O francês Gilbert Chaudanne nasceu em Besançon (talvez não por coincidência também a terra natal de Victor Hugo), a 332 quilômetros de Paris, em 3.6.1948. Logo, logo, porém, Chaudanne abandonou as ruínas romanas, as brumas e o clima romântico da bela Besançon, além da formação acadêmica em Biologia e Matemática, com mestrado em Geologia, e, tomado pelo espírito de Van Gogh, caiu no mundo — atrás de sol e calor —, munido apenas de pincel, caneta e de um desejo insanável de capturar o Belo com tintas e palavras. “Mas a arte é uma busca eterna. Por isso estou sempre pintando” — diz ele, candidamente, sabendo que, ao chegar ao topo de uma montanha, é preciso continuar subindo.
Quando Você convidou o escritor e psicólogo Oscar Gama Filho para entrevistar Gilbert Chaudanne, esperava apenas uma entrevista. O que se vai ler nas próximas nove páginas é mais do que isso. É, principalmente, um debate sofisticado sobre o fazer artístico.
Atenção: Esta entrevista é para ser lida com sotaque francês.
VOCÊ: Por que a opção de vir para o Espírito Santo, deixar a França, um país civilizado, e aqui desenvolver uma obra bonita, tanto em termos de artes plásticas, quanto de literatura e de crítica?
CHAUDANNE: É uma história antiga. Eu tive um primeiro contato no Brasil, em 1972. Me apaixonei pelo nordeste, o lado medieval, os poetas populares. Bom, eu fiquei por lá 7 anos, e depois voltei para a França, querendo voltar ao Brasil. Só que no nordeste, às vezes, eu ficava meio isolado e procurei um lugar no sul. Mas, também, não gosto de cidade muito grande. Olhando o mapa tinha que ter certas condições, como ser uma cidade à beira-mar, uma cidade com clima tropical, uma cidade que não fosse grande demais e que fosse, também, capital cultural para eu poder me manifestar. Rio era muito grande, Salvador também é grande. Lá no sul tem Florianópolis, que é uma ilha, e eu não sabia, e olhei Vitória: deve ser aí. A opção foi a mais racional. Aí, depois de chegar aqui, comecei a pintar arte sacra, porque a cidade… esse lance da Madona é muito interessante. A cidade, na verdade, é dedicada à Nossa Senhora da Penha, Nossa Senhora da Vitória. Não sabia nada disso. Lentamente, inclusive, conversando com as pessoas ou com os alunos, às vezes, lá na Aliança Francesa, surgiram esses signos. Na escrita, trabalho o espírito do lugar, e eu vi que a cidade tinha uma configuração incomum: ilha e montanha. Esta é a configuração do lugar e já me despertou interesse. Então, tem um jogo de simbolismo. E é do que eu gosto, perto do mar, clima quente e tal. Eu não sabia das montanhas, uma boa surpresa. Eu gosto delas, como gosto do mar. E, justamente, talvez, dizem que o inconsciente se esconde no lugar da razão. Cheguei aqui pensando em ser bem racional, e achei a minha mitologia toda aí. Ela foi-se formando, no caso da Madona. Então, é uma escolha racional, que foi-se desdobrando em símbolos. É só, talvez, o meu imaginário que está nutrindo isso, mas o lugar sabe me nutrir. Ele é um pouco fenomenológico. Mas, o caminho foi isso, foi uma armadilha agradável através do meu inconsciente, eu acho.
— Então, Chaudanne, o clima foi fundamental para trazer você para o Brasil? Por que a Europa, também, é medieval. O que trouxe você para o Brasil foi o que levou Rimbaud para a África? É o clima, é o sol? Rimbaud disse que era impossível escrever debaixo de um céu azul e um sol daquele, não é?
