Ler Corpo de festim, de Alexandre Guarnieri, foi uma volta no tempo. Não só pela temática, mas também pelo processo catártico na realização dos poemas.
Há cerca de trinta anos, ainda jovem, tive minhas primeiras aulas de anatomia. Sobre as mesas azulejadas do anatômico, corpos inteiros, corpos abertos, expostos – corpos sem nome –, com alfinetes multicoloridos sinalizando pequenos detalhes que persegui com o Atlas de Anatomia em minhas mãos. Tudo muito vazio, oco – sem humanidade (ou quem sabe, com toda a humanidade possível).
Depois de tanto tempo, a sensação de desconforto novamente se faz presente. O corpo agora é outro, mas também é outro o leitor, e esse, já familiarizado com o sangue, depara com o avesso de um corpo – travestido em poemas rascantes.
Na capa, o grande mágico e ilusionista Houdini nos mostra sua arte de sobreviver, driblando falsamente a morte com suas algemas e cadeados que ele preparava com maestria. É o novo paradoxo do homem “pós-moderno”, com sua casca, seus subterfúgios, indo ao extremo – no seu processo histórico de negação da morte. Mas no branco da capa as gotas de sangue nos alertam: embora de festim, esse corpo-poema nada tem de festa ou de amenidades inócuas; ele possui um tipo de visgo que pode persistir no leitor, com sua multiplicidade de tons vermelhos irrigando a engrenagem do nada.
Mas antes que nos adentremos nesse corpo guarnieriano, cabem algumas considerações sobre a pontuação-ilustração utilizada pelo autor.
“O ofício de um escritor”, diz-nos o linguista José Augusto Carvalho, “não é o de seguir as normas, mas o de subvertê-las.” É o que também afirma Ortega y Gasset quando diz que “ não se atreva a escrever aquele que não se atreve a inovar”. E este Corpo de festim é uma excelente exemplo de um uso inovador dos sinais de pontuação. Guarnieri não utiliza dos sinais, preferencialmente aqueles cuja função essencial é marcar a MELODIA, a ENTOAÇÃO (dois pontos, aspas, parênteses, colchetes e travessão) com esse objetivo (na verdade existe um nítido esvaziamento melódico, quase uma ausência de lirismo nos poemas), e é na crueza que o poeta demonstra a força de seus versos, enriquecendo o sentido dado ao corpo humano.
Os sinais se apresentam ao leitor no título dos poemas como que ilustrando órgãos ou partes do corpo. Assim, deparamos com: parênteses-orelhas, útero-parêntese dentro de parêntese, articulações-barras… Fazendo isso, Alexandre Guarnieri aproxima seu poema da pintura, aproxima seu poema do corpo fragmentado.
No primeiro capítulo, denominado Darwin não joga dados, Mallarmé sim, Guarnieri nos diz de suas influências, já presentes em seu livro anterior, Casa das máquinas. É de Einstein a célebre frase que “Deus não joga dados”, e o poeta se utiliza do deus dos evolucionistas para reiterar essa afirmativa. Ao completar essa ideia com a célebre máxima de Mallarmé, o poeta define qual bisturi utilizará para destrinchar o homem de lata, o homem-móbile – a razão crítica.
O poeta se aproxima da página em branco, símbolo do absoluto para Mallarmé, e elabora, com riqueza de detalhes estilísticos herdados de seus cânones, a criação do Universo e o surgimento do homem. Eis o herói possível, o artista, usando do lenitivo de tornar o vermelho a tinta tipográfica lançada sobre a nudez do papel. Mas nesse processo o poeta não renega, não ignora a página da pele. Ele nos mostra a última pele – a palavra –, e nos contradiz quando afirmamos que a arte permite um legado sem tragédia, pois são números e letras de chumbo o suor de sua pele impressa. O corpo de festim também sangra.
O homem que aguarda na antessala líquida do mundo não escolhe estar presente; ele recebe um nome, decidido entre uma trepada e uma palmada do obstetra, e, a partir de seu nascimento, sofre uma sequência de choques, somente interrompida pela morte, pois o que aguarda o ser consciente são muitas auroras de fuligem e pólvora. Esse ser, com sua consciência plantada na samambaia dos nervos, se adentra no absurdo, e sua carne se abisma nesse enigma.
No capítulo seguinte, Guarnieri nos apresenta um corpo-só-órgãos. E não nos propõe uma viagem fantástica, mas uma autópsia a frio, um corpo ao avesso, um corpo oco, uma imersão nas entranhas de um frankenstein.
