicleta num borracheiro ou numa oficina especializada. Foi o que fiz, quando o pneu da minha furou.”
Pedro aproveitou a pausa na arenga do amigo para colocar sobre a mesinha da máquina Olivetti o maço de cigarro Carlton. A atenção de Caiado foi momentaneamente desviada para a foto da mulher grávida, de cigarro à boca, a barriga fertilizada aparecendo fora da blusa azul com o umbigo proeminente, acima da qual se lia o aviso cretino: O Ministério da Saúde adverte: fumar na gravidez prejudica o bebê.
Antes que o outro fizesse qualquer comentário, Pedro atacou:
“Como era mesmo o nome daquela camisinha que servia para vedar o pisto?”
“Tripa-de-mico, rapaz!” respondeu Caiado, espantado com o esquecimento de Pedro.
“É verdade… tri-pa-de-mi-co! Como é que pude esquecer esta expressão! “Bem, e aí? Você foi a um borracheiro ou a uma oficina de bicicletas?”
“A uma oficina, embora oficina seja modo de dizer. Na verdade, a tal especializada fica na garagem de uma casa. Primeiro passei lá de carro para saber do dono se ele consertava pneu na hora. Como me garantiu que sim, levei a bicicleta no dia seguinte.”
“Levou de carro?” indagou Pedro, já de cigarro aceso entre os dedos para emprenhar os pulmões de fumaça.
“A pé mesmo, empurrando,” disse Caiado. “Acordei cedo, e fui empurrando a bicicleta da minha casa até a oficina. Às oito da manhã, o cara ainda não tinha chegado. Me enchi de paciência e fiquei esperando, preocupado com meu horário de trabalho. Aí lá vem o sujeito, pedalando uma bicicleta.”
“Um ponto de coerência entre o homem e o seu ofício” observou Pedro.
“Foi o que pensei” disse Caiado. “Ele chegou perto de mim, encostou a bicicleta no meio fio, tirou uma bolsa de couro do bagageiro, me deu bom dia com certo mau humor, e ficou em pé ao meu lado segurando a bolsa velha pela alça. Então eu perguntei: ‘você não vai abrir a oficina?’ E ele respondeu, com uma grosseria correspondente ao seu mau humor: “Quem abre a oficina é o meu ajudante!’ Aí, foram mais dez minutos de espera até que o ajudante chegasse, também de bicicleta.”
“E abriu a porta ou tinha esquecido a chave?” perguntou Pedro, os olhos luzindo atrás de uma nuvem de fumaça.
“Abrir, abriu, e nós entramos”, disse Caiado. “Eles na frente e eu atrás, empurrando a bicicleta de pneu furado. Só que ao invés de me atender, os dois começaram a varrer a oficina, a dar uma arrumadinha no que tinha lá dentro, a procurar a chave do portão de grade que dava para uma área onde tinha uma banheira enferrujada cheia de uma água imunda até os beiços.”
“E você esperando?”
“A esta altura eu já estava subindo pelas paredes e reclamei: ‘Você não vai me atender, meu amigo? Eu preciso ir para o trabalho…”
“Um minutinho,” disse ele, e me entregou uma folha de papel impressa em computador, que tirou de uma gaveta de ferramentas. “Vai lendo aí, enquanto a gente termina de arrumar a oficina.”
“O que dizia a folha?” quis saber Pedro.
“Veja você mesmo,” respondeu Caiado, entregando o impresso sujo de graxa, dobrado em quatro que o escrivão desdobrou e leu:
Organização
Você abriu? Feche.
Desarrumou? Arrume.
Está usando algo? Trate com carinho.
Quebrou? Concerte.
Não sabe concertar? Chame quem sabe.
Para usar o que não é seu? Pessa licença.
Pediu emprestado? Devolva.
Não sabe como funciona? Não mecha.
É de graça? Não desperdiçe.
Prometeu? Cumpra.
Falou? Assuma.
Sujou? Limpe.
Não sabe fazer melhor? Não critique.
Não veio ajudar? Não atrapalhe.
É apreçado? Conte até 10 e fica calmo.
Isso é qualidade!
Pedro explodiu numa gargalhada, pela qual se desculpou com Caiado.
“Você está rindo porque não foi com você”, disse o amigo. “O fato é que eu me senti um idiota com o papel na mão, cheio de erros ortográficos, a bicicleta de pneu furado encostada no balcão e os dois bs da merda entregues à faina de “arrumar” a oficina para depois me atender. Você não acha que foi abuso demais?”
“Sem dúvida,” concordou Pedro sugando mais fumaça do cigarro, já no território da guimba. “E o que você fez?”
“O que eu fiz? Peguei a bicicleta e fui procurar um borracheiro. E sabe o que o cara ainda me gritou? ‘Amigo, espera mais um minutinho que a gente vai te atender!’ Isso foi o cúmulo da provocação. Agora quero que você me diga o que devo fazer contra o abuso daqueles dois ?”
Pedro atirou o toco do cigarro na caixa de lixo, depois foi atrás para evitar que a guimba queimasse os papéis que ali estavam jogados. Em seguida, voltou ao seu lugar e perguntou a Caiado:
“Você quer que eu responda sem rodeios?”
“É tudo que eu quero.”
“Pois fique freguês do borracheiro!”
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)