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O canto do Re-nato

A maior missão de um escritor é fazer-se literatura, tornar-se literatura. Escrever bem qualquer um consegue. O diferencial é conseguir metamorfosear-se em O Escritor, transformar-se em matéria-prima de lendas, em homem santo da religião sem deus dedicada à adoração do hegeliano espírito da literatura, entronizar-se como Filho do Absoluto.

O trabalho de Renato Pacheco contribuiu decisivamente para estruturar a identidade cultural capixaba. Criou nossa primeira editora, as Edições Renato Pacheco. Participou da Academia Capixaba dos Novos, da Academia Espírito-Santense de Letras, da Comissão Espírito-santense de folclore, da Fundação Cultural do Espírito Santo, do Instituto Histórico e Geográfico local, da Fundação Ceciliano Abel de Almeida e do Grupo Letra, cujo convívio, segundo ele mesmo, o conduziu, a partir de 1981, à sua segunda e melhor fase como escritor.

Em Cantos de Fernão Ferreiro e outros poemas heterônimos (Vitória, Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes, 1985), Renato Pacheco sentou nos ombros de Ezra Pound, de Fernando Pessoa e de Jorge de Lima. Assim ombreado, equiparou-se a eles. Os heterônimos pessoanos e a escrita ideogrâmica de Pound foram batidos pelo ferreiro com o explosivo gelo quente vulcânico de Jorge de Lima e se converteram no seu melhor romance, uma obra-prima que lhe garante vaga na imortalidade.

O livro inspirador, de acordo com sua “nota prévia”, foi The Cantos, de Ezra Pound, de onde parte seu compromisso em ser vanguarda, descrito pelo verso que tanto inaugura quanto encerra a obra: “Agora tudo é novo e ao longe nos conduz”. Seus limites são o novo.

Sim, romance, mesmo em verso. Romances pertencem ao gênero épico, são epopeias como a Odisseia, de Homero, escrita na métrica greco-latina, que não empregava a rima. Os Cantos se passam em uma viagem empreendida em um navio e a ação é narrada de maneira discursiva e detalhada por Fernão Ferreiro, cuja grandiloquência enobrecedora age até mesmo sobre o cotidiano e o comum, revitalizando-os pela beleza.

Estrutura-se com princípio, meio e fim e se divide em 81 Cantos mais ou menos intercambiáveis no seu conjunto e totalmente independentes entre si, em virtude do método ideogrâmico criado por Pound. No método ideogrâmico, um conjunto de duas ou mais palavras ou ideias propõe, por meio da interação das relações comuns aos elementos, outro novo sentido que difere da soma individual de cada uma das palavras ou ideias.

Como em Pound, a submersão no mistério das inúmeras citações efetuadas no poema pode nos levar a olhar em volta e a mergulhar nos enigmas que nos rodeiam, pequenas bolas de luz no meio do universo escuro que se infinitiza. Tal qual fazemos com as estrelas, não devemos nos preocupar com o seu significado ou com a sua compreensão. Em arte, o único esclarecimento necessário é a intuição de estar com mais coisas na saída da obra do que na entrada. Se essa fruição estética chegar, será o bastante para ouvir estrelas falarem.

Esse é um poema épico regional: o centro do mundo é o Espírito Santo (o ponto comum a todos os conjuntos) e o centro do Espírito Santo é Fernão Ferreiro (Canto 30), já que é a partir desses dois centros que o poeta lança seu olhar aos arredores constituídos pelo resto do planeta.

Seu compromisso, dizia ele, sempre foi o de escrever sobre o Espírito Santo, só sobre o Espírito Santo, basicamente o Espírito Santo. Essa atitude o transformou no principal escritor regionalista capixaba.

E, sim, existe uma literatura capixaba baseada apenas no critério geográfico, o único logicamente aceitável. Os elementos estilísticos ou lexicais não são suficientes para classificar uma literatura em brasileira, nordestina, baiana, capixaba, americana, inglesa ou italiana. Grandes artistas produziram esse efeito ilusório em lugares em que havia um capital cultural poderoso o bastante para alavancar seus autores.

Pela teoria da intertextualidade, todos os escritores escrevem um só livro desde o princípio dos tempos até o futuro. À luz da teoria do intertexto, não existe divisão do mundo em diferentes escolas literárias. Os dados técnicos originais se perdem no tempo e o simples uso do mesmo alfabeto já é intertexto com influências inevitáveis, pois cada língua nos obriga, ditatorialmente, a dizer algo diferente sobre a mesma coisa primitiva criada há 6.000 anos. Qualquer coisa é a mesma coisa e não há nada de novo sob o Sol.