— Eu acho que muitos europeus têm esse mito do sol. Rimbaud falava que era filho do sol. Só que, para mim, é o contrário. Sobretudo, para pintar, o fato de ter o sol… Se acordo e tem um sol como o desses dias, tenho vontade de pintar. O clima cinzento da Europa me angustia e acho que não é por acaso que Kierkegaard criou o conceito de angústia nas brumas, que não são nem de Avalon, são da Dinamarca mesmo. Então, tem uma certa náusea, sim, porque a Europa de hoje é cinzenta. Essa luz, sim, é de poeta, essa busca da luz e, do pintor, é talvez mais, porque o Van Gogh ficou deslumbrado no sul da França. Bom, a Holanda tem muitos pintores, mas não chegam até essa luz mediterrânea. Aqui no Brasil, esse jogo de luz e de cor… a luz é muito forte e a cor, talvez, torna-se transparente, de certa maneira. O que eu retrato lá nos meus quadros e uso muito é um gel, que dá uns efeitos de superposição. Agora, o fato mais prosaico do quente e do frio, é que eu me sinto melhor no calor. Talvez tenha um lado psicológico, o cinzento e as neblinas e tudo isso, a neve. Eu até gosto, mas… Eu tenho essa fascinação pelo sol. Meu primeiro contato foi no sul da França e na Itália, quando era adolescente. Com o mar Mediterrâneo também, o mar e o sol.
— Vitória tem um hino oficial e um hino verdadeiro, que é: “Cidade sol com o céu sempre azul”. Diz a lenda que o nosso azul, a nossa luminosidade, não tem igual no Brasil. E a melhor época do ano, segundo os especialistas em cor, seria o outono, que teria as cores bem interessantes. E no verão, no nordeste, há um problema, porque a luz é demais, então, ela desbota um pouco, fica chapada. E no sul tem a questão de ficar meio penumbrento, meio angustiante e cinzento. Aqui a luminosidade é celebrada, vemos várias pessoas falando isso.
— Eu nunca ouvi falar o que você está falando, mas já fiz essa observação da luz do nordeste: ela deixa as coisas e as cores chapadas. A daqui tem um lado meio impressionista, apesar de que eu não trabalho assim, mas tem muito paisagista aqui na pintura, talvez porque, realmente, a paisagem seja incomum. Mas, também, por causa dessa luz, dessas mudanças. O mar, às 5 horas ou 4:30, é o mar de prata. Acho que lá no sul puxa mais para a penumbra e já vem a luz européia. A do nordeste me fascinou, mas a daqui… talvez, a de lá seja mais cortante e a daqui puxe mais para delicadeza dos tons.
— É o tempero adequado. No nordeste salga a tela e no sul tem pouco sal. Aqui há um equilíbrio. Bom, uma pergunta que vem em decorrência do que estamos falando, você tem uma atração por símbolos sacros, por madonas. Essas atração é meramente estética ou tem um cunho religioso? Quer, dizer, você tem uma ligação religiosa, de alguma forma (porque são símbolos católicos) com o catolicismo? Você é católico?
— Eu vou dizer não, mas eu me defino, atualmente, como agnóstico. Com relação ao problema do divino eu falo o tempo todo, nos meus escritos, o divino tem toda uma relação complexa. O católico, o que admira em certas religiões, não é só cristão. Tem o budismo, inclusive, a arte tibetana e tudo. Eu gosto muito do ícone ortodoxo mas também do medieval. Escultura, catedral. Eu acho que até a metade do Renascimento, até Leonardo da Vinci, incluindo a Idade Média toda, todos os ícones, havia algo de sacro naquelas figuras. No Barroco, às vezes, perde-se um certo tipo de sacralidade, para passar uma coisa mais emocional. Eu assumo minhas fascinações. Sei que não posso explicar isso, explicar como, dessas fascinações, faço imagens. Para mim o importante é isso. Ultimamente, voltei a pintar naturezas mortas, que já fazia há muito tempo, no nordeste, e, quando adolescente, na França. Aí, eu me questiono: o que uma chaleira tem em comum com a Nossa Senhora? Porque um seria um olhar mais fenomenológico da natureza morta, do objeto como percepção, e a Madona é rasgar o céu, transcendental. Mas gosto muito de Van Gogh, não gosto só de arte sacra. Munch, Klimt, por exemplo, aquelas cadeiras, de Van Gogh, de palha, o que é que tem lá que fascina tanto? Para mim, elas são tão sagradas como a Madona de Rafael, de Leonardo da Vinci ou de Boticelli. Porque, na verdade, não é tanto o tema que importa, ele tem uma função, mas é o olhar. E nessas naturezas mortas, aquela chaleira simples, acho que o mundo está ali, só. Você tem uns momentos em que vê um objeto, ele é simples e está lá. Parece que o mundo se centraliza, se fecha ao redor daquela cadeira e daquela chaleira. E naquilo tem tanta coisa quanto numa imagem do Divino. Estou lendo filosofia, atualmente. Eu leio muito São João da Cruz, mestre Descartes, essa linha. Agora, não posso dizer que tenho fé. Acho que no fundo tem algo em mim que quer ter a fé. Então, tem uma parte de mim, que é a minha parte intelectual, que não se desdobra, não casa com isso. A gente não tem resposta mesmo. É fazer imagens e pronto.
