Estrada de Ferro Vitória a Minas
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CAPÍTULO VIII
Missão cumprida em Colatina. Viagem incômoda. “Cala a boca Feróis!” Manta de suçuarana. Instalações. Aboletam-se as turmas. “Eia! vai mariquinha!” Boa impressão. Variante. Bugres famintos. Assustou-se o zabelê. Labuta intensíssima. Tarimba e serão. Bruxas endoidecidas. A jiquitiranabóia. A tagarelice do Carvão. Rio Guandu. Índios bravos. Curiosidade lusa. A cabocla intérprete. Canoa encalhada. O ataque. Saraivada de flechas. Grito selvático da Benedita. Alucinado de pavor. Festejam os Crenaques a fuga dos civilizados. Grupos de imprudentes. |
Sete meses são decorridos de nossa chegada a Colatina. Nesse lapso de tempo desempenhamos, com pontualidade, os encargos que nos couberam. O chefe amigo e justo estimulava o nosso ânimo, patenteando-nos sua atividade extraordinária. Nossa missão, em Colatina, está cumprida. Apresentamos-lhe nossos agradecimentos e despedidas e partimos para Porto Belo. Vamos instalar a Secção e aguardar o engenheiro Emílio Cunha.
De manhã seguem, em canoa, um popeiro e três remadores. Levam barracas, ferramentas e mantimentos. Entre quatro e cinco horas da tarde, calculam, alcançarão o destino. Depois do almoço estradamos para o mesmo ponto, acompanhando-nos um camarada. Lá devemos, também, estar antes da noite.
A vau cruzam nossas cavalgaduras o Rio de Santa Joana. Daí para diante um trilho serpenteia a margem do Rio Doce até pouco além de Catita, onde começa a galgar um monte cujo sopé morre, ao Norte, no rio, expondo a rocha aflorada, temporizada. Apesar da estiada então reinante, a derrota, nesse trecho, é muito incômoda porque a vereda, debaixo da mata cerrada, desenha uma linha sinuosa de forte aclive. Há ocasiões em que o cavaleiro tem que se defender contra as galhadas, os cipós, os ramos espinhentos e, também, agarrar-se à crina do animal para não escorregar na garupa, com a sela, até ao chão.
Vencemos os empecilhos, vingamos vinte e dois quilômetros e, antes do ocaso, transpomos o ribeirão de Porto Belo e achamo-nos à porta de uma cabana, confiada à guarda de um cão mofino que se embravece contra nós dando ladridos enfiados como se, depois de rastejá-la, houvesse levantado a caça. Tão renitente é seu acuamento que aparecem, na capoeira rala da banda do caudal, gaforinhas de negrinhos espantados que, cautelosos, se aproximam e ralham ao mastim furioso:
— Chega Feróis! Que é isso?! Cala a boca Feróis!
E Feroz de pêlo arrepiado, rosna, rosna colérico, rosna sem cessar de olhos maus, de cauda estirada, de dentolas à mostra, ameaçadoras, terríveis. Precavidos, os meninos recomendam-nos que não descavalguemos porquanto o Feroz nos estrinça e vão correndo chamar o pai. Também o nosso camarada nós adverte da imprudência de apear, e ressalta a ferocidade do animal, cuja prova está nos olhos carregados de sangue.
— Olá, meu patrão, vou amarrar o Feróis e vosmecê desapeie-se — e, dirigindo~se ao camarada: — pode soltar os animais.
Reconhecido, agradecemos a gentileza do groteiro amável e dizemos-lhe que esperamos uma canoa com bagagem completa, que não há de demorar em aproar ao porto, e por isso não lhe causaremos estorvo.
Para matar o tempo pomo-nos a conversar sobre cousas do Rio Doce, e o ribeirinho inculto, porém inteligente e curioso, forceja em falar na construção da estrada de ferro.
Já crepusculeja e principiamos a admitir a hipótese de viagem desfavorável da canoa.
