Estrada de Ferro Vitória a Minas
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CAPÍTULO X
Notícias falsas. Tarefas e empreitadas. “Trabalhar a vida inteira, não.” A antítese do outro. O profissional não esmorecia. Sepultado em Figueira. Febre amarela? Visita do primeiro engenheiro. “Seu doutor está multado.” “Aquele homem não produz.” Compressão nos gastos. Promovido. Outra mudança. Legiões de soldados do trabalho. A bondade e o peso da senhora. “A doença é falta de pagamento.” A terraplanagem, o desmonte e os trabalhos das obras de arte estão ordenados. O perfil do progresso mensalmente se vai completando. Tudo corre bem. |
Assalta-nos, porém, de quando em quando, uma ocorrência imprevista. Num dia, traz apressado trabalhador um bilhete do feitor: “caiu um aguaceiro na reta grande do Lopinho, o aterro fugiu, o pontilhão foi abaixo, parece que morreu um serrador.” Imediatamente comparecemos ao local.
A manga de água havia arrastado parte do aterro, nas vizinhanças do pontilhão, que nenhuma avaria sofreu. O deslocamento de terra foi motivado pela torrente que impeliu diversas tábuas no vão da obra, obstruindo-o. Não houve morte de ninguém.
Estragos em cortes escavados de rochas decompostas ou terreno heterogêneo sucediam, freqüentemente, e garimpeiros e feitores sempre os exageravam.
Recomenda-nos a Companhia apressar todos os trabalhos da terceira residência e notifica-nos que pretende dilatá-la, a princípio, duplicando e, depois, tresdobrando a quilometragem.
Alvitra-nos a conveniência de conceder tarefas e pequenas empreitadas a pessoas capazes de cumprir as obrigações estipuladas.
O primeiro pretendente à execução de serviço por conta própria foi o Sr. João Lopes, ex-porta-mira do engenheiro Emílio Cunha, e que inteirava nossa turma de campo exercendo a mesma ocupação. Apenas garatujava o nome; lia, porém, a régua graduada com desembaraço.
Duvidamos que nos pedisse ele, seriamente, uma tarefa. Rimos do que nos parecia ser um chiste do jornaleiro baiano. O homem não desanimou e diariamente nos falava sobre seu projeto. Queria ser tarefeiro, queria enriquecer. Rogava-nos que atendêssemos a seu desejo dando-lhe possibilidade de “não trabalhar a vida inteira no pesado”, e que confiássemos porque ele remereceria nossa ajuda e atingiria o dia em que haveria de ter cabedais e folga.
Tanto João Lopes realejou seu pedido que lhe concedemos, depois da travessia do Ribeirão do Barroso, pequeno trecho da linha para ele construir. O perfil era compensado e os cortes em terra compacta.
Entregamos-lhe a nota de serviço. Ele organizou a turma, instalou o abarracamento e no dia de iniciar a tarefa amanheceu em nossa residência. Foi pedir-nos o grande favor de marcarmos as bocas dos cortes. Não quis convidar o administrador, socorrendo-se de nós. Terminado o trabalho a Companhia pagou-lhe o lucro, que pouco excedeu a quatrocentos cruzeiros.
De tarefeiro passou João Lopes a grande empreiteiro. Fez fortuna. Foi um dos pioneiros do vasto desenvolvimento de Figueira, atual Governador Valadares. Jamais deixou de ser nosso amigo. Seu filho, o Sr. José Lopes, tem sido vereador da Câmara Municipal da progressista cidade mineira.
João Lopes faleceu, faz cinco anos, legou haveres à família. Realizou plena e honradamente suas aspirações.
A rumorosa fuga do Dr. Feijó quase, de todo, já se apagou. A exploração da linha atingira o limiar da dilatada região palustre do Rio João Pinto Grande ao Calado. Urge, pois, que a Companhia incumba a um profissional idôneo a prossecução desse trabalho.
O convidado para realizar tal cometimento, foi o engenheiro Nestor Gomes, que era a antítese do Dr. Feijó. Este, como já salientamos, era desigual, ruvinhoso, ao passo que o Dr. Nestor era persistente, conciliador. Sua divisa — o cumprimento do dever — guiava-o constantemente.