— Nota-se que você tem uma tendência à sacralização e à transcendentalização. São tendências, e falo isso, naturalmente, em tom de elogio, um pouco metafísicas, em que você abandona os limites da realidade sensível. Aliás, agnóstico é aquele que acha que pelas vias do conhecimento sensível não se pode conhecer Deus. Mas essa sacralização, essa tendência a transcendentalizar, essa direção que a gente vê, eu percebo muito em você. A gente vê que a sua mente, a sua alma, não habitam o mesmo espaço que seu corpo. Você se preocupa muito pouco com o seu corpo, com o que você faz. Você seria uma máquina de produzir arte, uma máquina de transcendentalizar, uma máquina de sacralizar. Como é isso? Por que cresceu tanto a arte dentro de você, como elemento físico, orgânico, corporal, se atrofiou?
— O transcendental existe no meu trabalho, no que eu falo, mas não é um transcendental, apesar de que a arte sacra é neoplatônica, de certa maneira. A concepção que tenho disso é mais no caso da natureza morta, é o surgimento do ser. Como Heidegger fala, o ser é um assoalho e neste tem uma tábua que descolou, que despregou, e ela levanta um pouco, e aí tem um buraco. Esta é a imagem que criei para mim, sempre o lance das imagens. E não tenho essa separação, justamente, do corpo e da alma, que é mais Platão. Não vejo de outra maneira o corpo. Tenho pavor do bom materialista, que fala que, quando isso aqui morrer, não vai ter mais nada. Estava lendo Augusto dos Anjos, Verne, e não acredito nesse poder do espírito. O espírito, a psique existe, é claro, o homem não se reduz a uma fisiologia. Mas acho que não se reduz nem ao espírito nem ao corpo. Porque o materialismo absoluto, também, não satisfaz muito o questionamento. O corpo-envelope, receptáculo do espírito, da alma, não me satisfaz porque uma dor forte tenho que procurar um médico, ele que tem o remédio. O corpo tem a vida dele. O Artaud falava que o corpo pensa, mas é uma contradição, porque no meu trabalho, tanto na escrita como, sobretudo, na pintura, tem esse transcendentalismo neoplatônico. Disso aí sou consciente porque tem toda representação, como o pássaro da alma, a serpente da matéria-prima e por aí vai. Mas é o que estava falando, não sou pensador, no caso da pintura ou da escrita poética, eu tenho que aceitar o que está chegando para mim. Porque me coloco na posição do receptáculo e tenho que aceitar, mesmo que a minha razão, o meu intelecto, não aceitem, o que está chegando.
— Bom, vamos explicitar melhor isso. É o seguinte, Chaudanne: a sua pintura está presente, mas não estou-me referindo a ela. Onde é que está Gilbert Chaudanne? Para o capixaba, você é um enigma no seguinte sentido: seu corpo, suas vestes, sua barba, seu cabelo sempre, artisticamente, revoltos, como era Rimbaud. Nenhuma preocupação em passar um pente no cabelo, na barba, e não estou dizendo que você deve fazer isso, porque, no dia em que fizer, vou ficar decepcionado. Quando a gente vai conversar, percebe-se isso, que nós temos aqui um dos grandes cérebros, uma das nossas grandes mentes, uma das nossas grandes sensibilidades. A gente percebe que essa mente parece que abandona o corpo, parece que se desliga dessas coisas materiais, dessas coisas efêmeras, coisas fúteis, de vaidade, e você se sintoniza em outro canal. Quero saber sobre Gilbert Chaudanne. Como fica isso? Em termos do seu ser, de você, Gilbert Chaudanne. Há esse tipo de posição, de fato?
— Não é uma posição. É uma coisa que eu não procuro, não é uma pose. Eu sou assim. Não estou obedecendo ao, por exemplo, Rimbaud, que admiro muito, mas não faço o gênero Rimbaud. Se eu tenho alguma coisa a ver com ele, é que eu também sou um matuto lá da França e, talvez, os bárbaros e ineptos que eram os gauleses e tal. Mas não tem pose naquilo, é uma coisa assim que… Sinceramente, não me preocupo com isso. As pessoas me aceitam e acham meio estranho, mas não é atitude, uma espiritualização. Eu sou um camponês da arte.
