Estrada de Ferro Vitória a Minas
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CAPÍTULO XII
Na berlinda. Obrigações retomadas. Retirada de um profissional. Parabéns. Novo Superintendente. Apanhado de surpresa. Reclamações. Não recebem. Promessas. Interferência conciliatória. Satisfação geral. “Não troquei palavras.” “A greve vai estourar.” “O dinheiro aparecerá.” Pagamentos sem atraso. Boa intenção. Despedidas. O trem parte. Explodiu a greve. Divergências. Engenheiros demitem-se. Vitória! região descampada. Caminho de cabrito ou de serviço. |
Célere divulgou-se em toda a construção o nosso regresso do Cuieté. O engenheiro Bicalho, nosso amigo, afamado pelos seus repentes e críticas, anunciou:
Está na berlinda o Ceciliano: porque aceitou a incumbência de locar o trecho da linha no Cuieté, prêmio que lhe deu a Diretoria por causa dos bons serviços a ela prestados; porque retirou da construção cerca de cinqüenta trabalhadores, que regressaram impaludados; porque, além de seus vencimentos como chefe de Secção, não recebeu extraordinário ou diária; porque tem a pretensão de levar a palma aos colegas; porque em seu modo de falar, repetindo sílabas, escreveu, a mais, um C do PC de uma curva e levou uma curva composta PCC, isto é, locou por partidas dobradas; porque, enfim, é colega que não se zanga quando está na berlinda, embora se faça alusão ao seu tartamudear. |
Das críticas de Dr. Bicalho anotamos aquela que nos imputava a culpa de haverem os trabalhadores contraído a malária e redobramos de cuidados para lhes restaurar a saúde.
Retomadas nossas obrigações concernentes ao preparo do leito da estrada, aprazíamo-nos de irem bem ordenados os trabalhos, que progrediam a olhos vistos. A Diretoria, que desejava estender os trilhos, com urgência, sessenta quilômetros além do Manhuaçu, ficaria satisfeita de poder realizar esse plano, que lhe ia permitir receber do Governo Federal a quota relativa à garantia de juros, conforme lhe assegurava o contrato. Cooperávamos em esforços dando-lhe o ensejo de aliviar os seus encargos.
Regressaram o Dr. Emílio Cunha e sua turma de auxiliares e jornaleiros do Rio João Pinto Grande. Livraram-se da mata, mas não dos acessos de malária, que continuarão a arrasá-los.
E lá, na brenha temerosa, nas intermitências das febres, não se limitou o engenheiro, inteiramente absorvido no cumprimento dos deveres profissionais, à locação do projeto que lhe fora fornecido. Estaqueou uma variante e verificou que, passando por uma garganta, por ele descoberta em plena floresta, encurtava o traçado e proporcionava economia considerável à Companhia, sem alterar as condições técnicas da linha.
Procedeu o Dr. Emílio nesse último trabalho prestado à estrada com excepcional dedicação. E de tal modo sacrificou a saúde que se viu constrangido a retirar-se da região do Rio Doce para se recuperar das energias perdidas.
Perdeu a Companhia um chefe modelar. Lastimamos sua retirada. Despedimo-nos pesarosamente.
Era noite. No escritório cada qual se esforçava em fazer sua tarefa. Plantas, perfis, cadernetas, atulhavam nossa prancheta, quando tilinta o telefone. É o chefe da Divisão, Dr. Pedro Bosísio, que nos alvissara acontecimento, que, em seu entender, muito nos vai agradar, e atabalhoa o que nos passa a desvendar.
— Ceciliano, você está de parabéns. A estrada tem novo superintendente, grande amigo seu, conforme acaba de me dizer. É o Dr. Alfredo Lopes, que não há muito se afastou da Central do Brasil. Quer cumprimentá-lo.
— Dr. Bosísio, há por certo engano. Não me recordo de haver conhecido na Central o Dr. Alfredo Lopes.
— É o Dr. Alfredo Lopes da Costa Moreira.
— Ah! Lembro-me. O Dr. Costa Moreira foi um dos meus chefes na Central. É, efetivamente, meu amigo.
— Vou chamá-lo e dar-1he-ei o fone. Você é de sorte. Tem, agora, um amigo na superintendência. Mais uma vez, aceite meus parabéns.
Saúda-nos o Dr. Alfredo Lopes, expande-se com alegria e adverte-nos bem-humorado.