Comprometeu-se, repisava, com a Companhia a correr a linha de exploração e havia de fazê-lo com risco da própria vida. Quando eram intensos os acessos de malária recolhia-se, com a turma, à Figueira. Aí continuava a saturar o organismo de sal de quinina e voltava ao posto de sacrifício, assim que os ataques atreguavam. Os auxiliares, vítimas também das maleitas, acompanhavam o chefe bondoso e resoluto. Trabalhadores, atormentados de padecimentos, pediam contas, retiravam-se. Outros substituíam-nos, acostavam-se a Dr. Nestor e prosseguiam naquelas paragens paludosas em que, diziam, “as folhas das árvores também tremiam na ocasião dos terríveis acessos de sezão”.
O engenheiro não esmorecia. No fim do dia estavam registrados os alinhamentos e esboçada a topografia do terreno e, de novo, as febres sinistras voltavam: campeavam, imobilizavam o chefe, os ajudantes e os jornaleiros.
Finalmente retomaram, mais uma vez, ao povoado de Figueira e não regressaram à região dos Caramanhos. O chefe heróico e querido faleceu. Um de seus auxiliares, o Sr. Pedro Zamprogno, meses depois, pormenorizou-nos as intempéries que os encantonavam nas margens inóspitas dos rios, que iam encontrando, onde as cameiradas os assaltavam mortificando-os, entorpecendo-os. Todos definhavam, dia a dia, o chefe amarelava como os demais; entretanto, não se lhe desgastava a energia, que era esteada no compromisso assumido de estudar a linha no trecho insalubre. Nada lhe malignava a decisão.
Apareceu, por fim, o acesso fatal, sem remissão. Os auxiliares malacafentos, flagelados, alarmaram-se e levaram, apreensivos, o chefe delirando para o oásis de Figueira. Aqueles homens de saúde arruinada olvidaram suas próprias doenças e tiritando, ardendo ou suando, assistiram o superior benquisto até o desenlace. Enterraram-no em sepultura rasa. Figueira desenvolveu-se, cresceu, transformou-se, deram-lhe outro nome — de alta linhagem — e o engenheiro Nestor Gomes foi esquecido e para sempre.
Decorreram vinte e nove anos. Venceu a Companhia Vitória a Minas, que sempre se debateu na carência de recursos para a realização do empreendimento visando ao transporte do minério de Itabira, estendendo os trilhos da estrada através da zona palustre. É médico da Caixa de Aposentadoria e Pensões o Dr. Lobo Leal quando irrompe em Figueira um surto de febre amarela. O notável clínico observa os primeiros casos da epidemia, firma com admirável proficiência o diagnóstico dos casos da infecção amarílica, submetido à sua alta competência, o qual é confirmado pelo laboratório do SFA, no Rio.
Modestamente publicou o Dr. Lobo Leal um opúsculo, Em torno de algumas clínicas sobre a febre amarela urbana em Figueira (Minas Gerais), e na página sete assim se manifestou:
Ainda não se sabe como apareceu, em Figueira, o primeiro caso da terrível epidemia. Teria promanado de Teófilo Otoni, onde há meses passados grassou a infecção? Teria a sua origem silvestre, do ciclo animal de inferior-vertebrado-homem e encontrando aqui índice elevado de aedes-aegypti para a difusão? Seria devido à persistência do vírus por longo tempo em insetos e aracnídeos (carrapatos etc.?). Neste último caso pode-se aventar, segundo antiga experiência de Marchona e Simond, embora contradita por Goldberger. |
Desde que lemos o interessante trabalho do competente e estudioso médico, logo após sua publicação, pensamos na possibilidade de haver falecido o engenheiro Nestor Gomes, como auxiliares e trabalhadores nas matas rudes do Rio Doce, de paludismo ou talvez de febre amarela. Muitos casos de que tivemos notícia apresentando sintomas alarmantes, de princípio, teriam sido de paludismo maligno, como afirmavam?! Hoje não mais se discute a existência de febre amarela silvestre.
Substitui o primeiro engenheiro Fernando Esquerdo, em caráter provisório, o engenheiro Artur de Sá Carvalho, fundador da Empresa Sá Carvalho & Cia., construtora, e incumbida de fazer fornecimento ao pessoal da Companhia. Afeiçoado ao Dr. Pedro Nolasco desde quando freqüentava o curso de Engenharia, na Escola Politécnica, era o Dr. Sá Carvalho geralmente estimado. Gozava de imenso prestígio, quer na linha em tráfego, quer na construção. Todos ficaram satisfeitos com a sua designação pára exercer o cargo de primeiro engenheiro, porque era ele bondoso e amigo dos que entressonhavam a breve conclusão da obra grandiosa.