— Chaudanne, estávamos conversando há pouco e você dizia que, de certa forma, cada obra de arte é um resumo do universo que a comporta. Seria mais ou menos como o DNA, em que cada célula do corpo tem uma cópia de todo o ser?
— Eu fiz, certa vez, uma pequena teoria. Gosto de teorizar também, é o meu lado intelectual. Não tem aquele quadro com um casal que tem um medalhão que representa o quadro todo dentro do quadro? O quadro dentro do quadro. Dentro dele tem o infinito. Esta é uma ilustração que, como o Aleph, de Borges, parece — e a gente pode sonhar com isso — que tem um ponto, de onde se vê o universo todo. Pode ser um plano puramente simbólico, mas poderia ser também como uma abertura para o real. A obra de arte não concorda com esta interpretação do psicologismo, é a subjetividade do artista que está vendo. Eu acho que a arte, se não é um conhecimento no sentido científico, é uma apreensão do real. Mas esse real é inacessível, é uma busca eterna, por isso que o pintor está sempre pintando. Eu já fiz centenas de madonas, mas depois vou fazer outras, porque cheguei perto, mas não é. Isso aqui são especulações mesmo da razão pura ou prática. Só que, no ato da criação, não tenho essa preocupação. É algo que acontece, vou acompanhando, porque tem um desdobramento e gosto de analisar um pouco, filosófica ou criticamente. Acho que a filosofia e a crítica são um jogo do espírito, como a arte. Falamos que a arte é lúdica, mas o pensamento, mesmo altamente lógico, é lúdico também. O que é mais lúdico do que matemática? Não para os meninos do colégio, claro, que eles vão achar chato.
— Uma questão muito importante que temos visto é a possibilidade do novo. Nós, artistas, perseguimos alguma coisa que pode ser o novo, o belo. Existe a possibilidade do novo e do belo? Algumas pessoas dizem que esta possibilidade não existe porque a arte teria morrido, aí pelo final do século XIX, início do XX. Picasso chegou a dizer que o grande problema da arte moderna é que ela não tem defeitos, e todos os defeitos foram usados como estilo. Esta impossibilidade de você ver um erro na arte, porque a arte não erra, quem erra é o olhar do crítico, ela, de certa forma, é usada como argumento pelas pessoas que dizem que a arte morreu, enquanto possibilidade técnica e estética. O que você acha disso?
— O Nietzsche falou que Deus morreu. E alguém escreveu numa parede, não me lembro onde: “Deus está morto. Assinado: Nietzsche.” E logo abaixo: “Nietzsche está morto. Assinado: Deus.” Esse novo é o mito modernista. Não sou contra o novo, mas não é uma obrigação absoluta fazer algo de novo. Por exemplo, a arte do ícone existe até hoje como existia no Império Bizantino e o grande lance é fazer dentro dos padrões, o que não impede uma manifestação pessoal. Os ícones de um bailarino russo você reconhece, têm estilo próprio dentro dos padrões. Essa busca do novo vem, sobretudo, a partir do Impressionismo. E era preciso porque a pintura estava um pouco empoeirada, sem gosto. Depois, você exagerou em acreditar que a morte da arte é, na verdade, uma arte maior. Eu especulo como crítico, mas como pintor não. Inclusive, a teorização faço depois, não antes de pintar. O gesto é como o da bailarina, é um acontecimento puro, não tem como codificar. É claro que isso carrega coisas que são legíveis, em termos filosóficos, e sempre vai ter esse espaço de indeterminação. Até na ciência tem isso, hoje, o princípio de incerteza. Então, se tem na ciência, tem, a fortiori, na arte. É simplesmente o excesso de teorização que faz falar do novo, da morte da arte. O belo… O belo existe: uma madona, um anjo, uma cadeira lá de Van Gogh. Mas o verdadeiro belo tem uma dimensão que assusta. É o surgimento do improvável, do impossível, ou um reflexo, porque não é um impossível em si, mas é uma abertura. Em geral, no meu trabalho com as madonas, por exemplo, inclusive, os cristãos são os primeiros a reconhecer que aí tem algo sacro, que essas madonas têm algo muito forte, e acho que o meu papel é o belo, e não dizer se é ou não divino. Tem belo na madona, mas não é um belo, assim, doméstico, bonitinho. Não é o bonito, é o belo, e o belo é: todo anjo é terrível, toda beleza é terrível. É só olhar, quando aparece uma mulher muito bonita… Se você não consegue olhar, olhe o olhar de quem está olhando ela. É o deslumbramento. É o deslumbramento.