— Então, Ceciliano, você com a ausência de pouco mais de dois anos, já se esqueceu dos amigos que ficaram na Central? Olvidou-se do Alfredo Lopes?
— Perdão, doutor. Não me esqueci do Dr. Costa Moreira. Na Central era o senhor meu superior hierárquico e usava a assinatura A. L. da Costa Moreira. Apanhado de surpresa não me ocorreu que A. L. era Alfredo Lopes, o atual superintendente da Vitória a Minas. Felicito-o sinceramente, auguro-lhe boa administração e prometo-lhe ajudá-lo a enaltecer sua gestão.
— Agradeço-lhe a colaboração, que me vai dar. Confio nela. Havemos de vencer os tropeços que se nos antolharem.
E o diálogo espraiou-se, em tom cordial, entre o Dr. Alfredo Lopes e nós por alguns minutos! Rememoramos vários episódios ocorridos na Central do Brasil. Em seguida nos revelou ele que tinha imenso desejo de conhecer a construção do prolongamento da estrada. Não o podia fazer naquela ocasião, mas não retardaria o propósito de a percorrer e, então, teria satisfação de nos abraçar. Retribuímos-lhe sua gentileza e ele aprerentou-nos suas despedidas.
Matutamos na retirada do Dr. Alfredo Lopes da Central e nunca indagamos dele a causa de seu afastamento.
Correndo a notícia de estar para breve a chegada à Barra do Manhuaçu do pagador, diversos empreiteiros lá se dirigiram para solicitar ao chefe da Divisão o pagamento dos trabalhos relativos às medições mensais processadas e não pagas.
De volta, descreveram-nos a intenção das turmas, subordinadas diretamente à administração da estrada, de se levantarem contra a Companhia exigindo dela “pôr o pagamento em dia”. Não podiam, declaravam, deixar de reclamar contra o abuso, que ela praticava, de só lhes pagar o salário depois de cinco meses vencidos.
Quanto a eles, empreiteiros, nos asseguravam que se esforçariam por impedir o levante de suas turmas. Teriam o cuidado de lhes agradar e de as tentear. E talvez nos tenteando estivessem eles, quando assim nos falavam.
Na ocasião em que o Dr. Alfredo Lopes achou de visitar o prolongamento da construção da estrada veio também o pagador. Acercaram-se deste as turmas, que construíam a ponte do Manhuaçu, e lhe comunicaram que haviam deliberado receber a paga de dois meses e não apenas de um, e pediram-lhe que deixasse a importância trazida, no escritório da Divisão, e providenciasse o suprimento de maior quantia para os satisfazer. Sabia o pagador, afirmaram, que os operários e trabalhadores eram seus amigos e, por isso, rogava não procurasse demovê-los da resolução, que haviam combinado. Assombrado, o pagador, ante a decisão, que lhe fora transmitida, apressou-se em participá-la ao superintendente e ao chefe da Divisão.
O Dr. Alfredo Lopes não se deteve em dar uma solução, que abortasse a greve projetada antes que se espraiasse, e convidou os seus promotores para se avistarem com ele e exporem suas queixas, suas razões. Os reclamantes explicaram-lhe, em linguagem singela, os motivos que os constrangeram a assumir semelhante atitude, e manifestaram-lhe o propósito de não modificá-la. Não pretendiam desmandar-se do respeito, que sempre tributaram aos seus chefes, e isso reiteradamente lhe asseveraram.
Depois de várias conferências cederam os trabalhadores às promessas do superintendente e, com ele, pactuaram os seus representantes, que receberiam os salários, contanto que, no prazo de trinta dias, lhes fossem pagos dois meses e, dentro de outros trinta dias, mais outros dois meses, ficando dessa forma “o pagamento em dia”.
Graças à oportuna intervenção do superintendente, não se verificou, nesse ensejo, a greve, que despontava. Como veremos, o levante foi apenas adiado. Rebentará breve.
Enquanto recebiam as turmas os seus minguados jornais, e nelas reinava a alegria, o superintendente, acompanhado pelo Dr. Bosísio empreendeu a excursão planeada, perlustrando os trechos da linha já construídos e os que estavam sendo preparados.
Ajuntamo-nos com eles no começo da Secção, que nos estava confiada, e houve cumprimentos, abraços e expansões amistosas.