Cricrilam os grilos na macega vizinha e fretinem as cigarras nas dicotomias dos arbustos. Atingimos a hora em que a luz solar se vai amortecendo e já lobrigamos o tremeluzir hesitante das estrelas longínquas. Começa em todo o vigor a esplêndida e colossal orquestra em que figuras multíplices cada qual mais se esmera por produzir o vozear próprio e modesto, como o dos dípteros, ou o volumoso, como as gargalhadas irreverentes do acauã ou os roncos do barbado vaidoso e blasonador e, da integração de tantas vibrações, nasce a harmonia terna e agradável. Em redor, a terra cariciada parece dormitar. Nessa primorosa festa da boca da noite, embevecemo-nos, só nos despertamos quando o hospedeiro previdente opina que a canoa deve ter encostado a algum barranco, onde está pernoitando, e que no dia seguinte chegará cedo.
Não mentindo à hospitalidade do matuto, o roceiro bondoso convida-nos para comer da janta do pobre. Aceitamos e ainda recordamo-nos do suculento guisado de feijão e da carne atravessada pelo espeto e tostada pelo braseiro. E como gabamos o assado vem a pergunta:
— Seu doutor sabe de que bicho é esse taco?
— Provavelmente de veado.
— Só a cor é que é a do veado, porque é manta de suçuarana. Assim saboreamos carne de onça, morta a bala, caçada, quando subia a ribanceira do rio, depois de haver devorado um cabrito da criação existente na ilha, que defronta com a choupana onde estávamos.
Madrugam os canoeiros e, diligentes, esfalfam-se em armar barracas, em enterrar forquilhas que suportarão um bordão em que serão dependuradas panelas para serem aquecidas ao fogaréu. O popeiro, afamado mestre-cuca e hábil pescador, cata pedrinhas e grãos movidos, que depreciam o feijão antes de o lançar para cozer na panela reforçada e volumosa, enquanto, em outra, se aferventa o charque sob sua vigilância.
Aquele magote de trabalhadores atirados não afrouxa a lufa-lufa. Quer ter, ainda naquele dia, o prazer de desempachar em derredor do abarracamento a terra de novo embrutecida, e foiça, pertinazmente, o relvão pompeado de arbustos copudos e de arre-diabos de folhas urticantes.
Depois a roçada prosseguirá, estender-se-á do rio margeando o ribeirão, subirá a lomba e alcançará a chã, situada ao sul da casa desabitada de Dr. Hermann Belo que será, quando consertada, nossa residência. Nessa planície construiremos um barracão de madeira com um só compartimento amplo, arejado e bem iluminado. Será a sede ou o escritório de Secção.
Nos dias subseqüentes, arrancham-se o encarregado dos abastecimentos e auxiliares que cuidam da pronta instalação do armazém. Vêm garimpeiros, operários, feitores. Situamo-los em lugares próprios, de boas condições higiênicas e nas proximidades do eixo da linha. Determinamos que lhes forneçam ferramentas e folhas de zinco transportadas em vapor e canoa e guardadas, provisoriamente, na cabana do tabaréu, que generosamente nos acolheu.
Improvisamos jiraus para serrar, e os golpeões impelidos por musculaturas rijas em vaivéns cadenciados traçam as toras e desdobram-nas em tábuas, que não se empilham porque, ainda amontoadas, são levadas para o local da construção do escritório. Aí pregadas ao barrotamento de madeira lavrada constituem o assoalho, e as travessas fixadas aos esteios servem de tapume como se fossem paredes de alvenaria.
A faina é rude. Os serviços variados. Chegam o administrador e os apontadores, que assumem imediatamente seus encargos, e outras turmas de trabalhadores, de carpinteiros e de pedreiros. Algumas munidas dos petrechos precisos para construir os seus tugúrios que, freqüentemente, são arremedos de quejemes miseráveis. Neles serão ajeitados os teréns e as tarimbas de colmo de ubá, que serão os leitos ásperos e ondeados desses audazes trabalhadores da Companhia. Apresentam-se, também, levas de jornaleiros. Abandonaram os feitores e desejam engajar-se com outros. A maioria dessa gente procede da construção do trecho da estrada, que está sendo concluído pelo engenheiro Emílio Cunha, que no-la recomenda. A todos acomodamos e distribuímos trabalho.
Ordenamos a abertura, com urgência, do trilho impropriamente chamado caminho de serviço, que deve acompanhar quase sempre serpejando o estaqueamento da locação e dele distanciando-se nunca menos de uma vintena de metros.
