Voltar às postagens

O desbravamento das selvas do Rio Doce (Memórias) – Bugres IV

Bugres

________________________________________________

CAPÍTULO IV

Correspondência trocada. Relatório. Origem tupi. Boas lavouras. Ascendência sobre os chefes, de algumas índias. O Vale do Etuete. A bebedeira do capitão. Crenaques gritadores. Giporocas taciturnos. Assistência médica. Crenaques recusam presentes e atacam. População escassa. Recrutamento de trabalhadores nos Estados do Norte.

Em síntese nos referimos aos indígenas que foram chamados à civilização por Teófilo Otoni, pelos missionários Capuchinhos e por Dr. Alberto Portela; passamos agora a tratar dos que freqüentavam as margens dos Rios Doce e São Mateus quer no Espírito Santo, quer em Minas Gerais.

Orientar-nos-emos no que resumidamente vamos expor na correspondência trocada entre o Professor Elpídio Pimentel, organizador do número 7 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, nas páginas 12 a 40, e o oficial do Exército, Dr. Antônio Estigarribia, inclusive no trecho de um relatório por ele, como inspetor, apresentado à Diretoria do Serviço de Proteção aos Índios no ano de 1912, relativamente aos índios do Rio Doce.

Há muitas dezenas de anos habitam numerosos indígenas, mais ou menos civilizados, as lagoas situadas nas proximidades do Rio Doce e da costa marítima. Estes caboclos civilizados não são de “origem aimoré e sim tupi”.

Afora eles, “a mesopotâmia florestal Doce-São Mateus é habitada pelos remanescentes de índios (de língua diversa e tipo algum tanto diferente dos Tupis-Guaranis)”, a que o Serviço de Proteção denomina: Pancas, Manhangiréns, Nac-héréhé, Nac-ne-nuc, Inkutcra, etc., todos descendentes de tribos Aimorés e Goitacases.

* * *

No Espírito Santo fundou o Serviço de Proteção aos Índios um posto de atração nas matas entre o Rio São Mateus e o Doce. Para ele convergiram representantes das tribos acima mencionadas. Os que ainda não se habituaram ao sedentarismo da vida agrícola, retornavam à floresta quando bem entendiam. Outros, porém, como os da tribo do Capitão Nazaré, integraram-se ao cultivo da terra e conseguiram possuir boas lavouras e “algum gado”.

A tribo dos Pancas, embora tivesse um chefe inteligente, como o Capitão Nazaré, não escapava à influência da índia Benedita, que sobre ele exercia ascendência. E a respeito assinalou o Dr. Estigarríbia que, “como era de esperar, as mulheres fazem todos os serviços mais pesados do casal e, no mais comum, não são bem tratadas”; e ressaltou: “algumas, porém, geralmente idosas, adquirem ascendência e dominam a tribo, através dos chefes que só fazem o que elas acham bom.” A Benedita, como tivemos ocasião de verificar em 1906 e como mais tarde registrou o Dr. Antônio Estigarríbia, dominava “entre os índios mansos do Rio Doce”.

* * *

Reorganizado o Serviço de Proteção aos Índios no Vale do Rio Doce, diz o Dr. Estigarríbia, “ficaram sujeitos à jurisdição desta Inspetoria todos os aldeamentos do Rio Doce, os de Minas inclusive”. Por força dessa reorganização visitou o inspetor os indígenas moradores “no Vale do Etuete, afluente do Rio Doce, pela margem do Sul”. Foram numerosos os selvagens dessa tribo, mas na ocasião da visita do Dr. Estigarríbia restavam apenas cinqüenta e seis, porque a maior parte se finou por doenças e “sobretudo pelo álcool”.

Tentou o Dr. Estigarríbia retirar esses índios de Etuete para o aldeamento do Pancas. Conseguiu que o Capitão da tribo e mais dois bugres visitassem o Posto do Espírito Santo. Quando estes voltaram o Capitão Nazaré e mais três de sua maloca quiseram acompanhá-los. Desejavam ver conhecidos e parentes que residiam no Etuete e insistir com eles para que viessem morar no Pancas. O resultado dessa viagem foi ter-se o Capitão Nazaré, em Resplendor, embriagado e cometido desatinos. E o Dr. Estigarríbia, melancolicamente, anota: “Esse fato prova o inconveniente, por enquanto, das proximidades de povoações.” No Posto, concluímos, não se emborrachava o Capitão Nazaré, “índio ativo e bom diretor de sua gente” por não haver cachaça, fato, aliás, reconhecido pelo dedicado Inspetor.

