Foi Lenilda, entre uma varrição e outra, que externou o sentimento dominante:
“Desde que a doutora Dea Benvenuto substituiu o delegado Digital, as coisas mudaram para melhor na delegacia. Nem parece o purgatório de antes.”
Pedro, que ouviu o comentário, e chamava a delegada de deusa, concordou com a faxineira; Nanico, que a chamava de bem-vinda, disse que assinava em baixo das palavras de Lenilda. Assim concordes, os três festejavam os novos tempos em virtude do afastamento de Digital para tratamento de saúde, e saudavam os bons ventos que lhes trouxeram de presente quem de presente lhes trouxeram: uma deusa bem-vinda em carne e osso, nome e sobrenome.
Neste ponto, antes que a satisfação geral seja entendida além dos seus limites, impõe-se que eu, escrivão virtual da delegacia, dê alguns esclarecimentos.
Vamos lá.
Não se deve imaginar que a observação de Lenilda sobre as bem-vindas mudanças endossadas pelos dois companheiros de trabalho fosse de ordem material, porque não era o caso. Neste particular, a delegacia continuava sendo a mesma – mal instalada numa antiga casa residencial da década de 50, carente de reformas em suas partes internas e externas (pudendas ou não pudendas para ser mais preciso), clamando por pintura urgente, o jardim e o quintal abandonados às minhocas, com uma penúria crônica de equipamentos e mobiliários decentes para atender minimamente às suas finalidades burocráticas.
As mudanças havidas compreendiam outros aspectos. Para encurtar a enumeração, citarei três deles, ordenados em esnobe latinório: Pro primo: a consideração que a delegada dedicava aos funcionários, senhora dona Lenilda pra lá, senhor seu Pedro, pra cá, senhor seu Nanico – coisa nunca ouvida da boca do delegado Digital; pro secundo: o respeito que a delegada dispensava aos presos recolhidos à delegacia, dando-lhes um tratamento humanitário para nenhuma comissão de direitos humanos questionar; pro tertio, ou seja, em terceiro lugar, a mudança estava na própria mudança ocorrida, isto é, na troca da pessoa do delegado titular da Chapot Presvot pela pessoinha da delegada substituta, o que implicou a saída de um brutamonte rústico e ignorante para a entrada de uma criatura educada e culta. A bela substituindo a fera.
Digo-lhes ainda que mais bela a bela pareceu a Pedro, o escrivão, quando ele descobriu por acaso que, a exemplo dele, também ela prezava a boa literatura. (Oh!, que imponderáveis as tessituras das musas!)
“Ler bons autores é um dos meus vícios de cabeceira,” disse a Pedro a deusa Benvenuto quando os aproximou, numa conversa distraída, o livro Bravos Companheiros e Fantasmas, de José Carlos Oliveira, que a delegada viu nas mãos do escrivão (que outros vícios de cabeceira a deusa tinha ficou a cogitar sem resposta a malignidade de Pedro).
O livro foi causa de uma querela escatológica entre o escrivão e o delegado Digital que, de tão triste memória, não merece ser lembrada. Fale-se, sim, do que a delegada disse a Pedro sobre a obra:
“Já li duas vezes. E gostei duplamente, apesar de não ser uma leitura fácil.”
“Em compensação tem umas passagens bem eróticas…” disse Pedro.
E ao dizer o que disse, num comentário esvoaçante e de menesgueio, havia no dito comentário um capcioso laço arremessado para cima da delegada, uma dissimulada arremetida de quem mirava um alvo para acertar outro e ver no que dava para o que desse e viesse.
E qual a origem dessa mal disfarçada laçada?
A resposta está no conto Anette e a lâmpada mágica, do livro de José Carlos.
Explico por quê.
Pedro não possuía uma memória tão prodigiosa que lhe permitisse lembrar, palavra por palavra, o conto que lera há algum tempo. Mas se recordava, grosso modo, da hilária passagem em que a lâmpada de Aladim é transformada em rabo para ser aplicado na jovem Anette, numa iniciação sexual praticada por um velho senhor de nome Oskar a pretexto de devolver o rabo perdido há milhões de anos quando a iniciada não passava de uma ingênua macaquinha.
Essa a passagem de que Pedro se lembrava.
“Não posso negar que me diverti muito com a leitura de Anette e a lâmpada mágica, seu Pedro,” disse a delegada. “Foi uma finíssima alegoria armada por José Carlos Oliveira.”
“Alegre alegoria,” frisou o escrivão, olhos amiudados nos olhos elizabetanos (à Elizabeth Taylor) da sua divina interlocutora. “A mágica conversão da lâmpada de Aladim num instrumento de prazer só podia ser obra de um gênio…”
“Gênio da lâmpada ou gênio do autor?” perguntou a delegada passando recibo no duplo sentido das insinuações do escrivão.
“Uma coisa levou à outra,” respondeu Pedro, animado pelo rumo premonitório da conversa e pela presença de espírito da sua inteligente e receptiva interlocutora. “Oh, meu Deus, que diferença de Digital!” pensou por último, para avançar com mais desenvoltura: “A senhora já leu o livro Sobre Mulheres – Diversa Caligrafia? Se estiver interessada, lhe dou um exemplar de presente.”
“Ganhar bons livros me deixa em paz com a vida. Livros e biscoitos de polvilho.”
“Biscoitos de polvilho?! Eu também sou louco por eles!” entusiasmou-se Pedro. “Gosto tanto que eu mesmo os faço em forninho de barro, quando vou a São José do Calçado. Da próxima vez vou fazê-los especialmente para a senhora”.
“Não vou dispensar os biscoitos. Mas o livro Sobre Mulheres só aceito se o senhor me der uma razão convincente para lê-lo.”
“É uma capela de contos, tendo mulheres nos altares,” disse Pedro, repetindo uma frase do prefácio da obra.
“Mulheres em estado de graça ou de desgraça?” perguntou a delegada exibindo seus límpidos dentinhos de trituradora de biscoitos.
“Santas do pau oco,” atreveu-se Pedro numa tirada impudica.
“Não me convenceu o argumento, que me pareceu despudorado. Aprimore a sua sutileza que talvez voltemos a falar de literatura. Se for preciso, apele à maravilhosa lâmpada de Aladim, seu Pedro,” disse a delegada com malícia.
“Quer dizer que posso alimentar esperança?” indagou o escrivão numa sondagem ousada de porvires.
“Dizem que é a última que morre…” saiu-se a delegada acenando possibilidades.
“E os biscoitos?” Vão ter que esperar também?” perguntou um assanhado biscoiteiro.
“Biscoitos são biscoitos…” disse a delegada numa ambiguidade risonha.
“Independem da lâmpada de Aladim?” forçou a barra o escrivão.
“Pode botá-los no forno que serão bem recebidos,” estimulou a divina.
Dá para ver – retomo eu a palavra de cronista virtual da Chapot Presvot, 272 –, que foram dignas de nota, como observou Lenilda, as mudanças que sobrevieram à delegacia, devendo ser aproveitadas ao máximo enquanto Digital não vem. (Eu ia escrever enquanto seu lobo não vem, mas, pensando bem, o lobo já está na delegacia sob a pele de um escrivão biscoiteiro.)
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)