Breve, da Catita ao Rio Lajes sucedem-se, a cavaleiro do caudal, os acampamentos encravados nos claros de mata virgem ou de capoeirões frondosos. Depois das ave-marias, o repenicar dos cavaquinhos, o toque das harmônicas, a emissão de sopro nos búzios e as cantigas dolentes casam-se e misturam-se. São os precursores dos apitos das locomotivas, desabusadas, chiantes e barulhentas, que representarão a vitória desses brasileiros resignados, laboriosos e atrevidos, ocupantes das choças daquelas aldeotas efêmeras, minguadas de bem-estar.
As turmas que se aboletam na vizinhança do rio já estão providas do necessário para atacar os trabalhos. Devemos, todavia, assisti-las fornecendo-lhes notas para a execução de suas tarefas. Ninguém nos ajuda. Temos tudo que fazer. À noite calculamos a caderneta de cortes e aterros. Pela manhã orientamos a marcação da largura do leito, indicamos os pontos de mudança de nível, traçamos o eixo dos bueiros normal ou esconso à linha, assinalamos as referências de nivelamento, damos instruções ao administrador e reiteramos, ao apontador, o cumprimento exato de deveres e que acolha, sempre, com paciência, as reclamações dos trabalhadores.
Faz alguns dias que o serviço progride normalmente. O desconforto não abate o ânimo do assalariado — nordestino sóbrio, mineiro ou baiano de cacaio. Acostumados ao relento, retemperam-se nos cansaços dos trabalhos de construção e avançam ardorosos, resolutos, sonhando no término da tarefa, apenas iniciada.
O clima da região é ameno, nela não reina carneirada e, gozando saúde, mourejam despreocupados na escavação, no cavouco e em outros misteres. Vivem alegres! No desaterro abrem cachimbos e são cautelosos, porque temem a queda súbita de prismas de terra. Na remoção do entulho, guiam a récua que tiram as carroças, estimulam as azêmolas a andarem, assoviam, palmeiam e zunzunam. Se têm que deslocar pedras usam a cantiga da mariquinha:
Eia! vai mariquinha!! eia! vai mariquinha!! mariquinha vai! mariquinha vai! Eia! Vai mariquinha!!…
E assim alçapremam os blocos que, devagar, escorregam no solo, ao som rítmico da toada instituída pelo feitor, e chegam ao lugar desejado.
Descia o sol quando, montado em bonito mulo, chega o Dr. Emílio Cunha. Acompanha-o Antônio Martins, o Carvão, como era chamado.
O ilustre engenheiro, de estatura mediana e de vozeirão agradável, pergunta-nos, antes de descavalgar, se recebemos a carta em que nos participava sua vinda naquele dia. Recebemo-la, sim, e esperamo-lo para jantar. Vai saborear pitu da água doce, mais delicioso que lagosta do mar.
Apeia, abraça-nos alegremente, cumprimenta minha mulher, segura minha filha de apenas três meses, tenta despertá-la, brandamente, candonga e acaricia meu filho, e de imediato passa a dar-me a boa impressão que lhe causara a instalação das turmas na parte do trecho por ele percorrida e o progresso, que notou, do serviço já executado, em tão curto prazo.
Mostramos-lhe o quarto que lhe destinamos em nossa modesta vivenda e oferecemos-lhe hospedagem. Aceitou-a. Achou pitoresco o rústico aposento, mormente, porque tinha uma janela que olhava para o Rio Doce. Agradeceu-nos.
E, ainda, antes do jantar, depois de um banho tonificante na cascata do ribeirão de Porto Belo, quis conhecer a obra achavascada, quase concluída, do escritório da Secção. Durante a visita miudeamos-lhe as providências escolhidas para a urgente instauração de todos os trabalhos. Satisfeito, aprovou-as.
Perlongamos, em companhia do chefe e com o perfil nas mãos, todo o estaqueamento da locação da linha, inquietando-se o Dr. Emílio Cunha com o longo corte em rocha viva, depois da Catita, e com o vultoso volume de terra nas proximidades do Rio Lajes. Incumbiu-nos de reconhecer uma variante que, serpejando o curso do ribeirão da Catita, transpusesse alguma garganta permitindo colear a vertente do de Porto Belo.
Procedemos ao reconhecimento, à exploração, à topografia, ao projeto e ao orçamento da modificação e, comparando o custo desta com o da encosta gnáissica do rio, habilitamo-nos a concluir pela inconveniência desse novo traçado, já por motivos de ordem técnica, já pelos de ordem econômica. Comunicou o chefe o resultado de nossas diligências ao primeiro engenheiro que lhe aconselhou a retrilhar, alterando, a locação da primitiva linha para enfrear despesas.