Foi, pois, com satisfação imensa que recebemos o aviso de que ele viria visitar a construção. Preparamo-nos para dar boa impressão dos trabalhos confiados à terceira residência. Percorremo-la e recomendamos aos feitores, apontadores e administrador, que estivessem vigilantes e caprichassem em lhe apresentar os magníficos frutos de seus esforços.
Deixamos Boa Vista, sede da residência. A manhã era bela. Rutilam os raios solares. Convencemo-nos de estar na berlinda e deliberamos sabatinar as ocorrências havidas.
Cavalgamos eu, o Dr. Sá Carvalho e o Dr. Bosísio. Nós, rompendo a marcha, dávamos explicações: — “a terra extraída deste corte deu para o aterro, sem sobras”; “ali, adiante, porém, houve pequeno empréstimo”; “dessa pedreira, à esquerda, saiu o material para o bueiro da grota, dela distante cem metros, não havia outra mais perto”. E assim íamos minudenciando a execução dos trabalhos, as dificuldades encontradas e vingadas. Falávamos sem cessar para evitar as perguntas.
O Dr. Sá Carvalho elogiava-nos e o Dr. Bosísio, o amigo certo, ressaltava nossa atividade, provocando louvores do primeiro engenheiro. Nesse discretear alcançamos o corte mais alto do trecho que percorríamos, cuja escavação era constituída de dois terços de rocha compacta e de um terço de terra. Na véspera havíamos recomendado ao administrador providenciasse para que a parte do corte, em terra, fosse convenientemente rampada e que se fizesse a valeta de proteção. O Dr. Sá Carvalho toma a dianteira, entra no corte, observa-lhe os taludes, examina o material retirado e, quando menos espera, o feitor respeitosamente o adverte:
— Seu doutor está multado. A abertura do corte deu-se ontem, à tardinha, e o seu doutor é o primeiro a passar nele, a cavalo. Seu doutor queira perdoar-me a ousadia, mas não posso relevar a multa.
O primeiro engenheiro riu-se contrafeito da tirada do feitor. Entregou-lhe dez mil-réis.
Passados os minutos de hilaridade, o Dr. Sá Carvalho afasta-se do grupo, acena-me com as mãos. Aproximei-me e, desapontado, ouço:
— Ceciliano, aquele homem não produz. A rampa está sendo feita com excessiva perfeição e a nossa estrada não comporta esses luxos, que representam despesas supérfluas, próprias da Central do Brasil. Não leve a mal este meu reparo. Enrubesci e retruquei-lhe:
— Dr. Sá Carvalho, fui eu quem recomendou ao administrador que mandasse fazer a rampa por ser necessário. Vou determinar-lhe para retirar o trabalhador e dar-lhe outra ocupação.
A excursão ao longo da estrada, em construção, prosseguiu. Choveram novos elogios.
E quando o Dr. Sá Carvalho partiu, satisfeito abraçou-nos.
Mais tarde, quando as nossas reflexões retrilhavam as suas impressões, avaliáramos, nitidamente, quanto estava o seu ânimo impregnado da necessidade de compressão nos gastos da obra que se realizava. Técnico competente que era, previa, por certo, a queda de prismas de terra em cortes de material sujeito à decomposição, e o seu raciocínio seria “que venham os desmoronamentos, depois da tinha inaugurada, o engenheiro da Via Permanente que providencie, — conforme à sua atribuição”. Por felicidade, não houve advertência à construção da valeta de contorno.
Alguns dias após a inspeção do Dr. Sá Carvalho, como primeiro engenheiro, aos trabalhos da terceira residência, recebemos do Chefe da Divisão a comunicação de havermos sido promovido a chefe de Secção, com os vencimentos de setecentos mil réis mensais. A terceira residência seria incorporada à Secção, que teria quarenta e cinco quilômetros.
Como ajudante da Secção foi despachado o engenheiro Gonçalo Leitão, trazendo-nos carta de apresentação, em que eram enaltecidas sua competência e dedicação ao trabalho.
Estando o serviço, agora, concentrado, além da estação de Resplendor, em construção, urge decidir-nos a mudança para lugar mais conveniente à nossa fiscalização.
Nas proximidades do ribeirão Cachoeirão cabe a construção de uma casa de turma. Lá, havia um prédio, que podia ser aproveitado, para esse fim, depois de leve reforma. Entendemo-nos com o proprietário, adquirimos o imóvel, apressamos os consertos e instalamos, sem demora, a Secção.