— Então, uma das funções da arte seria exprimir o inexprimível?
— O que Rimbaud tentou fazer na poesia, por exemplo, é justamente anotar essas sensações fugazes. A literatura, às vezes, é mais analítica. Seria uma definição possível da arte de pintar o improvável, o impossível e, talvez, no meu caso, na arte sacra, o imponderável. Estava percebendo, gosto muito da Santa Teresa de Ávila, do Bernini, aquela escultura, que já está em êxtase com a boca entreaberta, só que ela não recebeu o Eros, o amor divino, porque a flecha do anjo que está lá ainda não atravessou o coração dela — mas ela já está em êxtase. O que eu estava falando do gesto é isto. É essa suspensão do gesto que apenas aflora à tela. É só um afloramento. Não é uma coisa, pelo menos no que estou procurando fazer, como retratar madonas, anjos. Tenho que pintar essa imponderabilidade de outra maneira, mas estou pensando nas bailarinas de Degas, porque, por exemplo, eu tenho um lado expressionista, quando faço Cristo. Fiz o Anchieta, mas aí é por causa do tema da crucificação. Na crucificação há a tortura, então o expressionismo pode funcionar, um mysterium tremendum, o mistério do horror, e os Cristos de Grünewald, por exemplo, aqueles trípticos aí, é um horror belíssimo, como o suplício de Bataille, por aí. Mas a minha linha não é bem… de vez em quando, dependendo do tema, tem esse belo horrível, terrível. Em geral, é o belo imponderável. São imagens da neve, da rosa, mas o inconveniente dessa linha é que você “bate a cabeça com o açucarado”, e não é nada disso, não é o sentimentalismo. É muito mais quando você fala do transcendentalismo. É um aconchego transcendental. E isso aqui, realmente, deve ser uma deformação profissional. Vejo uma mulher com um neném, e não tem jeito: vejo um princípio, não em termos intelectuais, mas em termos de artista. Então, essa busca dessa espécie de neve espiritual é difícil, porque é o imponderável, é algo que é mais difícil de retratar do que a dor, por exemplo, do Cristo.
— Bom, contra o pessimismo crítico a respeito da arte, nós temos que ter o otimismo da prática do artista que pouco se importa com o crítico. A originalidade foi criada pelo Romantismo. Até então, a lição dos clássicos era a imitação, justamente, porque se copiava e se deveriam copiar em sala de aula os autores clássicos, os autores estudados. A norma era a imitação. O bom artista era aquele que conseguia imitar os clássicos com perfeição, dando um toquezinho peculiar, mas não exagerado. Daí surgiu o Barroco, quando exageraram a mão. Chaudanne, você está sempre envolto neste universo estético, é quase um personagem de si mesmo, fala bastante do seu lado plástico, mas falemos um pouco do seu lado literário. Como é essa imersão do seu ser no elemento estético? Como é que você se insere nisso? Eu não vejo você fora dessa universo estético. Eu já vi você dando aula. Suas aulas deveriam ser gravadas em vídeo e divulgadas. São obras de arte. Mesmo um tema que, vamos dizer, você não conheça bem no momento, daí a pouco, se alguém te convidar para trabalhar aquele tema, com todo prazer, com toda graça, você efetua. Como é isso, como é essa imersão da sua sensibilidade, é arte 24 horas por dia?