Apenas começamos a relvar o trecho enladeirado e rochoso, lavado, na base, em toda a sua extensão pela corrente impetuosa e borbulhante do caudal, nos avisa o Dr. Emílio de sua próxima ida a Vitória. Novamente suportaremos sozinho o pesado da administração e, ainda, o da variada parte técnica.
Atada a cintura à ponta de uma corda, estendida no dorso do aclive da montanha e, amarrada a outra, a um tronco de murtinho, a custo logramos montar o trânsito e mantemo-nos dificilmente em equilíbrio, lendo, no círculo horizontal do aparelho e no vernier, sucessivas deflexões, à esquerda e, assim, vamos marcando e modificando o eixo da linha. Atento para o trabalho que executamos, na encosta escabrosa, surpreende-nos a aproximação de um camarada que surge, agarrando-se a arbustos mal enraizados, enocando seus ramos frágeis. É um positivo. Saúda-nos e entrega-nos um aviso do administrador que, lacônico, nos participa estar nossa morada cercada de bugres.
Safamo-nos, precipitadamente, da pirambeira, voamos em socorro do lar e, quando dele nos avizinhamos, encontramos com trabalhadores que nos informam de que são índios mansos. Não estão fazendo ameaças contra ninguém. São da maloca do Capitão Nazaré. Procuram a cabocla Benedita, a quem respeitam e obedecem. Não a acharam e estão à sua espera: querem comida.
No limiar de nossa vivenda deparamos com um quadro estranho aos costumes de civilizados, mas natural aos de aborígines amigos. O que presenciamos confirma os registros de antigos e modernos cronistas.
Seis ou oito bugres com seus curumins, sem-cerimônias penetraram a casa, devassaram-na, assenhorearam-se daquilo de que se agradaram, entraram por suas peças, exceto por aquela em que se refugiara, nela trancando-se, transida de medo, minha mulher com as crianças.
Após nossa chegada surdem os homens indígenas que, com as mulheres, num linguajar desconhecido, dolentemente, parece repetirem os mesmos pensamentos, ressaltados por abundante gesticulação. No meio da algaravia complicada despontam vocábulos de português estropiado: capitan, dineo, fome, fume… e, sem ênfase, esmorecidos, famintos, os pobres, quase semi-civilizados, tristes e vencidos, salmodiam.
Apresenta-se-nos, então, o canoeiro que os transportou da margem oposta do rio. Conta-nos a penúria de alimentação com que vivem eles na mata e o vício que têm, antes por necessidade que por malícia, de lançar mão de objetos alheios. Lastima-os e diz-nos:
— Não os deixarei aqui, vou levá-los, à tardinha, para o outro lado. Dei-lhes condução porque estão vestidos com seus molambos.
Abala-nos o que vemos e acabamos de ouvir. Solicitamos ao barqueiro o favor de os encaminhar ao armazém e autorizamos o encarregado a fornecer-lhes víveres. E o língua, guiando-os, retira-se com aquela farândula de brasileiros infelizes.
Foi um alívio. Acalmou-se minha mulher. A cozinheira, que havia arribado, voltou. Só o zabelê domesticado não mais retomou ao poleiro habitual. Assustou-se. Esvoaçou apavorado ao capão distante e, certo, mais longe estaria, em breve, gemendo nas moitas à procura de companheira.
Revisto o traçado da linha, em todo o trecho da secção do engenheiro Emílio Cunha, arrefecidas as reiteradas recomendações para restringir, ao mínimo, o custo da construção, montamos o escritório técnico, conforme a orientação do chefe. Dia a dia tudo se vai ordenando e ele, incansável, desembaraça-se galhardamente.
Delineamos e realizamos o arquivo de cadernetas, de plantas, de perfis, de correspondência, de ordens de serviço e de folhas de pagamento, organizadas por um único auxiliar expedito e inteligente.
A labuta é intensíssima. A fiscalização dos trabalhos incessante. Os projetos das obras de arte, aprovados pelo primeiro engenheiro, depois de entendimento com o Fiscal do Governo, são executados a capricho.
Os assalariados da empresa são os seus grandes colaboradores. Deles depende o êxito da obra.
