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O ato de escrever: Depoimento de Reinaldo Santos Neves na Escola Lacaniana de Vitória em 3/12/2003

Foto: Maria Clara Medeiros Santos Neves. 2007.
Foto: Maria Clara Medeiros Santos Neves. 2007.

Escrita. Processo de criação. Essas foram as palavras que Renata [Vescovi] me deu para usar como chaves desta conversa.

Não estou acostumado a refletir sobre esses conceitos. O meu compromisso é o do artesão. O artesão que escreve. O artesão que cria. O artesão que não pensa sobre o ato de escrever nem sobre o processo de criação. Apenas escreve e cria.

É verdade que fui aluno de Letras, nos idos de 1965 a 1968. Tive uma excelente professora de Teoria Literária, Deny Gomes, mas isso não foi suficiente para me tornar um bom aluno dessa disciplina. A teoria é cinza, como diz Mefistófeles, no Fausto de Goethe; minha alma de adolescente também era cinza, mas nem por isso eu conseguia assimilar aqueles postulados teóricos e abstratos.

As pessoas lembram de uma mesma coisa de modo diferente. Eu lembro que fui aluno medíocre. Já Deny Gomes lembra de mim como excelente aluno. É uma lembrança revisionista. Ela se auto-engana porque gosta do que escrevo. E é uma lembrança dedutiva: se Reinaldo escreve as coisas que escreve, só pode ter sido bom aluno de Teoria Literária.

Talvez eu escreva as coisas que escrevo justamente porque não tenha aptidão para teoria. Talvez se eu soubesse Teoria Literária eu não soubesse escrever literatura.

Mas algumas coisas eu acho que posso dizer.

Posso dizer que a escrita criativa me acompanha desde menino. Tenho alguns textos, escritos ainda em letra de fôrma, em que ensaio umas primeiras produções literárias. As mais antigas são de 1953, quando eu tinha seis anos e nada mais lia a não ser histórias em quadrinhos. Eis dois desses textos:

TÁ CHOVENDO EU TENHO QUE IR NA CASA DE VOVÔ BUSCAR UM BOLO AÍ MEU CÃO VAI SAIR BUSCOU O BOLO FIM

VOVÔ ME DEU UMA TARTARUGA MAS ELA ERA TÃO SABIDA SABIA LER SABIA FICAR EM PÉ SABIA LIGAR O RÁDIO SABIA COMER COM AS MÃOS BRINCAVA COMIGO FIM

Logo a seguir, aos oito, nove anos, no intervalo das peladas de rua, começo a pôr no papel umas primeiras histórias. “O foragido”, “O motim”, “O fratricida”, “Sedentos de ódio”, “O tira”. Esta, que fez algum sucesso com meu pai e meus irmãos, começava assim:

New York. 1949. Os perigosos delinqüentes juvenis amedrontavam a maravilhosa cidade. Vamos encontrar um bando, precisando de chefe, quando um rapaz carrancudo, com um cigarro, camisa axadrezada e calça cáqui chega e fala roucamente: “Aqui está o seu chefe.”

São histórias de faroeste, de gangsters, de piratas, ou seja, cópias toscas daquilo que eu via no cinema e lia nas histórias em quadrinhos e nos livros de aventura. Não importa. Importa é que havia um desejo de escrever, de criar. Por quê?

Borges diz que, se tivesse de escolher uma imagem para representar a origem de sua vocação literária, seria a biblioteca do pai. Meu pai também tinha uma biblioteca em que as estantes de livros forravam as paredes de alto a baixo e de fora a fora. Mas a primeira sedução que experimentei em relação à literatura não veio da biblioteca paterna. Veio da biblioteca fraterna. Era uma estante magra de cinco prateleiras que servia para guardar os livros de meus dois irmãos, ambos bem mais velhos que eu. Daí é que vinha a tentação da literatura. Aí estavam os livros de Monteiro Lobato, de Júlio Verne, de Tarzan dos Macacos; os livros das mais famosas coleções para jovens da época: a Coleção Os Audazes, da Editora Vecchi, e a Terramarear, da Companhia Editora Nacional. Era o local sagrado e misterioso aonde eu vinha e voltava sempre, para olhar as capas dos livros e embevecer-me com a perspectiva de que um dia eu leria tudo aquilo.

