Era dia de grande festa na cidade. Dia 23 de maio, data histórica da chegada do donatário Vasco Fernandes Coutinho à Capitania do Espírito Santo.
Manhã de sol cristalino e, à sombra da alameda de palmeiras imperiais na praça da Bandeira, bem adiante da Igrejinha do Rosário, os moradores de Vila Velha se comprimiam em volta do palanque embandeirado para ouvir os discursos e assistir ao desfile dos militares e colegiais que participavam do ato cívico, com a presença das mais significativas autoridades e, ao final das comemorações, no verdejante cenário do Morro do Convento, transcorria animada conversa entre próceres à sombra das frondosas árvores que formavam pequeno bosque que a imprensa de Vitória apelidou de “morrinho”. Ali, em novo cenário era servida uma variedade de guloseimas da terra tais como, muchás, bolinhos de arroz, bolo de milho, tapiocas, café, caldo de cana, água de coco e refrescos de frutas da época; iguarias que estavam expostas sobre rústicas mesas montadas à sombra das árvores seculares. Pequenos grupos de moradores da cidade davam boas vindas aos visitantes com alegria e os convidavam para o repasto.
Por mera curiosidade, um dos forasteiros e seu amigo demonstraram vivo interesse em dialogar com alguém do lugar, desejo esse que os levou a se aproximar do pequeno grupo que estava adiante e…
— Com licença, rapazes, queiram desculpar-nos. Eu e meu amigo somos jornalistas acompanhantes dos membros da corte e aqui viemos para participar da solenidade que festeja o nascimento desta Província, e estávamos dizendo que ainda não tínhamos visto um lugar tão especial, de natureza francamente sedutora que está contribuindo demais para aumentar a nossa curiosidade, pois pouco sabemos a respeito desta região. Permitam-nos dizer que gostaríamos de conversar um pouco com os senhores que imaginamos serem daqui.
Do pequeno grupo, um jovem se destaca e diz:
— Com grande alegria nos colocamos às suas ordens, senhores.
— Aproxima-se dos visitantes, tira o chapéu e lhes estende a mão.
— Diga-nos, meu jovem, são os senhores naturais daqui?
— Sim, senhor, diz aquele que se destacou. Somos capixabas nascidos nesta vila onde começou o Estado do Espírito Santo.[ 1 ] Foi justamente ali, na Prainha, que ancorou a caravela Glória de senhor Vasco Fernandes Coutinho, no ano de 1535. Foi aqui, neste pedacinho do Espírito Santo, que nascemos e nos criamos sem nunca sair. Por isso somos capixabas, canelas verdes e bem brasileiros.
— Ora, pois, meus caros jovens, vocês estão dizendo que são capixabas. Mas, antes de chegarmos aqui, disseram-nos que hoje estaríamos visitando a cidade dos canelas verdes! Poderiam explicar-nos a razão desses dois adjetivos?
— Capixaba, explica o primeiro deles, é uma palavra de origem tupi cujo significado é, terra preparada para plantação, sítio, ou roça. É coisa que sempre existiu na nossa província desde a chegada dos portugueses, quando fizeram os primeiros cultivos de subsistência e é assim, até hoje, com as roças de mandioca, de milho, de cana, de bananas etc. E nós, somos descendentes dos primeiros colonizadores que aqui chegaram.
Desenho de Jair Santos, 2004. |
— Mas nenhum de vocês parece ser de origem latina como eram os primeiros portugueses que para cá vieram com Vasco Fernandes Coutinho!
— Pois olhem, caros amigos, podem os senhores ter certeza que nós, os capixabas somos bem brasileiros, somos latino-americanos porque nós somos descendentes deles e nascemos na América. Isso qualquer um pode ver na cor dos nossos olhos, na lisura dos nossos cabelos e na cor da nossa pele que misturou o branco de lá com o bronzeado das índias daqui.
— De fato, meu jovem, vocês compõem realmente a bonita mistura das raças dos dois continentes mas permitam-me perguntar indaga o segundo visitante, se existe alguma relação entre o que você está dizendo, com a alcunha “canela verde”. Por favor, diga-nos algo a respeito.
— O canela verde é o capixaba nascido em Vila Velha particularmente. Este cognome, atribuído aos vila-velhenses, tem origem numa remota história que meu amigo André da Maré Cheia vai contar.
— Pois não, disse André que levantou-se, pousou a pequena faca com que descascava laranja sobre a tosca mesa, pediu licença aos visitantes e, ajeitando a camisa na cintura iniciou pausadamente o seguinte comentário:
— Era comum os antigos habitantes do litoral brasileiro viverem da pesca e da caça. Os canelas verdes, como todos os colonizadores que se estabeleceram no litoral, tinham no mar a principal fonte de comida ficando a caça como alternativa alimentar. A caça era exercida na busca dos animais de pequeno porte como pacas, preás, tatus, lagartos e aves em geral. Para persegui-los nas matas litorâneas tinham que enfrentar marimbondos, abelhas, cobras, aranhas, formigas, mosquitos, besouros e, acima de tudo, grande variedade de espinhos. Para varar essa restinga fechada e perigosa, o homem foi obrigado a lançar mão de alguns meios de defesa que se tornaram comuns no seu dia-a-dia, tais como, levar um facão na cintura que servia para abrir a picada, uma vara resistente para bater o chão, quando o trecho da jornada era formado por capim, vegetação rasteira ou charco. Contra os espinhos dos arbustos protegiam-se usando um amarrado de folhas espessas ou pequenos feixes de ramagens nas pernas, além de um calçado qualquer. Por causa dessa proteção nas pernas, foram alcunhados de “canelas verdes”. Mas, essas folhas ou ramagens, usadas nas pernas, vêm de uma tradição indígena que os nossos avós, os primeiros mestiços, adotaram também.[ 2 ]
Desenho de Jair Santos, 2004. |
— Devo dizer, interrompe o amigo, que já ouvi outras histórias, tentando justificar esta alcunha, mas, sinceramente, sem o sentido lógico desta que acabamos de ouvir do André.
