Estrada de Ferro Vitória a Minas
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CAPÍTULO IV
Agitação matinal. Despedidas. A cavalo, rumo ao Rio Doce. Moças ítalo-brasileiras. Paisagens da viagem. Cafezais. Cães ameaçadores. Matrona enraivecida. A moeda tudo aplaina. Colchão de palha de milho. O Rio Baunilha. Rio Doce! “Patrão, como ele é bonito!” Recepção cordial. Viagem em canoa. A professora de Colatina. Canto e peleja dos canoeiros. Monotonia. “A criança quebra”, diz o engenheiro austríaco. Porto da Esperança. Família Buriche. Porto Final. Família Viana. Um mito, as maleitas do Rio Doce? Compra do Queimado, suas qualidades. Assistência religiosa. Dom Fernando de Souza Monteiro. |
Cantam, impacientes, os galos nos poleiros. Aparecem os primeiros albores da manhã. A locomotiva apita longamente e ouvem-se cinco badaladas do sino da plataforma da estação. Na ferraria, lá para a banda do rio, defrontando com a máquina, já com a pressão alta, o ajudante de ferreiro de musculatura rija percute o triângulo de vergalhão de aço, que tilinta no crepúsculo da madrugada.
Renasce a agitação cotidiana. Surge o movimento que a estrada de ferro sustenta. A tropa para transportar mercadorias está sendo arreada. Dentro em pouco, para puxarem por uma zorra serão os bois jungidos às cangas guiados pelos carreios, e os burros estarão atrelados entre os varais das carroças.
Acende-se o lampião do escritório da construção. É o sinal de estar a postos o chefe como os seus auxiliares.
É o momento de despedidas. Com muitos votos de feliz viagem de nossos generosos hospedeiros e gratidão sincera de nossa parte separamo-nos daquela gente fidalga a quem dedicamos, daí para diante, grande amizade.
O Coronel, também, compareceu ao nosso bota-fora. Patenteando estima, demonstrando carinho, fez-nos as últimas recomendações e consultando o relógio anunciou, depois de abraçar-nos já montados a cavalo: — Perdeu o trem em Porto Velho mas hoje lavrou um tento. São seis horas. Muito bem.
— E diz-nos o Dr. Bosísio — deixa-nos saudades. — Espero tê-lo como meu ajudante daqui a três ou quatro meses, quando voltar da exploração. Vou falar ao Esquerdo. O senhor com família não pode permanecer em turmas de exploração e locação. Seu lugar é na construção.
Agradecemos-lhe sensibilizado, demos de rédea e partimos.
Meia hora depois, em ordem de marcha, seguia o camarada avante conduzindo o burro cargueiro que levava a bagagem, minha mulher, que assentava pela primeira vez em um silhão, acompanhava-o e nós carregávamos o menino a tiracolo.
Perlongávamos a vereda que serpenteava entre cafezais cultivados nos lotes coloniais. Bonitas moças ítalo-brasileiras, naquela hora matinal, entretinham-se em quefazeres domésticos ou, resolutas, de enxada capinavam despachadamente.
A nossa passagem olhavam-nos com simpatia e risonhas, vislumbravam, talvez, com malícia, a nossa desajeitada apresentação.
E, de quando em quando, um fato despertava nossa atenção, ora eram tucanos e araçaris, distantes, que devoravam mamões e frutos de jaracatiá, ora emitindo gorjeios dobrados, bandos de japus afastavam-se, celeremente, para as grimpas das árvores dos aceiros.
Deparávamos, aqui, vasto e magnificente panorama que nos arrebatava e, adiante, surgia, de uma curva do trilho, uma tropa com a madrinha chocalhando cincerros presos ao peitoral e isso nos preocupava, porque devíamos desempecer o caminho. Era nesses momentos de precaução que avaliávamos o cuidado, a prudência do camarada. Apeava, rápido, retirava o seu animal e o burro cargueiro da senda e acudia à cavaleira inexperiente, segurando a brida e ajeitando espaço para a caravana prosseguir.
E assim íamos dominando as dificuldades e os imprevistos e vencendo, galhardamente, a caminhada.