A escrita me acompanhou na infância, na puberdade, na adolescência. Os textos existem, mostrando a “evolução” temática e estilística. Aos quinze anos produzi um romance de 85 páginas manuscritas em papel almaço intitulado Os fanáticos. A questão ali já é a existência de Deus. Eis um diálogo desse romance:

Tenho uma teoria e estou absolutamente certo de sua exatidão: se antes de nascermos, antes de sermos concebidos, nós não existíamos, depois de morrer é completamente possível nossa volta a esse estado. Não digo que voltamos a nascer. Não. Quero dizer apenas que, como não existíamos antes, podemos muito bem deixar de existir depois! Isto prova a inexistência da vida eterna. E como a vida eterna e Deus são duas teorias que não existem uma sem a outra, logo, não há Deus.

A seguir, por volta dos dezesseis anos, instigado talvez pelo próprio ambiente de casa, em que literatura era uma preocupação constante de pai e irmãos, já não era mais importante escrever, mas sim escrever diferente. Criar um estilo próprio. Ser um estilista.

Conservei alguns rascunhos dos textos que escrevi aos dezessete anos. Foram três contos longos. Um deles chamava-se “Chuva no dia da morte de Théo”, e eu achava esse título o título dos títulos, porque nem chovia nem o personagem Théo morria no conto. Uma frase apenas justificava o título: Théo diz que gostaria de morrer num dia de chuva. Mas como era o estilo desse conto experimental? A busca de originalidade levava a uma forçação de barra sintática. Havia uma certa abstinência do verbo na narração. Eis a frase de abertura do conto:

Tânia, à porta. Seus olhos, os olhos de Théo, os olhos de Aldo. — Sabia que vocês vinham, — Tânia. E riu, os dentes brancos de Tânia. Mão na porta entreaberta, o corpo de Tânia encostado à parede, o corpo de Tânia à frente dos olhos dos dois. E riu. Riu, olhos em Théo, porque conhecia os olhos de Théo. Abriu mais a porta, um sorriso, sorriso de Tânia para Théo. Aldo. Aldo e o mundo indefinível atrás dele, em volta. Tânia, sensual e a porta, os seios de Tânia porque Tânia era mais baixa, porque se apoiava à parede, mão e dedos na porta.

Esse ano, 1964, foi um ano de descoberta. Nos dois contos seguintes consegui criar um estilo próprio e até certo ponto original. Houve algum progresso desde “Chuva”. Já não era preciso dizimar o verbo para contar uma história:

— Estou bêbado — digo, as palavras mal pronunciadas. Digo para este mundo que se prostituiu em asco e riso e inação, habitado por entes disformes. Vontade, então, total em mim, de nascer-me desta inanição sonolentamente ridícula, de nascer-me e mover-me e ser-me por toda esta sala, de falar toda a minha voz inerte, falar às janelas, às paredes, aos céus e às noites, às mesas e às cadeiras sentadas de corpos furtivos, grotescos como o meu próprio, falar a estes corpos, eu terno e lento e sólido, e dizer-lhes coisas, milhões de coisas que emito de dentro de mim, dizer-lhes que estou bêbado, que me embebedaram assim, que estou suando, suando muito, agora, que gosto de minhas mãos roxas roxamente ímpias, que me sinto doente, louco, eu cheio de vontade de vomitar, um vômito que insiste em apodrecer dentro de mim, dizer-lhes que quero betina, toda minhamente nua, minhamente pura, minhamente real, que quero um sol, um sol qualquer, dizer-lhes que os odeio, odeio vocês todos, vocês exaustos, podres, moles, dizer-lhes que gostaria de morrer, de morrer e remorrer sempre todos os dias numa hora destas, nesta noite insana que desliza lá fora, morrer de um lugar alto e cônscio e forrado de bocas e vulvas atentas, eu cercado por estes eternos sumos merdas, estes nadas mijantes que rastejam à minha volta, que porejam nojo e sons de nojo, cercado por este pátio de inutilidades que me doem a vida, e dizer-lhes, repetir-lhes, calmo, exato, repetir-lhes porque eles não entendem nada igual a isto, que quero betina, que quero-a muito muito muito, que amo-a, amo-a, amo-a, amo-a, que quero-a aqui agora para que eu possa levá-la à rua e beijar-lhe os seios ávidos, e dizer-lhes as todas coisas que sinto por ela, que a amo e a seus seios e a seus pés e a seus olhos e lábios e pulsos e nudez, e depois dizer enfim a eles, a estes seres postiços, que sou mofo, eu e eles, que nós todos somos mofo, mofo misturado a muito mofo, mofo conjunto, mofo idiota, mofo obsceno, mofo ridiculamente insolente, podremente inexistível, inexistível, inexistível, nós todos, todos, todos.

Os nomes das personagens femininas eram escritos com iniciais minúsculas, para indicar a sua inferioridade como objetos, ainda que do desejo. À inexistência de Deus acrescentou-se a inexistência do amor. O amor da mulher era impossível, exceto o da irmã. Ora, eu não tinha irmã. Daí esta frase de um dos personagens do conto “Ausência de Carla”: “Eu não odeio ninguém. Eu só odeio Deus, e minha irmã, porque eles não existem.”