E fato digno de registro: mourejam das seis da manhã às seis da tarde, bem-humorados, confiantes na Companhia que lhes paga os salários com atraso de três e quatro meses. Contam com o armazém que os provê de mantimento, com o médico que lhes receita e fornece-lhes remédios, com o administrador que lhes defere os pedidos justos, com o feitor que norteia o serviço para bom rendimento, com o apontador que marca, com precisão, as horas de trabalho e, enfim, com o engenheiro que os acolhe com benevolência.
Quando o sol de todo se arreda do horizonte, já fez o trabalhador sua refeição, terminada, quase sempre, na claridade escassa do crepúsculo e, pouco depois, acerca-se da tarimba, por ela se estira e dorme.
No escritório, porém, há o serão que, não sendo obrigatório é, entretanto, adotado por circunstâncias várias. Num deles afogam-nos plantas, perfis, cadernetas e objetos de desenho. A prancheta ligeiramente inclinada, atopetada de utensílios, é aclarada por um lampião colocado em aro de metal pendurado à esquerda em altura adequada.
Fora no céu, cintilam as estrelas multicores, passeiam os planetas iluminados. A lua não aparece. Está em fase minguante. No ocaso, muito longe, clarões rápidos ferem, de quando em quando, o firmamento.
O ar abafadiço e a temperatura elevada quebrantam-nos as energias. Sentimo-nos das modificações do ambiente. Reagimos, todavia, contra o estado de languidez, esforçamo-nos por não desperdiçar aquelas horas de labor.
Não tarda e agora adeja sobre nós uma bruxa, agora voejam duas, agora esvoaçam outras, e muitas outras, endoidecidas com a chama do belga, tocam na manga quente, caem no assoalho, nas folhas de desenho, alçam novamente o vôo, volteiam no salão, cruzam-no às tontas.
São elas as primeiras visitantes. Cedo vai chegando o acompanhamento que invade o recinto. Miríades de insetos movem-se desordenadamente. Legiões de coleópteros rodopiam, mexem-se por toda parte, mormente nas vizinhanças da lâmpada. E em meio daquela agitação louca, zumbem besouros de cores sombrias, e entra, veloz, pela janela, uma jiquitiranabóia de cabeça túrgida, asas vistosas com manchas oceladas, e pousa na parede de madeira depois de nos rentear.
A presença inesperada do homóptero causou ao Carvão desassossego. Com um salto de acrídio ele, que empunhava, ora uma vassoura para ajuntar os insetos espalhados pelo assoalho, ora uma bacia de flandres do lavatório barato, sustentando-a debaixo do foco luminoso para atrair e aprisionar o bicharedo, que voluteava infrene, mata, trucida a vassourada a inofensiva cobra do ar. E depois de tamanha façanha Antônio Martins julga-se vitorioso em haver pulverizado a tirambóia, a cobra de asas, que produz morte fulminante numa só picada.
O Dr. Emílio, que seroa como nós, quiçá também extenuado, observa, há muito, os enxames e provoca o Carvão a falar, espicaçando-lhe a tagarelice.
— Decerto já você presenciou a morte de alguém motivada por mordedura dessa fera terrível, desse animalejo maldito?
E o Carvão, orgulhoso pela honra da pergunta que lhe dirigiu o chefe, esclareceu o que sabia a respeito.
— Que tenha visto um vivente morrer da dentada dessa infeliz não vi, não senhor, mas ouvi a meus pais, a meus avós, a meus tios, a meus primos, a meus amigos, enfim, a toda gente de minha terra, onde nasci, lá em Minas, dizer que o cristão mordido por ela não escapava, que não havia benzedura ou beberagem que o livrasse da morte, porque o seu veneno era pior do que o da cascavel. O pobre morria antes de cegar.
Estava eloqüente o camarada de confiança da Secção, falava e gesticulava, e contraía as bochechas o que permitia luzir, de relance, os seus incisivos restaurados em ouro, quando se escutou, aproximando, tropel de cavalgaduras, que relinchavam na escuridão da noite, apenas quebrada pelo tremeluzir de pirilampos que vagueavam rente ao chão ou pelo relâmpago afastado.