O sol aquece-nos e eleva a temperatura. A azêmola sua e, quando atravessamos um regato, forceja por beber; o camarada deixou-a matar a sede e ele, que pouco fala, despertou-se e, apontando córrego acima, disse-nos:
— Aqueles bichos que estão voando, querendo subir na correnteza, são lavadeiras. São muito limpas, gastam horas lavando as patas.
Rimos da inesperada observação. Estamos na hora de interromper a derrota. Felizmente já lobrigamos as casas de Demétrio Ribeiro que, pouco a pouco, se vão distinguindo, tomam vulto e aparecem, por fim, na plenitude de suas formas.
Chegamos a um arremedo de hotel. Vamos almoçar e sestear. Depois da sesta seguimos viagem. Mudam as paisagens mas não se altera a lavoura das colônias. Sucedem-se os talhões de cafezais de várias idades. Os antigos são de menor produção, que vai sempre diminuindo. Há os que produzem bem e os novos que ainda não são frutíferos. Vicejam nas quebradas e nos araxás das roças, laranjeiras, limoeiros e mamoeiros de mistura com os cafeeiros e nas baixadas, bananeiras, taiobais e pequenos canaviais. Não é ocasião do viço dos milharais e dos arrozais, entretanto, há muita terra desmaninhada à espera de chuva para receber as sementes dessas gramíneas, do feijão, do guando e da fava. Da precipitação dela, também, depende a floração da rubiácea.
Não há indícios de mudança do tempo, que se tem conservado seco. A quadra ainda é de roçados de capoeiras e de queimas de derribadas feitas em mata virgem. E, por isso, a gente da gleba, mulheres e homens, que deparamos levando aos ombros enxadas e foices, trabalhavam em capinar e desbastar o mato fino.
O sol, mais e mais, descaía e pensamos em nos aboletar. O camarada, porém, sugere-nos que a um quarto de légua adiante a pousada é a melhor daquelas paragens, que o caminho a percorrer é bom e que no dia imediato chegaremos mais cedo a Baunilha e, “seu doutor — a gente não vai gastar meia hora e convém fazer o sacrifício”. Concordamos.
— o de casa! O de casa! — grita o camarada.
Cães de pêlos eriçados ladram e avançam tentando estracinhar cavalgaduras e cavaleiros. O tropeiro tranqüiliza-nos:
— Não tenham medo, segurem às selas que os burros podem espantar-se.
A tempo assoma à varanda uma senhora de cabelos grisalhos, reprime a canzoada, ralha aos rafeiros em português deturpado e com pronúncia italiana. Afastadas as ameaças caninas diz-nos a matrona, depois de haver conversado com ela o nosso guia, a meia voz:
— Desmontem. Entrem. Quarto não há. Podem ficar.
Não ficamos sabendo se a recepção foi boa. Sentimos, todavia, que não houve expansão à brasileira. A dona não nos desfeiteou e por amor de nós enxotou os cachorros. Não conhecíamos o tratamento que costumam dispensar aos viajantes os colonos daquela região e dessa ignorância provinha a perplexidade de discernir a situação em que nos achávamos.
O camarada desarreava os animais sem preocupações. A matrona deixou-nos na varanda e sumiu-se no interior da casa.
Ele, como era de esperar, achou de maior acerto cuidar dos muares, reservando-nos para depois. Deles tratava escovando-os, raspando-os, caprichosamente. Percebemos que ia demorar o término dos cuidados pelos animais. Chamamo-lo e pedimos-lhe que fosse à procura da dona da casa e lhe dissesse que, por favor, viesse falar conosco.
Estando ela diante de nós, fizemos-lhe conhecer a necessidade que tínhamos de banhos, de jantar e da indicação do quarto em que ficaríamos. Os olhos da matrona fuzilaram de raiva e, prontamente, declarou-nos:
— Não há banho, nem jantar e o lugar é onde estão. E desapareceu.
O imprevisto aterrou-nos.
O camarada, porém, quando formulamos a hipótese de procurarmos outra pousada além, convenceu-nos de que foi a sua imprevidência que motivou o destempero. De início não lhe ocorreu comunicar à senhora que pagaríamos todas as despesas, inclusive o pernoite.