— Praticamente. Estou pintando, escrevendo e me manifesto muito, e, talvez, eles vão chamar de maturidade, mas tenho facilidade, hoje, de pintar e escrever. Escrever é esporádico, só os ensaios para a revista Você é que são regulares. O tipo mais poético é esporádico, mas, também, não é a quantidade que faz a qualidade. É a prática mesmo. Ser artista não é fazer uma representação, é viver a arte. As pessoas acham que tem a vida de um lado e a arte do outro. Não. A vida é seguir alguma coisa, algum caminho. Escrever? O cara pode ficar o dia todo fechado no escritório e escrever como Proust, no final, e ele está vivendo mais que o cara que vai ao Pólo Norte. Depende tudo da pessoa. Em relação à escrita, tenho o mesmo método que tenho na pintura. Não controlo, deixo, como surrealista, a escrita automática, fluir o que seria o inconsciente. Isso aqui não tem controle. As palavras são saborosas, mas elas têm um lado que… Talvez, eu coloque a literatura antes, mais alto, na minha paixão. A diferença que sinto entre a pintura e a literatura: primeiro, tem uma parte de mim que não gosta de fazer os dois, porque não gosto desse lado de fazer muita coisa. É bom se concentrar só em uma, mas tenho que aceitar os dois. A pintura tem um lado, aparentemente, mais material. Tenho um prazer artesanal em pintar. Aquele negócio do camponês da arte, que está mexendo com a matéria. E tem essa transfiguração, que dessa matéria está saindo algo que não é mais matéria. Isso aqui é muito sensível, é no toque. Agora, a literatura é mais ascética porque diante da página branca tenho mais angústias do que diante da tela branca. O material não vai ser pegar em pincel ou me sujar, e todo essa lado da criança que brinca. É mais ascético porque tem uma página branca e uma caneta: é como um monge dentro de uma cela pintada de cal. Não tenho esta presença sensual da matéria. Estou trabalhando com algo que ainda é seco, porque a palavra tem duas vertentes: ela é uma fruta saborosa (claro que o poeta trabalha com o gosto da palavra, um Rimbaud, Mallarmé e tal), mas ela, também, carrega outras significações de ordem conceitual e isso, muitas vezes, atrapalha a escrita, porque, como dizia Mallarmé, “não sei fazer um poema com idéias, mas sim com palavras”.
— Concordo com você. Acho que a riqueza da literatura é a pobreza dela. Comparando, de fato, com artes plásticas, com pintura, por exemplo. Pode-se incluir palavras nela. A pintura já tem um cenário pronto, ela é um livro em si mesmo com figurino, com roupa, cenário, e eventualmente, até com falas. Já na literatura têm que ser usados dois tons, em geral, preto e branco, e desse conjunto compor cenário e figurino. Compor elementos que, de certa forma, são a riqueza, porque a possibilidade de a pessoa chegar a caminhos próprios, que não os do autor, é infinda, por causa dessa pobreza. Quando você fala “ascética”, está falando ascética, de “ascese”, e não “asséptica”, de “assepsia”. É bom falar sobre esta questão, a pobreza da literatura é a sua riqueza.
— Estava comparando o escritor com um monge, devido à cela pintada de cal, que lembra uma página em branco. Então, a pobreza dele é isso. É esse lado monástico do escriba. Essa pobreza é uma riqueza porque, justamente, a literatura vai no coração das coisas, pois é desprovida, pelo meio que usa, do lado anedótico. Ela não tem escolha, ou é essencial ou não é. Gosto muito dessas imagens que você falou, talvez um lado meio monge na minha personalidade. O temperamento do escritor e o do pintor são muito diferentes. Não posso generalizar, mas pensando um pouquinho, o Proust se fechou num quarto até morrer, escreveu lá com as formigações dele e foi um monge, escrevendo, escrevendo. Pode-se pegar também um Van Gogh, que era trágico, mas era um cara de sair, fazer farra e pintar. Quer dizer, um é um monge, e o outro é um boêmio. Desde os anos 70, eu sinto este lado e o chamo até “o escriba”, porque o monge, no caso, é ligado com o literato, com o escritor. O pintor mostra isso, é aquele que morde na fruta. Parece que o pintor morde na fruta e o escritor está descrevendo. Talvez, ele vá mais longe na fruta, na essência, o escritor. Mas tem esse lado monástico da literatura. E esta condição monástica, no caso do escritor, não impede a paixão, ao contrário, é algo que não se escreve com a razão. Às vezes, uma imagem do fogo, no caso de Van Gogh, pintar com fogo e escrever com gelo. Mallarmé é uma poesia fria, só que o gelo também queima.
— Você fala de Lacan, falou da sua atitude diante da tela branca e do papel em branco. Os analistas, como eu, costumam dizer que o papel e a tela em branco são o analista perfeito, já que a pessoa pode projetar ali todo o seu ser. De fato, funcionam como um teste projetivo de personalidade. Projetamos nossa personalidade em determinado receptáculo. Você acha que isso, de fato, ocorre? Que a angústia seria o motor da criação? Talvez não o motor da criação, quando o artista já estivesse consolidado em termos de uma maturidade profissional, mas, pelo menos no início, a angústia seria o motor da criação? E a tela ou o papel em branco seriam uma espécie de analista?