A solução lógica é que o geográfico esteja por trás de cada divisão do Brasil em literaturas diversas, pois o argumento estilístico não resiste a uma análise mais profunda. Portanto existe literatura capixaba, sim, e Renato a descobriu e foi um dos seus inventores.

Só como exemplo: são grandes artistas, como Shakespeare, que produziram a literatura inglesa. Mas ele poderia ter ajudado a criar a literatura italiana com obras parecidas e com recursos técnicos similares se tivesse nascido na Itália e se sua língua fosse o italiano: Otelo, o mouro de Veneza, bem como Romeu e Julieta, são temas típicos da Itália. Em Verona existe até a casa de Julieta, criada para turistas e sabidamente falsa.

Dois fatores produzem o que se chama de literatura italiana ou inglesa:

1- a qualidade excepcional dos artistas dentro de uma unidade geográfica que os definiu a priori como italianos ou ingleses, obrigando-os a falar dentro do que a possibilidade da língua determina;

2- o capital cultural circulante, como havia em Florença. De que adiantaria Shakespeare, com toda a sua genialidade, ter nascido no Brasil pobre e subdesenvolvido, como foi o caso de Machado de Assis?

Defino capital cultural como a quantia que, derivada direta ou indiretamente do enriquecimento de uma sociedade, é empregada no setor cultural, levando a um aumento de suas atividades.

Quando Renato Pacheco escreve um haicai no Espírito Santo, cria um poema da literatura capixaba. Os haicais japoneses são caracteres gráficos impressos em uma única linha vertical. Não há haicais como os nossos no Japão: esta palavra é uma transcrição, em português, de sua grafia, 俳句, que pode ainda ser haikai ou haiku. A métrica ocidental lhes concedeu 3 versos e a escansão 5-7-5. Se a análise levar em conta apenas o critério da origem da técnica, os haicais de Renato não pertencem a cultura alguma: não são japoneses, certamente, pois não foram escritos com ideogramas dispostos em uma só linha vertical.

No critério geográfico, se o autor nascer no Espírito Santo, como Rubem Braga, sua literatura é capixaba. Se a obra versar sobre um tema capixaba, como o Canaã, de Graça Aranha, ela faz parte da literatura capixaba.

Mesmo aos 75 anos Re-nato Pacheco possuía cabelos fartos e brancos em um corpo volumoso mas ágil. Não é mera coincidência que seu nome signifique re-nascido. Parecia querer reproduzir a estampa da imortal Moby Dick, antes um grande cachalote branco luminoso que no passado derrotou o mal da ignorância e da feiura, encarnado nos Ahabs da vida.

Esta baleia, matéria-prima de lendas, tal como Renato, perdeu as carnes na luta que venceu. Mas ambos cumpriram a maior missão de um ser, que é fazer-se literatura, tornar-se literatura. Manteve a memória da guerra na alma esculpida em seu esqueleto, que, visto de longe, parece com estrofes de versos ricamente melódicos e ritmados, tendo ao fundo belíssimas metáforas e imagens.

E, após seu passamento, seus ossos, tais qual o do agora Santo Anchieta, passaram a fazer milagres, pois registraram em qubits as batalhas enfrentadas pela descomunal baleia que um dia desejara apenas acompanhar o navio, embelezando a sua viagem com saltos e malabarismos poéticos. Mas quando, sob a forma de um leitor, o vento sul bate, tira deles uma canção ilusória, sedutora e pacífica capaz de curas quânticas tão absolutas quanto as de relíquias de santos.

Ao escritor tudo é permitido em nome da literatura. A abrangente obra de Renato Pacheco é o sonho de um escritor completo, pois envolve poemas, romance, história, contos, jornalismo, geografia, direito, crônica, crítica, memorialismo, ensaios, edição de livros, tradução, sociologia, antropologia, filologia, cultura popular, magistério, folclore e a generosidade de seus gestos pessoais, em que todos são bem recebidos, pois são inacreditavelmente fraternos, com os braços cheios de amor, fraternidade, esperança e perdão, como deve ser a literatura, como deve ser qualquer gesto real ou estético produzido por um escritor. A determinação e o brilho de seu caminho literário e humano fizeram com que Renato deixasse de ser mais um na multidão e o transubstanciaram em O Escritor. A marca de seus passos o segue.

   Praia de Itaparica, 23 de março de 2014

[Reprodução autorizada pelo autor.]

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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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