— Há muitos italianos — esclareceu-nos -que não têm ainda os costumes dos brasileiros. Não são hospitaleiros. Cobram café, almoço, jantar, dormida, tudo, enfim. Não se declarando, antes, que se indenizam os gastos, acontece, às vezes, isto. Não sabem conversar. Não se poliram ainda. As mulheres, principalmente, são nervosas. Praguejam de todos. Discutem negócios, preços, quantias. Intervêm na direção do lar e os maridos dão-lhes satisfações, temem-nas, obedecem-lhes. Vou dar jeito na má-criação da mulher e o seu doutor, com a patroa, vai acabar gostando dela. Faça favor, dê-me dez mil-réis.
Cruzando as sombras dos muares amarrados às estacas e espalhando-se por todo o terreiro cacarejavam as galinhas, quando a suposta megera aparece à varanda, bem próxima de nós, e amilha as aves. O nosso guia não perde a ocasião, rápido, pega uma bonita poedeira e, desembaraçado, entrega-lha, recomendando-lhe que fizesse o jantar e acrescenta:
— Aqui está uma nota de dez mil-réis para todas as despesas. Se for pouco o patrão dará mais. E faça o jantar depressa que estão com fome.
— Esta galinha é velha, custa muito cozinhá-la. Apanhe aquela franga que estará cozida em uma hora — redargúi a mulher, e encarando-nos risonha: — Vou buscar o banho para o menino e, depois, para os outros. O quarto é grande, minha filha vai arrumá-lo, entrem para a sala.
E falando ao camarada:
— Venha receber o milho, a ração para os animais. Quantos burros são? Quantos litros quer?
Desapareceram as dificuldades. A mulher insociável transformou-se em criatura civilizada. A visonha não impressiona mais a ninguém. É prazenteira, afável e, sobretudo, religiosa.
Ouvimo-la ordenar:
— Rezem.
É hora do toque das ave-marias. O marido e os filhos já estavam em casa. Haviam chegado do trabalho e todos contritos rezaram.
O camarada tinha razão. Não era gente má.
Os nossos hospedeiros madrugam e todos começam a lida. A família inteira agita-se. Compete-lhe executar o trabalho. A matrona dirige efetivamente aquela colméia e, por isso, averigua se todos cumprem as pequenas e variadas obrigações que lhes são destinadas: a ordenha das vacas, o recolhimento do fubá do moinho, a debulha do milho para as aves e outros animais e, ela própria, coze o leite, côa o café, faz a polenta e distribui o desjejum àqueles que vão arrotear a gleba.
Desempenhada essa tarefa cotidiana vem indagar de nós se passamos bem a noite, se já queremos café, se almoçamos e a que horas partimos.
— Prosseguiremos a viagem após o café que tomaremos agora. Mostramo-nos agradecido por suas atenções. Elogiamos o colchão de palha de milho que nos proporcionou um repouso salutar, restaurador de nossas energias e, também, o excelente jantar da véspera.
O camarada participa-nos, enfim, que os animais estão aparelhados. Aproxima-se o momento da partida. Dirigimo-nos à dona da casa e pedimos-lhe o importe das despesas.
— Catorze mil-réis — disse-nos — mas já recebi dez. Demos-lhe uma cédula de dez e recusamos o troco. Ficou satisfeitíssima.
Despedimo-nos amigavelmente.
Já estamos almoçando no pretenso hotel do lugarejo, que nos parece saudável e é muito pitoresco. O Rio Baunilha ondeava entre bananeiras e cafeeiros. Era grande a animação das pessoas que víamos por amor à construção da estrada de ferro.
Depois da refeição, por haver o guia nos cientificado de que a distância dali a Porto Alegre, fazenda do Senhor Virgínio Femandes, não excedia a dez quilômetros e que o caminho sombreado cobrejava por entre mata virgem acompanhando o rio, deliberamos perlongá-lo sem esperar que o dia declinasse muito.
Não conhecíamos o Rio Doce e queríamos, sem demora, extasiar-nos perante suas belezas descritas, enaltecidas pela Senhora Calmon com tamanho enlevo e entusiasmo.
Em certo trecho do caminho, já perto do afamado caudal, o camarada desperta nossa atenção mostrando árvores de troncos colossais.