Cavalgamos devagar e fomos dando-lhes explicações sobre as dificuldades ou facilidades, que se nos depararam na construção das obras.
Por sua vez, o Dr. Alfredo Lopes nos relatou a vitória por ele alcançada, conseguindo a greve dominar antes que avultassem os seus males. Estava satisfeito pelo êxito de sua interferência conciliatória. Sua alma radiava contentamento e nele transparecia a aleluia de que estava ela possuída, quando transmitia o ocorrido na Barra do Manhuaçu às turmas que ia encontrando, reafirmando-lhes que se empenhava em satisfazer o pessoal humilde da estrada, pondo o “pagamento em dia”.
O Dr. Pedro Bosísio ecoava as palavras do Dr. Alfredo Lopes e nos olhos e nas faces de trabalhadores e operários suarentos relampeavam centelhas de felicidade. Ter dinheiro para não comprar somente aos armazéns da Empresa Sá Carvalho & Cia. era muita fortuna. Era muita sorte ter dinheiro para adquirir guloseimas no dia do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo, para a mulher e as crianças. Parecia um sonho, entretanto, tudo isso aconteceria, se fosse estabelecida a regularidade dos pagamentos prometida pelo doutor superintendente. E o prestígio deste crescia, e ao longo da estrada em construção ele captava simpatia e amizades. Como César, ele haveria de vencer, não atravessando o Rubicão, mas “pondo o pagamento em dia”.
Os empreiteiros também se apressuraram e afluíram de suas moradias ao encontro do superintendente, queriam ouvi-lo explanar a afirmativa maravilhosa de lhes pagar, sem atraso, as quantias relativas às medições mensais.
Assistíamos às manifestações de contentamento daquela gente e, apreensivo, precavíamo-nos contra aquele generalizado regozijo.
Hospedamos o superintendente e chefe da Divisão da Estrada e, embora enleado por lhe não poder proporcionar conforto, transluzia em nossa atitude o propósito de lhe dar bom acolhimento.
Acabamos de jantar. A preocupação de agradar aos hóspedes não nos deixava cismar nos Crenaques, como tantas vezes o fazíamos, os quais da outra banda do rio por certo não discerniam, naquela noite, enluarada, a claridade pálida refletida nas águas escacho antes do caudal e as sombras das árvores projetadas nos remansos, a montante e a jusante, das itaipavas ruidosas. Viam indiferentes tanto as águas borbulhantes como as represadas. Criaram-se vendo aquilo, e não atinavam com o problema da remuneração do trabalho em moeda sonante, em prazo certo, o qual, naquele momento, nos desassossegava e, por isso, pretendíamos obter do superintendente esclarecimentos formais.
E quando a conversa inquisidora do Dr. Bosísio com o Dr. Leitão os absorveu, levamos discretamente o Dr. Alfredo Lopes ao leito da linha e, aí passeando, abrimos debate sobre a conversa de pagar sem atraso os salários dos trabalhadores e operários da construção da estrada.
De fato pretendia mandar efetuar, disse-nos, em dezembro próximo, o pagamento dos salários relativos a dois meses; assim, iria diligenciando por percorrer o pagador a linha na primeira quinzena do mês imediatamente posterior ao vencido. — Decerto — retrucamos-lhe — o senhor está autorizado pela Diretoria a pôr em prática tão acertada medida.
— Não troquei com ela palavras a esse respeito — e ponderou-nos que essa providência, por ser comezinha demais, não podia deixar de ser compreendida e aprovada.
— Compreendida será, aprovada, porém, não o será, porque à Diretoria escasseiam recursos para assim deliberar. Muitos nos afligimos com lhe dizer isso e mais porque a greve rebentará antes de Natal, quando o pagador trouxer quantia insuficiente para acorrer ao pagamento de salário de dois meses. Conhecemos a Diretoria da Companhia e asseveramos-lhe que, se ela dispusesse de numerário, não deixaria os jornaleiros sem o pagamento de seus salários durante cinco meses e os engenheiros durante prazo maior. A Companhia apresenta lampejos de alívio à sua fome de dinheiro quando, depois de inaugurar o tráfego de um trecho e de vencer a burocracia dos ministérios, recebe a garantia de juros de conformidade com o seu contrato, e por isso tem urgência de concluir a construção da ponte do Manhuaçu e de assentar os trilhos até a estação de Resplendor. A greve vai estourar, porque o compromisso assumido pelo senhor não será cumprido.
