O “Zé Pereira”
Precedendo o Carnaval, semanas antes, puxados por animadas bandinhas, os “Zé Pereira” percorriam à noite as ruas da cidade acompanhados por pessoas fantasiadas de “sujo”, em sua maioria homens, pois as mulheres geralmente iam por fora dos cordões ou ficavam à janela, assistindo à passagem. De quando em vez ecoavam os gritos dos participantes em coro: “Zé Pereira!” E os tambores retumbavam forte: buum, buum, buum!!! “Zé Pereira!” Buum, buum, buum, bum, bum!!! Volta e meia se repetiam o grito e a batida dos tambores, isso sempre ao término das cantorias das marchinhas carnavalescas da época. Algumas pessoas se apresentavam com alegorias e carros alegóricos, juntando-se a esses blocos. O mais bem trabalhado dos carros alegóricos de que se tem notícia foi o do festeiro, hoje se diria carnavalesco, Lúcio Bacelar, que moldou uma bela, colorida e grande sereia que desfilou em patamar sobre rodas num desses “Zé Pereira”. A sua segunda e última aparição dessa alegoria deu-se dias depois, num domingo, durante o famoso banho a fantasia. As fantasias, de papel crepom colorido, tingiam a água cristalina do mar da praia da Sereia.
Os corsos
Levantamos uma pontinha do que seria o Carnaval em Vila Velha quando nos reportamos aos “Zé Pereira” e à ornamentação dos clubes dos Democráticos e Fenianos, feita em sigilo. O banho de mar a fantasia na praia da Sereia contava com a presença da alegoria da sereia em carro alegórico. Mas a animação do Carnaval ia além dos limites de Vila Velha, alcançando Vitória. Os clubes dos quais já falamos, com os seus foliões devidamente fantasiados, não se continham nos salões de festa à noite. Formavam blocos como o dos “Renegados”, do clube dos Democráticos, e, ao cair da tarde, subindo em carros enfeitados, tanto de carroceria como automóveis de passeio, dirigiam-se a Vitória um atrás do outro e lá ficavam circulando pelas ruas e em redor das praças, cantando animadamente, gesticulando em movimentos ritmados, de acordo com as marchinhas escolhidas, enquanto jogavam sobre a assistência confetes e serpentinas, não faltando os esguichos da gostosa, cheirosa e inofensiva lança-perfumes. A esse gesto de alegria e de cumprimento o povo, embaixo nas calçadas, à passagem do corso retribuía jogando confetes, atirando serpentinas e espargindo jatos de lança-perfumes. Essa reciprocidade animava e agitava o Carnaval de rua em Vitória.
Era um trança-trança para cá e para lá, voltas por ali, contornos da praça acolá, seguindo sempre um carro atrás de outro. A esse movimento chamava-se corso. Nos tríduos de Momo era comum dizer-se: “Amanhã vamos fazer um corso em Vitória.”
Desses corsos, um marcou época. Quem nos contou isso foi o nosso amigo Walter Aguiar, filho do inesquecível festeiro Miguelzinho Aguiar. Segundo ele, o clube dos Democráticos, com muito esmero, preparou um carro alegórico para marcar época no corso que se faria a Vitória como costume. Fizeram uma alegoria mais alta e mais atraente do que as dos anos anteriores. Com certeza a sua passagem por Vitória, apoteótica e arrebatadora, levantando o público em aplausos, marcaria época. Seria inolvidável. Só restava aos foliões chegar à passarela da glória. Vibrante e com muita alegria, o caminhão do Augusto Italiano, assim enfeitado, começou a percorrer a rua Luciano das Neves, ganhando a velha estrada de rodagem para Vitória, a única existente unindo o continente à ilha. De súbito, em Cobi, em frente ao viaduto da Estrada de Ferro da Leopoldina, o motorista breca o carro. Caminhão e alegoria não conseguiriam passar simultaneamente. O momento foi frustrante, e de alegres os nossos brincalhões passaram a tristes e de tristes a decepcionados. O idealizador da bela alegoria não levara em conta as medidas do viaduto, e para prosseguirem o jeito seria mexer na alegoria. Desmontaram-na e ela não foi mais a mesma. Quando chegaram a Vitória receberam os aplausos do público pelo animado bloco, sem que se tomasse conhecimento dos restos mortais da alegoria que se pretendia bela. Bela e arrebatadora!
Nos clubes
À noite, com o corso de volta a Vila Velha, o Carnaval continuaria nos salões dos clubes ornamentados nas respectivas cores. O interior desses salões estava cheio de serpentina e muito papel crepom que, em múltiplas formações sob o teto, desciam pelas paredes sem alcançar a altura mediana. Viam-se cartazes em profusão com desenhos alusivos ao Carnaval, como palhaços, arlequins, colombinas, máscaras coloridas, entre outros motivos, afixados nas paredes. Não faltavam as bolas de sopro coloridas e bem dispostas pelo salão, em especial nos Democráticos, com o festeiro Miguelzinho Aguiar. Tudo pronto. O assoalho do salão estava limpo, com parafina de vela raspada e espalhada em toda a sua extensão, suprindo-se assim a falta de cera, dando brilho e diminuindo o levantamento de poeira, no arrastar, levantar e bater os calçados dos foliões em movimento. Os próprios pés dos foliões encarregavam-se de espalhar a parafina com os seus movimentos mais inusitados de pulos e requebros e no arrastar das danças sobre o assoalho.
Tudo pronto, os bailes de Carnaval duravam três dias, indo até altas horas da madrugada. Os salões enchiam-se de serpentinas e confetes coloridos. A lança-perfume, em jatos direcionados reciprocamente em damas e cavalheiros, aromatizava o ambiente. Quando uma dama retribuía mais de uma vez ao jato de lança-perfume, entendia-se que ela estava aceitando a corte, e assim uniam-se animados pares que, de mãos dadas com outros, formavam correntes que depois se transformavam em rodas e giravam de um lado para outro com folguedos e cantorias. Essas rodas eram desfeitas e refeitas várias vezes e a noite toda era cheia dessa animação alegre e de muita cantoria. E viva o Carnaval!
Orquestras e carnavalescos ficavam em atividade até altas horas da madrugada, estendendo-se às vezes até as cinco da manhã. Quando havia uma só orquestra esta fazia a cada hora um intervalo de quinze minutos para descanso dos músicos. Como não havia microfone, o som dos instrumentos dependia da força de quem os tocava. Para os músicos o melhor dia era a terça-feira, pois nesse dia o baile terminava, impreterivelmente, à meia-noite. Em respeito à Quarta-feira de Cinzas, à meia-noite todos deixavam o salão e se recolhiam às suas casas, onde tiravam uma pestana para, às seis horas, mesmo com ressaca, se apresentarem na igreja, onde recebiam, na testa, após os rituais da missa, a cruz de cinzas.
[In SETÚBAL, José Anchieta, Ecos de Vila Velha, Vila Velha-ES: PMVV, 2001. Reprodução parcial autorizada pelo autor.]
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José Anchieta de Setúbal nasceu em Vila Velha-ES e se formou em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. Ex-prefeito e ex-vereador por Vila Velha, foi procurador substituto do Estado, sub-chefe da Casa Civil, coordenador da Defensoria Pública e secretário da Justiça. Foi membro do Conselho de Sentenças da Comarca da Capital e sócio-fundador do Rotary Club de Vila Velha.