— Daqui tiram canoas de dimensões enormes que competem, em capacidade, com as pranchas de Regência.
— “Também este”, pensamos, “é propagandista exagerado do Nilo Brasiliense”; e o homem calado, sisudo, tornou-se loquaz, falava das lindezas do rio, dos sítios inigualáveis de suas margens e da abundância de peixe e caça. Tinha saudades de Linhares, de onde era natural. Já havia prevenido o Coronel de que iria passar o Natal em sua terra, em companhia dos seus.
— Ser empregado de estrada de ferro é muito bom, mas a gente sabe que amanhece e não tem certeza se anoitece com vida. Garimpeiro mata, sem dizer por que dá cabo do canastro do outro. O camarada de confiança, então, é uma desgraça, porque tem que defender o patrão, não conhece o inimigo e nem sabe onde ele está. Às vezes se esconde na tocaia como tapuru na melancia mas, também, anda ao sol quente como lagarto e, quando menos se espera, zás! E lá vai o pobre cristão para o outro mundo!
— Rio Doce! Olhe, meu amo, o rio! Aquela mata verde-escura está no outro lado, na banda do Norte. Aqui este campo, é o de Santo Antônio. O sobrado da fazenda é aquele lá adiante, na beirada do rio. E, agora, para chegar a Porto Alegre, é só caminhar mais um pouco. Rio Doce! Patrão, como ele é bonito!
Já conhecíamos o Sr. Virgínio Fernandes e com ele acamaradamo-nos, facilmente, porque sua esposa era nossa terrantesa e o Sr. Vicente Lopes, seu irmão, comerciante em São Mateus, muito nos distinguia.
Depois de descansarmos e fazermos um lanche apetitoso, visitamos as dependências da fazenda em companhia de seu proprietário que, gentilmente, nos explicou trabalhos de cultivação e de pecuária. Levou-nos ao barranco do rio e explanou sobre a sua navegabilidade, salientando os seus estorvos por causa dos bancos de areia, dos canais caprichosos e mutáveis e dos reveses perigosos; indicou os tipos de embarcações usados, pequenos navios e canoas; e, finalmente, referiu-se aos riscos da navegação, quer nas secas quer nas enchentes.
Delineou a nossa viagem para o dia seguinte em canoa confortável e segura. Seria armado um toldo e três canoeiros morigerados, de confiança, levar-nos-iam a Colatina, onde pernoitaríamos. Daí, após o almoço, prosseguiríamos até à Catita e no terceiro dia chegaríamos a Porto da Esperança. O primeiro pernoite seria em casa da professora pública e o segundo na turma do chefe de locação da estrada de ferro.
Sentimos imensa satisfação como hóspede de tão amável família. Ao jantar cumulou-nos de delicadezas que muito nos envaideceram. A naturalidade, com que nos obsequiava, encantou-nos. Regalamo-nos com os guisados à mateense e tivemos a alma regalada.
Era um lar respeitável. Da mesa participavam o casal, os filhos e a professora. Essa gente civilizada vivia distante de centros culturais, procurava, por isso, bastar-se a si própria e cuidava, diligentemente, da prole ministrando-lhe a instrução primária.
A independência absoluta é, porém, irrealizável e certa vez foi o Sr. Virgínio vítima de um desastre que lhe causou fratura duma perna. Não perdeu tempo. Em canoa chegou a Linhares e de São Mateus, viajando quinze léguas, a cavalo, da acidentada estrada da linha, veio socorrê-lo o Dr. Jones dos Santos Neves. Esse fato ele no-lo recordou para salientar que naquele seu insulamento o que o preocupava era o não poder dar assistência clínica à família em casos de urgência. Não entrava, por certo, em suas reflexões, a morte de uma de suas filhas, por afogamento no Rio Doce como aconteceu cerca de um ano depois.
Só saímos de Porto Alegre depois de meio-dia. A derrota seria longa e o percurso diário seria, sempre, começado após o almoço, segundo o programa de viagem organizado pelo Sr. Virgínio, que na hora das despedidas manifestou o desejo de empreitar algum serviço com a Companhia. Em ocasião oportuna, quando estivéssemos na construção. ele procurar-nos-ia para o favorecermos com o que estivesse em nossa alçada.