Estilisticamente ia tudo bem. Só havia dois problemas. Em primeiro lugar, eu não tinha história, coisa que, para muitos críticos de hoje, não é problema. Em segundo lugar, eu tinha uma missão. Era a missão do adolescente: declarar que a vida era uma merda.

A literatura pode mostrar que a vida é uma merda, mas se o declarar com a ênfase de um missionário ou de um sectário, estará prejudicando a sua própria qualidade. E eu era isso: queria provar, nos meus textos, que a vida era uma merda, porque achava que a vida, para mim, era uma merda. Por quê? Porque não tinha certeza do meu futuro profissional e porque nunca tinha tido uma namorada.

Essa literatura angustiada do adolescente que eu fui vazou para o meu primeiro romance, Reino dos Medas, publicado em 1971. Esse romance é fruto do trabalho obsessivo de construção de um estilo realizado pelo adolescente. Mas o estilo é a única coisa que presta nele. Falta uma coisa que acho indispensável em literatura: ironia. Em Sueli está dito: “A ironia é a santa padroeira deste romance.”Reino dos Medas é o meu único texto publicado em que a ironia está ausente.

Mas voltando à linguagem. Uma vez uma moça me deu uns contos para ler. Depois que li, perguntei se ela reescrevia os textos. Ela disse que não. Aí eu disse: Se você não reescreve, você não escreve.

Eis aí uma primeira conclusão sobre o que eu penso da escrita. Eu não tenho escrita. Eu tenho reescrita. E isso quem me ensinou foi o sofrido adolescente de 1964. Os rascunhos mostram a obsessão do rapaz pela perfeição da frase. Uma perfeição que já de antemão ele estava condenado a nunca alcançar. Mas, apesar disso, a obsessão se conservava obsessão e produzia, bem ou mal, literatura.

Mas o que é, para mim, processo de criação? Creio que tem a ver com três coisas: a) argumento, ou seja, história, ou seja, o que é que, basicamente, eu vou contar; b) narrativa, ou seja, como é que eu vou contar essa história; c) estilo, discurso, linguagem, escrita, ou seja, como é que eu vou escrever essa história.

O argumento a gente tem de ter com antecedência. É possível escrever sem argumento, mas é como sair fazendo um filme a esmo com uma câmara na mão. Eu preciso saber o que vou contar e gosto de seguir um roteiro. Antes de escrever Sueli, por exemplo, eu pus num roteiro tudo que eu me lembrava de minha “aventura” com Sueli. Depois passei a escrever a partir do roteiro. Parêntese: só em duas ocasiões o argumento me foi revelado em sonho: para um dos poemas de Muito soneto por nada e para um conto recente, “Mistério na montanha”. No caso do conto, abriu-se a seguir toda uma linha de trabalho que já se transformou num livro de contos que tem o título provisório de Que diria Borges?

Roteiro é feito para ser mudado. A gente muda a ordem das passagens, muda os personagens, muda o próprio roteiro. É interessante comparar um livro pronto com o roteiro original. A longa história, romance que terminei no ano passado, sofreu uma mudança radical de roteiro: a intrusão de uma mulher entre os personagens principais, que seriam todos masculinos. E a mulher não só se intrometeu no romance mas tomou posse dele.

Narrativa tem a ver com as alternativas técnicas e estruturais do romance: dividir o romance em capítulos ou escrever o texto todo de cabo a rabo; narrar na primeira pessoa ou na terceira; narrar no presente ou no pretérito; e mais o tom da narrativa, o ritmo, e coisas assim. A crônica de Malemort, romance ambientado na Idade Média, não tem capítulos, é um bloco só. Em As mãos no fogo joguei com a divisão em capítulos, como fazia Machado de Assis, só que de outro modo. Alguns capítulos se dividem no meio de um diálogo: a pergunta encerra um capítulo e a resposta dá início ao seguinte. Outro se divide no meio de uma frase: “E cuidado com” é como termina o capítulo 30; “as urtigas e as formigas” é como começa o capítulo 31. Isso para chegar ao extremo de dividir os capítulos 35 e 36 no meio de uma palavra. Escolhi a dedo essa palavra. Sigilo. No capítulo 36 dá-se a defloração de uma menina de treze anos. Sigilo quer dizer selo. Quebrar o selo é uma das maneiras de se dizer deflorar.