O Carvão, à pressa, explicou a ocorrência e emite opinião:
— É aquela onça que imprime o rasto na trilha que acompanha o ribeirão. É pintada e perigosa. Quer pegar os animais de sela e eles, de velhacos, vêm homiziar-se ao redor das casas. Os bichos, hoje, estão alvoroçados por amor da noite quente. O tempo vai mudar.
Efetivamente acabávamos de perceber, Rio Doce acima, o coriscar dos raios e o ressoar, ainda distante, dos trovões.
O relógio marcava nove horas e meia e o chefe convida-nos a recolher e recomenda ao Carvão:
— Apague o lampião, feche o escritório — e dele se despede com um “até amanhã”.
Entristecido, separamo-nos de Dr. Emílio Cunha, o bom chefe, o excelente amigo, que até hoje ainda nos honra com a sua amizade fidalga. Talvez sejamos os últimos técnicos que sobrevivem às fadigas da construção da velha estrada de ferro, que penetrou no deserto verde do terrível Rio Doce e possibilitou o saneamento de seu vale e o seu êxito econômico.
Novamente deixamos a família em Porto da Esperança e rumamos para o Baixo Guandu. Aí estudamos e fixamos a tangente da travessia do rio. Levantamos um vasto plano cotado. Assinalamos ótimas fundações para a construção dos pilares e apresentamos minucioso relatório para facilitar a elaboração do projeto da ponte, ao escritório central, e a encomenda da parte metálica à Europa.
Implantamos, depois, o eixo da estrada na planura, que se origina nas bases dos outeiros, à direita do Rio Doce, e morre no valo cavado pelo caudal formando a cachoeira das Escadinhas. O último piquete da locação foi o primeiro que ali cravamos, faz mais de um ano, como ajudante do engenheiro Pedro Versiani.
De Barra do Manhuaçu para cima escasseiam os moradores. Rareiam os prédios onde possamos fixar a residência. Lembrou-se, por isso, a Companhia de empreitar a edificação das casas de turma com o Sr. Virgínio Fernandes, as quais seriam ocupadas pelos engenheiros residentes. Temos notícias de que a primeira, cuja construção foi concluída, é a dos Quatis. Para lá iremos até que a do lugar denominado Boa Vista, situada no meio do trecho, que vai ser por nós construído, esteja acabada.
Inteirando-se o Dr. Emílio Cunha de nosso próximo regresso a Porto da Esperança, e sabendo que em Mascarenhas estava arranchada a turma de locação dirigida pelo engenheiro austríaco Roberto von Krompholz, participou-nos a satisfação que teria em nos visitar e ao distinto técnico estrangeiro.
Em um sábado, dois dias após a nossa chegada a Porto da Esperança, tivemos o imenso prazer de estreitar o amigo e companheiro das lidas da empresa que nos empolgava.
E quando, à noite, cavaqueávamos saltitando de um tema para outro, ouvindo, toda a companhia ouvia, bem-humorada, o trocadilhar incessante de Dr. Emílio, e comprazia-se com a sua palavra, que puxa irresistível a dos outros, traz ele à baila uma visita aos selvagens que foram pressentidos, ao crepuscular, na margem oposta do rio. Convida-nos para visitá-los. Quer ver os índios bravos, os Crenaques, e avaliar de sua braveza.
— Pobres Crenaques — dizia. — Devem ser cordeiros como são os da maloca do Nazaré. Pedinchões e famintos como os outros, aureolados, porém, de fama atrevida. Amanhã daremos cabo da má reputação dos Crenaques. Todos vamos abraçá-los.
O anfitrião da casa, o Sr. João Buriche, houve por bem, a essa altura da palestra, esclarecer que no dia seguinte teria o máximo prazer em colocar à nossa disposição uma canoa grande, espaçosa e segura e que, por sorte, estava em Mascarenhas a Benedita, bugra mansa, que serviria de intérprete. Ele acompanhar-nos-ia, mas sentia-se obrigado a nos avisar que os Crenaques não eram de paz. Eram ao contrário ousados, valentes e bravíssimos e, por isso, devíamos ser muito precavidos quando nos acercássemos de seus quejemes, simples palhas amarradas com cipós em travessas apoiadas de encontro a troncos de árvores, e ter em vista a possibilidade de um ataque à traição, de uma emboscada, de uma tocaia bem organizada.