Prometemos-lhe, sinceramente, ajudá-lo a obter sua pretensão. Os canoeiros eram esforçados. Diligenciavam por fazer a canoa subir o rio. Empurravam-na com varas contra a corrente ou remavam conforme a profundidade das águas. E assim iam vencendo, galhardamente, e distraindo-se cantavam suas trovas, seus queixumes e suas saudades.
O popeiro orientava, com perícia, a embarcação. Fazia que ela percorresse arcos de círculos e de elipse, que zigue-zagueasse e traçasse, também, retas e atalhos.
— De Colatina para cima vai melhorar — dizia ele —, a gente não tem que procurar canal porque dá passagem em qualquer lugar.
O sol ia baixando e a canseira dos remadores continuava quando avistamos Colatina. Aproamos ao porto da escola. Já crepusculava.
A professora aparece, investiga que passageiros são esses de consideração que viajam em canoa de toldo. Os canoeiros inteiram-na de nossa identidade. E antes de lhe apresentarmos nossas credenciais ela ordena-lhes que levem nossa bagagem para sua casa.
Era assim que brilhava a bondade de Dona Andrelina Pereira. Jamais nos esquecemos desse rasgo de generosidade da inesquecível educadora.
No dia imediato a senhora prodigalizou-nos deliciosa refeição e antes das doze horas embarcamo-nos na canoa que, desencostada do barranco, foi impelida pelos possantes remadores, ao arrepio das águas, enquanto os adeuses, as reiterações dos votos de boa viagem eram manifestados, concretizados pelos acenos do lenço da professora, cujas gentilezas nos confundiram, nos embaraçaram e ainda nos continuavam enleando naquele momento.
E a medíocre embarcação bandeava, oscilava sem ritmo e em seus avanços intermitentes, causados pelos canoeiros que furavam o rio com os remos, que espadanavam a água; havia reflexos de luz que, por vezes, se irisava. E, então, reparamos que o descompasso dos balanços contrastava com a entoação das cantigas dos tripulantes.
A peleja daqueles três homens durante horas seguidas, contrapondo o pesado madeiro mal acepilhado e de torneio imperfeito à correnteza do rio, despertou-nos reflexões na grandeza da pátria, na resignação do povo e na necessidade inadiável de uma rede ferroviária cobrindo o país em todas as direções. Não era possível, pensávamos, que se retardasse a construção da estrada de ferro. Urgia que ela penetrasse em Minas Gerais e se estendesse até às minas de ferro e se ligasse à Central do Brasil. A navegação do Rio Doce era quimera. Só a estrada de ferro solucionaria o problema de transporte. Só ela era capaz de lograr a conquista para a civilização da vasta região ainda habitada pelos indígenas.
E, agora, compreendíamos os entusiasmos da Senhora Alexandre Calmon e os seus apelos ao marido para colaborar na construção da obra indispensável. Avaliávamos as preocupações do Sr. Virgínio Fernandes em não poder, prontamente, dar socorro clínico à família.
Da viagem confortável que nos foi tão gentilmente proporcionada estávamos farto. As belezas do rio que, na véspera, nos abalaram, dissiparam-se como se abacina o dia banhado por intensa luz, quando o atinge a borrasca. Dentro do pequeno espaço confinado com o toldo considerávamo-nos enclausurado e a nossa própria alma parecia haver perdido a liberdade. O rio e suas margens, as matas sarapintadas, os cerros próximos ou afastados, os pássaros fugindo silenciosos ou cantando e outros animais encontradiços, tudo se monotonizara. Só um fato detinha nossa simpatia: a peleja dos canoeiros cujo suor do trabalho estafante lhes transudava das faces afogueadas.
Desejávamos chegar. Comprimia-nos um misto de tédio e de fadiga e só aliviamo-nos quando acabamos de transpor o estirão do rio, que defronta com as matas do Santa Joana, por ter o popeiro anunciado que já estávamos no campo da Catita.
Breve aproou a canoa para terra e receberam-nos três personagens de maneiras distintas. Uma delas, muito elegante e quase loura, diz-nos em fala estrangeirada que havia tido, vaga notícia de nossa vinda.