— Não há dúvidas que a angústia é fecunda. Ela faz criar. Agora, tem um limiar: se você cai do outro lado, não consegue pintar. E se ficar, vamos dizer, entre os dois, é sempre um jogo de meio-termo. Esse exagero acontece por si, mas não se pode procurá-lo. Quando ele chega, eu o recebo. Essa figura do artista, do poeta tipo romântico, exaltado, na exaltação dele achando verdades incríveis, tem um pouco disso e existe o seu mito também, porque no poeta e no pintor há um lado quase matemático, só que a lógica que surge aí não é a lógica da matemática, é a lógica dos símbolos. O artista tem que ter esta vacuidade para poder se deixar levar por isso. E o que cria a vacuidade é, muitas vezes, a angústia, porque é uma descida ao inferno. Há um poema de Baudelaire em que ele vai descendo, naquela orgia, e cai na sarjeta, e aí, na gruta adormecida, acorda um anjo, porque existe um momento em que não se pode cair mais, parece que o inferno tem fundo. Pergunta ao Rimbaud, que é um especialista. E não tem jeito, porque você, querendo ou não, vai subindo. Tocou o fundo e, lá, parece que não é só lama, existe mais alguma coisa, tipo um mergulho. Agora, a tela ou a página branca como suporte psicanalítico tem fundamento. Em Vitória fiz uma descoberta, que é a psicanálise. Eu não tinha este tipo de contato na França. Estava questionando a crítica de arte e a literária e comecei a descobrir um pouco isso nos místicos, como São João da Cruz. Conversando sobre o tema, surgiu o interesse por Lacan. Eu acho que se é uma projeção da minha subjetividade, na verdade, é furada. Neste furo, tem um pedaço do real que ilumina toda a obra. É claro que existe o caminho da singularidade, Van Gogh é Van Gogh e Einstein pode até ser outro, que descobriu a relatividade. Se o artista chega ao real, é por causa da sua subjetividade e, ao mesmo tempo, tem a sua exaltação dela e a sua abolição. Neste ponto abolido é que surge o real, quer dizer, o belo. Para nós, para o artista, para mim, o real é o belo. O efeito do belo, que faz com que um quadro pareça sempre uma janela aberta sobre algo. O Gide falava que tinha de abolir esta noção de mérito espiritual. E o Proust acrescentava que o gênio, quer dizer, o poder criador, tem algo que é como uma distração. Percebi que, às vezes, não estou nem aí, especialmente, para a escrita. Não posso escrever num ambiente fechado. Tenho que ir ao Centro da Praia, as pessoas passam, a vida está circulando e vou escrever uma carta para não sei quem e, de repente, está saindo um texto. Então, a relação não é de propriedade. É algo que está escapando do artista e, mais uma vez, está acontecendo, está surgindo. Pode ser, também, este lado sofrido, pode ser um lado patológico, uma dor, algo assim. Falando do caminho da singularidade, a personalidade, num sentido bem amplo, incluindo o inconsciente, é que projeta isso. Mas não tem só isso, porque a isso eu chamo de “psicologismo”. O impressionismo é subjetivo. Eu já fiz algumas palestras e existe a leitura do impressionista, que é objetiva. Ele não está pintando as suas impressões. Esse fluir da pincelada e tudo, é como se o quadro ou a paisagem estivessem se refletindo num rio, que corre devagar. Este rio está em tudo, é invisível atravessando todas as coisas, e é o quê? É o tempo. A conclusão é que o impressionismo é objetivo, considerando que o tempo não é apenas uma leitura do espírito, mas um problema filosófico. Considerando que o tempo é objetivo, então, os impressionistas não têm nada de subjetivo. Eles pintam o próprio tempo. O que me ajudou muito a raciocinar (porque gosto do raciocínio crítico) ultimamente foram Heidegger e Lacan, a psicanálise, mas juntando isso aí, o Heidegger realmente coroou uma tendência, que eu tinha graças aos místicos, e me encaixou numa linguagem filosófica. Cada vez mais vou usar estes conceitos, inclusive o da angústia. Isso aí é dele, esta angústia fundamental.
— A angústia é um motor e aonde se chega é o belo. É isso, Chaudanne?
— É, acho que se pode resumir assim.
[Entrevista realizada por Oscar Gama Filho e publicada na revista Você, da Universidade Federal do Espírito Santo, n. 47, julho de 1997.]
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)