Do cavaco participava o Sr. Castro, português, empreiteiro, palrador, barulhento. Era dos mais empenhados em ver de perto os bárbaros, dos mais influídos em observá-los “para ter o que contar”, dos mais interessados em fitar as marrafas das caboclas. Ia presenteá-las com pentes, contas de vidro e espelhinhos. O bom lusitano moreno, alto, elegante, de olhos pretos e espesso bigode de pontas retorcidas, orgulhava-se de seu físico e, por certo, contava impressionar as índias sonhadoras e, também, saciar a vista curiosa nos corpos das Iracemas do Rio Doce.
Nove horas. Aparelhada a canoa, alastrada com sacos de caixas de fósforo, de bugigangas, de facas, de farinha de mandioca, de milho, de charque, parte de Porto da Esperança em direção oblíqua, rio abaixo, à margem esquerda, onde, ainda pela manhã daquele dia de solão, foram vistos os Crenaques escabreados. Cinco canoeiros conduziam o barco pejado e comprido, que acostou ao barranco. Ao todo, eram dezessete pessoas. Saltaram em terra quinze.
Na canoa ficamos com o auxiliar Pedro Zamprogno. Na ânsia de estarem com os silvícolas levaram, aos empurrões, a Benedita ao simulacro de quejemes onde só encontraram o brasido acinzentado, que fumegava fracamente, e lá a bugra se esfalfa em gemer, em gritar, em vozeirar protestando, anunciando que os civilizados, os brancos são de paz, são amigos dos bugres, trazem-lhes comida, presentes — farinha, milho, carne, facas, pentes, espelhos… e repete sempre na sua língua estranha: “são amigos, trazem presentes, são amigos, são amigos, não são inimigos, não são inimigos, não são inimigos dos Crenaques”… Tudo, porém, foi em vão. Nem um só da tribo apareceu. E os excursionistas desenganados, desapontados, voltaram à canoa e deliberaram ir gingando, rio acima, beirando a ribanceira.
Comentaram a minha prudência e insinuavam o descaso por não me haver interessado em espiar os vestígios deixados pelos silvícolas: tições fumeantes, galhos torcidos, ramos enocados de arbustos. Mangaram do auxiliar porque não se arredou da margem do rio. E enquanto chasqueiam, discutem e formulam hipóteses sobre a fuga dos índios, lá vai a igara vencendo a correnteza em direitura a Porto Final, para aí, na margem esquerda do rio, fazerem novas pesquisas na mata e reiterados convites aos selvagens para virem receber os regalos preciosos. Nas grimpas das árvores taralhavam as araras. E a Benedita não cessava de estribilhar: “os brancos são amigos, os brancos são amigos”…
A espaços ordenam que os canoeiros poitem a embarcação e, por momentos, todos escutamos. Da planura que se estende, além do barranco alto; nada ouvimos. Parece que os aborígines se embrenharam no matagal. Decerto não conseguiremos falar com eles. E conforme opina um dos tripulantes:
— Desconfiaram, e caboclo desconfiado é um perigo.
A montante, já entrevemos a orla da coroa que fronteia com Porto Final, término de nossa excursão e, por isso, a Benedita esgoela, ainda mais, a afirmação aos Crenaques de nossa amizade.
Agora, avizinhamos da praia. O popeiro aproa a canoa para ela e abica. De inopino chovem flechas que se entrecruzam nos ares, caem na água, seguem rio abaixo flutuando. A embarcação está encalhada. O bojo amoldou-se, ajustou-se à areia molhada. Os canoeiros atarantados com a gritaria, e de pavor causado pelo ataque dos selvagens, parece haverem ficado lesos do raciocínio. Absorve-os a defesa passiva. Correm à popa da canoa, atiram-se na água e, cosidos aos bordos, aterrados, ficam imóveis.
O ataque, de instante a instante, intensifica-se. As flechas coalham o rio e já estaríamos ensangüentados, e quiçá mortos, se os agressores se houvessem postado na ribanceira. Receavam, por certo, a nossa resistência e detrás das árvores afastadas: se escondiam e, porque a embarcação estava muito próxima da barranca, o campo de visão lhes era duplamente desfavorável.
Na canoa cresciam a confusão e a balbúrdia a ponto de muitos já quererem abandoná-la. Então, prognosticamos o sacrifício, a morte de todos pelas flechas dos índios que, a cavaleiro da ribanceira, acometeriam de perto e, ainda, por afogamento nas águas do caudal.