E o Dr. Alfredo Lopes, embora vacilante, insiste:
— Qual! O dinheiro aparecerá!
Nessa ocasião avizinham-se de nós o Dr. Bosísio, o Dr. Leitão e alguns auxiliares e todos olhamos o firmamento. A lua quase atingia ao zênite e espargia, por sobre o leito da estrada, luminosidades brandas bem diferentes dos clarões que, breve, vão ser emitidos pelos faróis das locomotivas possantes. Na atmosfera bafejava a aragem, no leito do rio as águas catadupejavam, jorravam enfurecidas, e na mata virgem reinava o quiriri silencioso.
Prosseguimos no dia seguinte nossa caminhada ao fim do trecho da Secção. Aos empreiteiros participava o superintendente que os pagamentos referentes às medições parciais lhes seriam feitos sem atraso. Seria estendida para eles a providência que irá ser adotada para as turmas subordinadas à Administração.
De volta, rodeando a margem direita do Rio Doce, o superintendente e o chefe da Divisão manifestaram-nos a boa impressão que haviam tido do andamento dos trabalhos e da ordem existente. Agradecemos-lhes os estímulos, que nos prodigalizavam, e aproveitamos o ensejo para lhes solicitar licença de sessenta dias a partir de quinze de dezembro próximo. Pretendíamos visitar nossos pais em São Mateus e nossos sogros no Rio de Janeiro.
Depois de muita relutância, assentiram em deferir-nos o pedido.
Para gozar a licença deixamos a morada do Cachoeirão e pressentimos que não voltaríamos àquele sítio pitoresco. Ali aquedamos o espírito, ali fruímos muita alegria por ver nossos trabalhos organizados e nossas aspirações realizadas, e ali nos descontentamos da Companhia quando nos mandou à região do Cuieté.
Constrangido, fomos arriscar a saúde na zona da malária, mas não desejávamos que o pessoal trabalhador, a quem devíamos grande parte de nosso êxito, supusesse que pactuávamos com a promessa de se fazer o pagamento sem atraso, o que nos parecia, não se cumpriria. Tínhamos a certeza da boa intenção do superintendente e convencemo-nos de que ele, administrador bem orientado, desconhecia, entretanto, os apertos que experimentava a Diretoria na obtenção do numerário.
Sentíamos que nos deslocávamos e revíamos, com a alma confrangida, o leito da estrada, em que se assentariam os trilhos, as obras de arte concluídas e a linha telegráfica que seria inaugurada. Comoviam-nos as despedidas dos companheiros de faina, que nos auguravam boa viagem e breve regresso. Não nos era grato afastarmo-nos, antes da inauguração do tráfego, daquele trecho da estrada que exploramos, locamos e construímos.
Naquele momento havíamos mister de nos ausentar. A greve explodiria e os trabalhadores acusariam os engenheiros de falsos, mentirosos e pérfidos. Sempre o pagamento de seus salários, diriam, eram retardados, mas apresentavam-lhes razões e com elas se conformavam. Jamais foram iludidos por seus chefes com palavras vãs. Prevíamos o auge de indignação, contra os superiores, que atingiria aquela gente.
Imerso nesses pensamentos inquietadores, só interrompidos pelos cuidados para com a esposa e os filhos, as horas decorriam e apropinquávamo-nos da ponte do Manhuaçu. Em aí chegando, receberamnos com satisfação os homens dedicados ao serviço da Companhia e deram-nos a novidade, que a todos empolgava, o pagamento não ficaria mais atrasado em cinco meses, ia ser posto em dia e teriam dinheiro para gastar pelo Natal.
Pernoitamos na casa do Dr. Bosísio. Ele e a família fidalgamente nos agasalharam. Recordamos reconhecido as hospedagens que nos deram em Lauro Müller e em Colatina e, agora, ainda era naquele lar acolhedor que estávamos recebendo, talvez, o último favor como engenheiro da Companhia.
Conversamos longamente com o amigo e, sem rebuço, transmitimos-lhe nossa conjetura sobre a amotinação do operariado, que entraria em parede se não lhe fossem pagos os salários de dois meses, conforme a promessa do superintendente. Admiramo-nos da opinião do Dr. Pedro Bosísio, em tudo semelhante à do Dr. Alfredo Lopes: o dinheiro surgiria e o pagamento de salários relativos a dois meses seria efetuado; a Diretoria, dos meios suficientes para isso, proveria o pagador.