Mas tudo isso é muito calculado, muito planejado. A escrita não costuma ser assim. Diferente do argumento e da narrativa, planejados com antecedência, a escrita, no meu caso, só tem, habitualmente, dois momentos: durante e depois.

Volto aqui ao termo reescrita. Ainda hoje continua válido para descrever o meu método de trabalho. Raro o parágrafo, rara a frase que não sejam reescritos. E o processo é cumulativo e de mão dupla. Quanto mais reescrevo, mais escrevo. Começo com dois, três parágrafos, ou até mais. Depois volto ao início e começo a reescrever. A tendência é sempre no sentido da ampliação, raramente da redução. Aqueles três parágrafos iniciais, na reescrita, podem transformar-se em seis. Que, da mesma forma, precisam de reescrita.

Tudo isso leva a uma descoberta que é a mais banal das descobertas: escrita gera escrita, ou melhor, no meu caso, texto gera texto. É trabalhando no texto que eu produzo mais texto. Mas não é explicitamente do texto que eu retiro mais texto. O olhar, a atenção, têm de estar no texto; mas de algum lugar da mente vêm as coisas que eu preciso não só para ampliar mas para refinar o texto.

Que coisas são essas? Tanto quanto posso imaginar, são de três tipos: a) a memória da experiência de viver; b) a memória da experiência de ler; c) os atos falhos.

A memória vivencial é aquela que contém os vestígios do que vivi, não só como ator de minha própria vida mas como espectador da vida dos outros. A memória literária é aquela que traz para o texto em construção elementos das leituras que fiz durante a vida; esses elementos são geralmente usados intertextualmente como referências ou analogias. Os atos falhos — e o termo surgiu numa conversa com Renata e Rita [Maia] — acho que posso dizer que são aquelas coisas que descem não sei de onde, e me surpreendem, e de certa forma me embaraçam, embora de forma positiva.

Quando sento diante do computador para escrever uma história, já levo comigo três instrumentos indispensáveis para a tarefa: a) o argumento; b) a forma narrativa; e c) a habilidade adquirida de escrever. O que é isso? É a habilidade quase mecânica de pôr no papel uma história. Isso eu já levo comigo quando sento para escrever.

Quando começo a escrever, essa habilidade é acionada. É uma habilidade consciente. Eu sei o que estou fazendo. Mesmo quando a frase já sai bem acabada, é fruto de um trabalho consciente. Só que, de repente, desce uma expressão, uma idéia, ou uma frase totalmente inesperadas. Até aquele exato momento eu não tinha consciência delas, mas elas vêm. Vêm de algum lugar que não sei qual é — o inconsciente, o subconsciente, sei lá – e me surpreendem como um ato falho. Condizem com o texto em progresso mas destoam dele pelo mistério de sua origem e pela originalidade de sua essência: eu nunca tinha pensado aquilo.

Recapitulando: Eu não tenho escrita; tenho reescrita. Texto gera texto. O processo de criação é uma parceria entre consciente e inconsciente.

O consciente é responsável, por exemplo, pela pesquisa que muitas vezes — como no romance medieval — preciso fazer para uma história. Isso precede o texto. Mas o trabalho de criação, o engalfinhamento do autor com as palavras e os conceitos, só se faz no leito do texto. O texto nasce da integração entre autor e texto: entre consciente e inconsciente. É preciso escrever para escrever. O texto nasce do texto; sofre a interpretação, a avaliação e a elaboração do autor; e volta, modificado, ao texto. O trecho final de Sueli dá uma idéia dessa parceria, dessa colaboração, dessa comunhão, desse casamento entre autor e texto:

Não tenho mais ânimo, energia, coragem, disposição, paciência, amor, não tenho mais conteúdo nem forma, não tenho mais nada para investir neste romance confesso. Tudo que quero agora é deixar para sempre sua difícil companhia: tempo já não é sem de cada qual ir pro seu lado. Posso até, de vez em quando, vir a lembrar-me com certa nostalgia dos dias em que estive a serviço deste romance, ajudando-o, como autor, a se escrever: mesmo afastado, mesmo sem nada mais a ter a ver com ele, nunca hei de esquecer o romance chamado Sueli, de Reinaldo Santos Neves. Mas agora chega: o romance extraiu de mim tudo que pôde: estou seco e estéril. Assim, já que estou acabado para o romance, para mim o romance está acabado também. Nem mais uma só palavra seja aqui dita por escrito, a não ser — imprima-se.

Essas foram as reflexões que vieram quando me dispus a escrever alguma coisa para dizer aqui. São rudimentos de reflexão, e talvez equivocados. Repito: sou um artesão. Crio e escrevo sem pensar sobre o que estou fazendo. Se pensasse, acho que não escreveria nem criaria nada.

Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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