— Neste ponto houve uma pausa e breve troca de olhares, quando um dos visitantes sugeriu que a conversa prosseguisse com todos sentados. E tomaram por assento as raízes expostas de um majestoso ipê. Voltando-se para o primeiro canela-verde que preferiu continuar de pé, o cavalheiro da corte solicitou-lhe que contasse alguma coisa relacionada com o cotidiano de um cidadão desta linda e pequenina vila, no que foi prontamente atendido.[ 3 ]
— Permitam-me que fale de mim mesmo. Eu sou canela-verde, sou pescador desde menino, disse. O meu trabalho é o anzol, o remo e a rede. Olhem a minha mão que é um calo só, porque eu trabalho desde que o sol nasce até a hora que se esconde. Mas não é só isso não senhores. Os nossos ancestrais foram os primeiros canelas verdes que, desde 1558, ajudaram na construção do Convento de Nossa Senhora da Penha, lá no alto do outeiro, onde trabalharam muito com as pedras. Foi um serviço muito pesado, demorado e bastante difícil, porque todas as pedras foram levadas, uma por uma, para o alto da rocha íngreme. Uma fantástica realização dos dedicados seguidores de São Francisco de Assis, que nela perpetuaram suas vidas de penitência e de amor aos irmãos. Esta maravilha, que contemplamos hoje, foi começada por frei Pedro Palácios e tantos outros dedicados cenobitas que colocaram pedra sobre pedra na edificação dessa portentosa obra que se transformou em símbolo do nosso estado. Foi serviço de muitos anos que começou desde o tempo do segundo donatário, Vasco Fernandes Coutinho (filho), no século XVI. Até hoje é muito grande a devoção do povo por Nossa Senhora. Foi ela que me batizou e, por isso, eu sou forte e protegido por Ela que vive me guardando de tudo que é ruim. De nada eu tenho medo. Posso até sair por esse mar aberto sem fim e buscar o peixe onde ele estiver; e nunca volto sem ele. E mais, nós somos conhecidos também como os melhores atalaias do litoral do Brasil porque herdamos esse serviço de proteger nosso povo que vive lá dentro, na ilha de Vitória, nossa capital, a cidade mais linda que ajudamos a construir.
O amistoso bate-papo foi interrompido por grande alarido, acompanhado de palmas e vivas, que anunciavam o final do desfile dos colegiais ali na Praça da Bandeira, onde o Prefeito entregava a Chave da Cidade ao Representante do Imperador. Com esse gesto o Prefeito dava por encerrada a primeira parte da solenidade. Em seguida o Presidente da Câmara ofereceria um ágape aos distintos representantes da Corte devendo todos os presentes serem encaminhados para o Morrinho, que um dia os locais chamaram de “Bosque”, onde todos se juntariam aos jornalistas e convidados para participarem do repasto à base de comidas regionais regada com refrescos de frutas da época, à sombra das frondosas árvores e sob o frescor do vento nordeste que ali sopra diariamente.
Ao final do “comes e bebes” o sol poente começava esconder-se por trás da Pedra dos Olhos, muito pra lá de Maruípe, anunciando o encerramento das comemorações da cidade, desta vez de forma toda especial porque era o ano de 1823, quando, no dia 04 de fevereiro, por Decreto Imperial, D. Pedro I, elevara Vila Velha à categoria de cidade.
Era o momento das despedidas e os apertos de mão iam sendo acompanhados de palavras de agradecimento a todos os capixabas e de decididos elogios aos encantos da terra e à simpática acolhidas dos canelas verdes. Nesse instante, uma nuvem de tristeza parecia turvar o brilho do rápido convívio. Esse sentimento ficou evidente entre os locais, quando o sorriso franco lhes caiu da face e os emudeceu após o instante em que os visitantes acenaram pela derradeira vez ao embarcarem na lancha que os esperava no cais das Timbebas, na Angra da Prainha, para a viagem de retorno à capital.
Foi assim na vila primitiva que regrediu e se transformou em aldeia de pescadores, criadores e agricultores cujos frutos do esforço são vistos através de obras como a igrejinha do Rosário e o Convento da Penha. São construções que vararam séculos porque nas suas paredes a argamassa foi molhada com o suor dos habitantes da vila insipiente e cuja população se multiplicou na endogamia para que o povoado não desaparecesse. E assim viveu até alcançar o alvorecer do século XX para que, hoje, pudéssemos testemunhar o milagre dessa multiplicação herdada desde a cultura tribal dos seus ancestrais. Isso justifica porque, em pleno século XX, ainda encontramos remanescentes desses costumes entre os moradores mais antigos da Barra do Jucu e da Ponta da Fruta.
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NOTAS
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Jair Santos é arquiteto e professor aposentado, natural de Alegre, ES, autor dos livros Vila Velha, onde começou o Estado do Espírito Santo e A igrejinha do Rosário.