No dia seguinte rodeamo-nos de amigos que nos levaram amplexos de despedidas e partimos de Natividade, como então se chamava a estação de Aimorés. Tivemos o espírito torturado. Os abraços do boníssimo amigo Dr. Bosísio, de sua senhora e de sua filha apertaram-nos o coração.
O chiado brando da locomotiva anunciando a próxima partida do comboio semelhava o gemido abafado de nossa alma em desassossego. Contrastavam nossas inquietações com as esperanças no bom resultado de nossas atividades, quando embarcamos no trem em Porto Velho para Lauro Müller, havia vinte e sete meses.
Muito aprendemos dos tropeços da vida, muito ganhamos em experiência de construção de estrada de ferro, e muito alcançamos pacientemente. Agora voltávamos sem saber aonde iríamos exercer a profissão, se na Central do Brasil, onde estavam nossos amigos, ou se, expirada a licença, retornaríamos à Vitória a Minas, ou se aceitaríamos um convite inesperado, que se nos fizesse.
Voltamos de São Mateus na primeira quinzena do mês de janeiro de 1908. Soube o superintendente que estávamos em Vitória de trânsito para o Rio, e mandou propor-nos a desistência do resto da licença concedida e oferecer-nos o encargo de relocar o eixo da linha e chefiar o assentamento dos trilhos. Feitos estes trabalhos, reassumiríamos a chefia da Secção, que se estenderia até Lajão, atual Conselheiro Pena.
Não aceitávamos a sugestão, porque o nosso itinerário estava organizado. Esta foi a resposta que pedimos ao emissário transmitisse ao superintendente com os nossos agradecimentos.
O enviado inteirou-nos do ocorrido na construção. Os operários recusaram receber apenas um mês de salário. Exigiram que lhes fossem pagos os de dois meses, conforme a promessa solene do superintendente, e a greve explodiu.
A superintendência viu-se em situação apertada. Séria divergência houve entre o superintendente e os engenheiros, que se demitiram, entre os quais os Drs. Bosísio e Bicalho. Retiraram administradores, apontadores e feitores. A ordem, porém, já estava restabelecida e os trabalhadores satisfeitos com o recebimento dos salários.
Os engenheiros Bosísio e Bicalho obtiveram pequenas empreitadas do Presidente do Estado do Espírito Santo, Coronel Henrique da Silva Coutinho, que, sabendo de nossa estada no Rio, telegrafou-nos que retornássemos a Vitória, e reiterou com insistência este chamado. Intimamente queríamos voltar à Central do Brasil, mas a voz do coração alteou e, com satisfação, regressamos e prestamos nossa ajuda nas gestões dos Presidentes Coronel Henrique Coutinho e Dr. Jerônimo Monteiro.
Dois anos depois, acompanhamos o Almirante José Carlos de Carvalho, hóspede do Presidente do Estado, até a estação de Derribadinha, já inaugurada, e visitamos a ponte em curva do Rio Doce, em construção. Notamos a deficiência dos estudos na escolha do local dessa importante obra de arte.
Não há dúvida, porém, de que a Companhia muito ficou devendo a homens sem diplomas como o Coronel Aprígido Freire, Serafim Alexandre e outros, que construíram o leito da estrada acossados pela malária.
Em meados de 1911 fomos assistir e inspecionar turmas de locadores, por designação do engenheiro Femando Esquerdo, que empreitou os estudos de um trecho de Naque para cima. Lá pelejavam, entre outros, engenheiros de avançada idade, como o Dr. Damasceno e o Dr. Lavagnoli, contra as terríveis febres intermitentes.
E assim, dominando dificuldades, debatendo-se na penúria de recursos e enfrentando intempéries, foi construída a estrada de ferro de Vitória a Minas até a região descampada do Piracicaba. E os trilhos venceram as selvas… Referia-se a ela Pedro Nolasco com imenso entusiasmo. Era, dizia, “o caminho de serviço” da outra que a substituirá, ao passo que a crítica a chamou, com certo desdém, de “caminho de cabrito”.
O nosso encolhimento não nos estorva de nos orgulhar de havermos colaborado na construção desse “caminho de serviço”, que concorreu para a saída do minério de ferro de inigualável teor do maciço de Itabira.
[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]
Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.