Pedimos-lhes, rogamos-lhes calma. Objetaram-nos. Atenderam-nos, em seguida, com relutância.
— Porventura alguém terá alguma arma de fogo?
— Tenho um revólver — respondeu-nos o Sr. Buriche.
— Atire para o ar.
De pronto cessou o ataque após o estampido. Desentorpecemos os canoeiros.
— Desencalhem a canoa. A custo obedeceram.
— Depressa remem, mupiquem. E os senhores deitem-se no fundo da embarcação.
E esta, impelida pela força tresdobrada dos remadores, breve, estava a uns trinta metros da praia.
Encorajam-se os bugres com a nossa retirada e de lugares mais chegados à beirada lançam uma saraivada de setas, embora se conservem ainda ocultos na mata cerrada. Flechas há que cravam as pontas na parte externa da canoa, após descreverem parábolas admiráveis.
No meio da acometida enérgica, que nos espanta, ouvimos um grito estridente, selvático, da Benedita, que, recostada no côncavo da proa, havia sido alvejada. Alucinado de pavor o Sr. Castro ergue-se e corre de uma extremidade à outra da igara, impreca a ocasião em que resolveu acompanhar-nos — “maldita excursão, bárbaros, desalmados, assassinos, bandidos” …Anda por cima dos que estavam estirados, ignorando-os, contundindo-os. Ameaçamos atirá-lo na água e, resoluto, convidamo-lo a novamente aquietar-se. O protesto unânime dos que foram pisoteados e o apoio que nos deram trazem-lhe a razão. O homem, então, encova-se, encolhe-se no fundo da embarcação e roga que alguém se espichasse sobre ele servindo de couraça contra a penetração das flechas.
Continuamos a incitar os remadores à tarefa louvável de nos arredarem do alcance das armas gentias, o que conseguiram, sem tardança, alegres e envaidecidos. Agora, todos salvos se peguinhavam, ressaltando cada qual o temor dos outros. Por fim renderam graças a Nossa Senhora.
Urgia pensar a Benedita, que arquejava na proa. A flecha, que a atingira, mantinha-se em posição oblíqua. Parecia-nos haver-lhe penetrado o abdome ou um dos membros inferiores. Com o Sr. Buriche sungamos-lhe a saia encarnada, retiramos a seta cravada na canoa, examinamos-lhe o corpo e apenas na coxa um levíssimo arranhão em que o sangue não marejava.
Dissemos-lhe que não estava ferida e a bugra, de chofre, assenta-se, radia dos olhos, a princípio, fulgores de alegria por estar incólume e, depois, de ódio feroz contra a tribo inimiga à qual jura vingança tremenda sua e dos de sua cabilda.
Embicamos para Porto Final. Aí chegados, minutos depois, fregueses do Sr. Viana, de carabina Winchester a tiracolo, e instigados pela Benedita, querem desforrar a dupla afronta que nos fizeram os índios — não aceitarem os presentes e investirem contra nós. Deu-nos a todos canseira para convencer aos nossos improvisados vingadores de que jamais dariam os engenheiros da estrada ordem para matar os bugres e que de forma alguma nisso consentiriam.
Na praia, na margem esquerda, onde esteve encalhada a canoa, festejam os Crenaques a retirada, a fuga dos civilizados. Organizam uma grande roda sarandeiam e bamboleiam, cantam e dançam.
O Sr. Castro, já refeito do medo, que conturbou todos, com uma luneta emprestada pelo Sr. Viana, seu patrício, contenta-se com observar de longe os indígenas sem tangas.
E, depois, amesquinhados, retomamos a Porto da Esperança. De vez em quando o Dr. Emílio ensaia uma piada que não polariza as atenções dos excursionistas. O engenheiro Roberto von Krompholz e seus auxiliares vão preferir, decerto em horas vagas, passear no Rio Doce a visitar os Crenaques. O Sr. Castro está murcho.
Sentimos todos que a parca nos rodeara. Um pouco mais de ousadia dos silvícolas, uma diminuição momentânea do instinto de conservação de suas vidas e teríamos sido trucidados. Nunca o uso de uma arma de cano curto protegeu, tão eficientemente, sem destroçar nem ensanguinhar, um grupo de imprudentes contra um inimigo bárbaro, assanhado, enraivecido.
[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]
Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.