— Saltem, não passarão bem a noite, mas lhes ofereceremos o que temos. É turma de campo, de locação. Somos judeus errantes. E estendendo-nos a mão: Roberto von Krompholz.
Correspondemos-lhe a apresentação e ao segundo convite para desembarcar rogamos-lhe, por favor, tomar o menino. De imediato, a imponente figura do Dr. Roberto contrafaz-se e ele grita pelo auxiliar:
— Bittencourt! Você tem jeito, pega! Eu não pego, porque a criança quebra!
Essa passagem causou hilaridade e acabou com as prováveis cerimônias que iríamos ter.
Antes do meio-dia e depois de haver o Dr. Roberto com os auxiliares nos crivado de atenções despedimo-nos daquele grupo seleto de pessoas obsequiadoras, que tanto nos penhorou, e a canoa desabalroada sobe, triunfando de maior correnteza do que na véspera, o rio, que corre por leito de inclinação crescente.
E encafurnado no toldo, suportando, resignado, calor que não se mitiga porque não havia, sequer, o refrigério de tênue aragem, íamos esperançado de cedo alcançar o desejado destino. E, talvez por isto não nos sentíamos tão enfadado como no dia anterior.
A embarcação renteando o barranco permite-nos ouvir o cascatear das águas do ribeirão dos Queixadas. Defronte, na outra margem, deságua o Rio Mutum.
Enfim enxergamos o Porto da Esperança e, para ele, abicaram a canoa os tripulantes.
E para maior satisfação nossa quem primeiro nos apareceu foi o meu cunhado Mileto de Carvalho. A surpresa pasmou-o. Abraços. Emoção de minha mulher. Lágrimas de alegria, Carícias do irmão ao sobrinho.
Rapidamente lhe íamos dizendo que contávamos com o seu auxílio para nos obter uma pensão em Mascarenhas, quando se aproximam o Sr. João Buriche e excelentíssima esposa, aos quais fomos apresentados, e que nos declararam de modo peremptório, que nos considerássemos seus hóspedes.
— Vamos para casa. E não para outra porque não consentiremos. A nossa preocupação máxima, quando saímos do Rio, era a dúvida em que estávamos de encontrar hotel ou casa em Mascarenhas para deixar a família com a possível assistência de meu cunhado, e a solução acabava de nos ser oferecida de modo singular e inesperado. Nunca deixamos de patentear a nossa ilimitada gratidão à família Buriche.
O nosso maior problema doméstico, naquela emergência, estava resolvido.
O araçari em que estava edificada a casa de residência do Sr. Buriche estende-se rio acima, lindando com a margem direita, até cerca de vinte quilômetros.
O arraial de Mascarenhas carecia de importância. Encravado, perdido num recanto ia, pouco a pouco, progredindo por distar do Porto da Esperança apenas poucas centenas de metros, e, principalmente, porque nele pernoitavam as tropas da fazenda dos Milagres e de muitas outras. Não longe desse lugarejo, demorava a sede da propriedade agrícola do Coronel Mascarenhas.
Havia naquela época ainda outro empório comercial, além do do Sr. Buriche: era o do Sr. Viana, em Porto Final, término da navegação fluvial por navios gaiolas. Para aqui, também, vinham bater as tropas.
Desses dois portos do Rio Doce irradiavam as mercadorias que abasteciam a vasta zona percorrida por seus afluentes: Guandu, Natividade e Manhuaçu.
Inquietava-nos a insalubridade do caudal que íamos perlongar, todavia fomos informado, com segurança, de que de Colatina até à Serra da Onça, distante dez léguas de Natividade, a região era geralmente salubre; raros eram os casos de paludismo. Daí para cima, porém, ele canhoneava, sem piedade, quem por Já errasse, e só se aniilava na parte desflorestada ou de altitude elevada sem pauis ou tremembés.
Íamos, pois, estudar o traçado da estrada acompanhando o trecho do rio livre da malária e isto muito nos alegrou. E diante das boas notícias desejamos pregoar que a maleita do Rio Doce era um mito. Chegávamos a duvidar de sua existência nos lugares tidos como pestilentos, e tudo quanto se propalava contra o vale grandioso parecia-se com alguns contos da carochinha, em que fadas benfazejas proclamavam haver um mundo de malefícios, que nunca era alcançado, mas que as crianças temiam julgando residir nele o bicho-papão.