Passamos então a contemplar um mundo sem deus, sob um teto espelhado e um piso de excrescências. Alexandre Guarnieri leva ao extremo a visão de muitos poetas contemporâneos. Cansado de tantas almas dissecadas, e não pouco idealizadas, destrincha o corpo, de dentro para fora. Rompe as falsas amarras e os cadeados viciados correndo o risco da impermanência, da extinção do ideal humano.
E segue o poeta com sua anatomia do sem sentido, descrevendo a mecânica dos fluidos, porque na ampulheta viva/sangue é tempo, metáfora perfeita para descrever o paradoxo do homem atual. Um ser que, apesar do arcabouço, da ossatura estruturada, articulada, apesar da célebre postura bípede – com seus pés imortalizados no esqueleto lunar – se impõe um salto na liquidez moderna, aproximando-se da máquina por ele criada. Daí a ênfase do poeta, o que causa estranheza aos habituados, aos tratados de anatomia e aos leitores comuns, em preterir os órgãos ditos nobres (cérebro e coração) e optar pelo grande tubo que ingere prazer (com extrema urgência) e excreta a impureza sobre o trono divino. Não faz isso por tratar-se de um corpo formado basicamente de água, e que se alimenta dela para sobreviver, mas por ter-se transformado em um “corpo fluido”, moldável pelo instante. E são inúmeras e infinitamente renováveis as “ofertas de instantes” do deus-mercado…
Mas o que acontece quando o instante se fluidifica, se torna cada vez mais instantâneo, insatisfatório; quando o instante passa veloz; quando um piscar de olhos nos impõe uma limitação fisiológica para vivenciá-lo? “Pode”, como disse Valery, “a mente humana” – essa noz que alucina e racionaliza – “dominar o que a mente humana criou?”. Quanto cabe de assombro na engrenagem do homem-móbile?
No capítulo final, vigiar e punir, Alexandre Guarnieri se remete a um dos títulos do filósofo “pós-moderno” Foucault. E nada mais oportuno. Não é questão de paranoia, de uma teoria da conspiração, mas o poeta percebe exatamente o que o filósofo francês deixa claro em seu livro: “Cada época criou suas próprias leis penais, instituindo e usando os mais variados processos punitivos, que vão da terrivelmente macabra violência física – o suplício do corpo, tendo como motivação legal a salvação da alma do condenado.” E que prisão mais eficiente que o corpo? Estabelecer um link entre o prazer e a autopunição inconsciente? O domínio das massas em tempos de nanotecnologia é exercido mediante a pílula do instante, que faz naufragar a consciência enquanto viaja no submundo intestinal e mental dos filisteus.
E eis um outro questionamento que os poemas de Guarnieri nos propõem: seria então a liberdade um rombo no reboco da consciência, uma boca aberta e um ânus carente – um funil empurrando o fluido-promessa-de-gozo, goela abaixo, do homem incoerente?
Tudo isso nos leva a pensar que talvez os ficcionistas não tenham apenas tido êxito em sinalizar os grandes avanços tecnológicos da humanidade que permitiram ultrapassar fronteiras inimagináveis aos seus contemporâneos. Eles foram também capazes de antever uma nova possibilidade para o “salto” camusiano – o salto para a perversão, como recurso ao desespero perante o sem sentido. Vivenciamos uma mudança de paradigmas, não que a aproximação de Deus tenha tornado o homem melhor; a perversão sempre existiu como traço da humanidade. Entretanto o reconhecimento de um deus menor ou de sua inexistência não foi acompanhado de um processo de desconstrução do homem.
O homem optou pelo hedonismo extremo em detrimento da busca de sua irrelevância relativa.
Considerando que isso ocorre pari passu com o avanço tecnológico que possibilita uma densidade demográfica nunca vista sobre o planeta, projeta-se, em níveis insustentáveis, a possibilidade de posturas pervertidas por parte da humanidade.
O homem se apega a um deus mais próximo, seu parceiro ou ele próprio. Se acerca desse deus e não tem como ignorar sua fragilidade e incongruência – não tem como mitificá-lo. Mas é o único deus possível, e a única existência possível – e urge vivê-la. A consciência mais uma vez se molda à necessidade do novo deus.
E o poeta lúcido, diante disso, vê-se atormentado, entorpecido – pois persiste atrelado à sua consciência e às circunstâncias, ao seu entorno. Fica claro o absurdo do homem “pós-moderno”, abraçado a esse novo tempo liquido e fractal.
É um novo espelho, esse no qual se mira o poeta. Ele tem mais reentrâncias e, em decorrência disso, reflete mais o que se vê e o que se rejeita com a razão.
Qual transcendência possível a esse homem corporificado em festim?
Jorge Elias Neto (1964) é capixaba, cardiologista e poeta residente em Vitória – ES. Tem vários livros publicados é colaborador em vários blogs e revistas literárias.
(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)