* * *

A maior tarefa da Inspetoria é, sem dúvida, atrair os Crenaques que “são botocudos, isto é, Aimorés, e constituem a parte mais poderosa e atrasada do grupo Guterac”.

Os Crenaques e os Munhangiréns ou Giporocas, de São Mateus, são selvagens que muito se diferenciam. Da tribo dos Crenaques os homens “usam ligeiríssima tanga, só na frente, e as mulheres andam nuas”. “São de uma vivacidade gritadora, sempre agitados e à procura de alimentos.” Não há pudor entre eles.

Os homens da tribo dos Giporocas de São Mateus são sisudos e menos vivazes. Não são expansivos e riem “pouco e baixo”. As mulheres não se aproximam de homens estranhos. “Raramente falam ou pedem qualquer cousa.”

Os Crenaques não aceitam de nenhum modo a mudança para o Posto do Pancas, o seu Capitão Muim “até chega a deitar-se fingindo doente, quando se fala em Pancas”. Essa decisão inabalável “determinou a criação de um Posto nas matas de Minas”.

Não falta assistência aos Crenaques. E o Dr. Estigarríbia, nosso amigo de saudosa memória, informa que nos casos de epidemia lhes prestam “serviços clínicos gratuitamente os distintos facultativos Dr. Joaquim Teixeira de Mesquita e Dr. Lacerda Guimarães, nossos amigos e patrícios expressamente chamados para isso”. Eram elesf médicos da Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas.

Do que lemos sobre os selvagens do Mucuri e do Itambacuri e dos esclarecimentos do Dr. Estigarríbia parece que a ferocidade dos Crenaques, se não era igual à dos Pojichás não se afastava, entretanto, de suas tropelias. O próprio Dr. Estigarríbia declara: “nos meus relatórios do ano passado sempre me referi a esses índios, recordando o seu afastamento teimoso e voluntário, ou os ataques, alguns recentes, que fizeram nas margens do Rio Doce. É verdade que a cada um deles precedeu um agravo, que provocou.” Supomos que, depois de se haver instalado a Inspetoria de Proteção aos Índios, em 1910, chefiada pelo Dr. Estigarríbia tivessem eles atacado após receber agravos. Antes, porém, procediam de modo diferente como revelaremos em outro lugar deste livro. Recusaram presentes que, com outros engenheiros da Companhia, lhes oferecemos e sobre nós atiraram um chuveiro de flechas.

* * *

A Inspetoria foi sempre solícita em acudir às necessidades dos aborígines. Chegaram a ser socorridos por ela cento e vinte e sete índios em Minas e cento e quarenta e sete no Espírito Santo.

Alimentos, ferramentas, utensílios e roupas eram fornecidos aos índios do Etuete, de São Sebastião do Ocidente e dos Postos de Aimorés, Resplendor e Pancas.

Terminamos nossas considerações sobre os selvagens do Rio Doce com os seguintes esclarecimentos do Dr. Antônio Estigarríbia:

Os índios Crenaques, como os outros do Rio Doce, são inteligentes, industriosos e bons. Na média são bonitos e fortes, mas resistem muito pouco às moléstias. Os ferimentos, porém, cicatrizam neles com pasmosa facilidade.

A escassa população da margem esquerda do Rio Doce, desde o mar até o Rio Piracicaba e da foz deste, no Rio Doce, até Antônio Dias não vai dar à Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas contingente de trabalhadores para a construção da estrada de ferro. Também não pode ela contar com o concurso dos moradores da margem direita, porque há trechos, a partir de Regência até Colatina, quase inteiramente despovoados. Só afastada do Rio Doce aparece a colonização de procedência estrangeira, cujos colonos não trocam suas atividades agrícolas pelas ferroviárias. De Colatina para cima espírito-santenses e mineiros, que demoram distantes do Rio Doce, também não deixam lavoura e pecuária para se engajarem com os engenheiros da estrada.

A falta de trabalhadores na região em que vai ser construída a ferrovia acarreta à Companhia sérias dificuldades. Vale-se ela de braçais, que se apresentam procedentes da Estrada de Ferro Leopoldina ou da Central do Brasil, mas como o número deles é deficiente, não há outro recurso senão o de recrutar nos Estados da Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco gente capaz de enfrentar o trabalho, a pobreza da Companhia e a malária.

Assim foi resolvido o problema que representou para a Companhia pesados gastos para a sua economia de angústias.

[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]

Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.

Deixe um Comentário