Como seria bom, pensávamos, nesses momentos de devaneios, que a má-fama do rio não passasse de intrigas, de mexericos, por toda parte, ali, representados por teias tecidas por aranhas — mexeriqueiras respeitáveis.
Mais tarde, infelizmente, testemunhamos que não era exagerada a triste celebridade do rio nos pontos indicados.
Primeiro de setembro é o dia fixado para continuarmos a exploração parada em Natividade. Devíamos estar à espera do chefe, Dr. Pedro Versiani, e aparelhado para cumprir nossas obrigações ajudando-o, com desvelo, ensejando-lhe a ocasião de prestar mais um serviço que o recomendasse à Companhia.
Compramos ao Sr. Buriche um cavalo e arreios.
— É um animal manso e de talento — disse-nos um nordestino, freqüentador da casa comercial, examinando-o. — É inteiro mas como não há eguada rio acima tem que ser sossegado à força. A compra parece que não foi má. O seu nome é Queimado e ele já está quase ruço. É velho de seis anos — e olhando os dentes do solípede confirmou: — sim, tem mais de seis anos. As mudas já se igualaram há muito tempo.
A essa altura um matutão interveio e observou:
— Este homem tem a mania de dar palpite no que não é chamado. Seu João, meu compadre, não venderia ao senhor, cunhado de seu Mileto, um animal rúim. E ele a dar-lhe! A querer botar defeito no cavalo que é de sustança, árdego e de bons sinais. O bicho não é estremecido, não é náfego, tem bons cascos, é de pêlo branco, porém, de couro preto, já montei nele e sei que não tem manha, não se pega, é marchador e certo, obedece bem: ao freio, não é empesteado, não sofre de dor de barriga, não tem calo de pisadura, nunca teve mormo, não é fraco e é bom nadador. Era o cavalo de estimação de minha comadre e só foi vendido porque ela quase não viaja e ele vivia sem trabalhar.
Ficamos conhecendo as boas qualidades do Queimado e a excelente compra que havíamos feito, graças às reticentes observações e aos rebates preciosos dos dois fregueses do Sr. João Buriche.
Diocesano Dom Femando de Sousa Monteiro chegaria ao Porto da Esperança no dia imediato, e ia dar-lhe a honra de ser seu hóspede.
Foi combinado um modesto programa de recepção ao querido prelado, e como dever-se-ia dar-lhe assistência de modo que lhe significasse a justa impressão do quanto era benquisto e respeitado pelos moradores daquelas paragens.
Satisfeito e desvanecido fizemos parte da pequena e improvisada comissão que devia homenagear o ilustre e venerando antístite da Igreja.
Quando lhe fomos apresentado, ele, com carinho paternal, disse-nos:
— Há muitos anos que não nos avistamos. Você foi um dos alunos espírito-santenses do Colégio de São Luís de Gonzaga de Petrópolis. Que prazer, que surpresa agradável de o encontrar aqui. Não era engenheiro da Central do Brasil? Que está fazendo no interior do nosso Espírito Santo?
Explicamos-lhe que havíamos deixado a Central e tomado compromisso com a Companhia Vitória a Minas.
— Oxalá que você acabe por ficar, definitivamente, em nossa terra. No Espírito Santo há muita cousa que fazer e seus filhos não devem abandoná-lo.
Longe estávamos de supor que seríamos, antes de três anos, auxiliar do Presidente Jerônimo Monteiro, o inesquecível realizador das obras que tornaram Vitória cidade confortável e deixou, ainda, em qualquer parte do Estado um vestígio, um marco de sua passagem pelo governo.
Depois de haver Dom Fernando conosco permanecido dois dias, em que cuidou das piedosas obrigações de seu sagrado ministério com simplicidade, com sublime espírito de evangelizador e com o amor pregado pelo Divino Mestre, partiu com destino a Boa Família.
Com o Senhor Buriche acompanhamo-lo à distância de uma légua. Regressamos, cumprindo esse dever de respeitosa cortesia, à margem do rio, sensibilizado por sua bondade incomparável.
[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]
Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.