Diariamente chegavam novas turmas de trabalhadores e empreiteiros. Queriam notas de serviço, pediam distribuíssemos seus quinhões, assediavam-nos com exigências repetidas, importunavam-nos.
Para repartir o trecho tivemos que renitir na resolução de dar preferência à locação da parte da linha, além da terceira residência, para formar a Secção. Destememos as dificuldades e, auxiliado pelo engenheiro Leitão, vingamo-nos, e feitores, e trabalhadores, e empreiteiros, contentaram-se.
Dentro em pouco, estendiam-se as legiões de soldados do trabalho que, com ferramentas e utensílios adequados, combatiam pelo breve assentamento dos trilhos, guardas avançadas e fixas dos chios das locomotivas desabusadas.
Naquela colméia humana e extensa, moviam-se os obreiros do desbravamento do Rio Doce. Feliz, do alpendre enripado de sua casa tosca, o Sr. Antônio Elias assistia ao melhoramento que despontava.
Na leva de empreiteiros vem o Sr. Pais Leme, português respeitável, com atestados, que o recomendam como construtor de via férrea.
Bom chefe de família, tinha o Sr. Pais Leme um filho, por quem se consumia de cuidados. É que o jovem, contando apenas dezenove anos, sofria do coração e isto, para o pobre pai, era motivo de justas preocupações.
— O meu Abel (assim se chamava o rapaz) — disse-nos o pai, em o nosso primeiro encontro — muito cedo se irá, e que Deus assista a ele, na hora derradeira.
Efetivamente, dois ou três meses após a chegada do Sr. Pais Leme à atual estação de Crenaque, faleceu-lhe o filho querido.
A Sra. Pais Leme, a D. Maria, como era chamada, esposa virtuosíssima; muito chorou a morte do seu Abel e lastimou-se por não ter encontrado alguém que evitasse o desenlace.
Esmerava-se D. Maria em tratamento afável, que a todos dispensava e, por isso, era respeitada. Apesar de sua bondade temiam-na e, à uma, afirmavam que ela exercia influência maléfica sobre os viventes, dos quais se aproximava, e relatavam fatos impressionantes. Se colhesse um limão na fruteira frondosa, a árvore definhava, murchavam-lhe as folhas e morria; se observasse a ninhada de uma galinha, as avezinhas entangueciam, não escapavam; se admirasse a robustez de um bezerro, o nédio animal entrezilhava; se elogiasse uma criança, estiolava-se-lhe o vigor. Por isso não agradava a ninguém a visita de D. Maria.
O médico era recebido pela família Pais Leme com grande mostra de consideração, e desejava patentear-lhe seu reconhecimento. A ocasião apresentou-se-lhe. Convidou-a para almoçar, quando se mudasse para Crenaque.
No dia aprazado, pela manhã, o doutor examinou os filhos. Eram cinco, e todos gozavam saúde. O almoço foi servido às onze horas, e às treze, logo após as despedidas dos Pais Leme, um novo exame revelou que duas crianças estavam febrilizadas e, exatamente, as que foram mais acariciadas por D. Maria. Esse fato não se comentou.
Uma vez percorremos parte do trecho, em construção, e antes de chegarmos ao ribeirão Santana deparamos com um trabalhador, que, apoiado ao cabo da picareta, olhava, indiferente, o labutar dos outros. Quando voltamos encontramo-lo, ainda na mesma posição. Chamamo-lo e perguntamos-lhe se estava doente.
— Estou com saúde — respondeu-nos. — Minha doença é falta de pagamento, que está atrasado em quatro meses.
Em voz baixa participamos-lhe que o pagador estava prestes a chegar. Redargüiu-nos, de pronto:
— O feitor, o apontador e o administrador dizem a mesma cousa.
Diante de sua sobranceria achamos conveniente não dar outras explicações. Apartamo-nos dele, cortesmente.
No dia imediato o administrador, fazendo-nos o relato das ocorrências da véspera, com toda a naturalidade nos comunicou haver dispensado o trabalhador, que nos desrespeitara. Procuramos, então, demonstrar-lhe, que ao jornaleiro assistia o direito de reclamar contra a tardança no pagamento de seu salário. E o Sr. Salgueiro firmemente nos declarou:
— Seu doutor, se eles não acatarem o senhor, não respeitarão os demais. Calculei o seu saldo, tirei a prova da conta e paguei-lhe, religiosamente. Ficamos livres do pestilento, capaz de empestar toda a turma.
De quando em quando, os administradores ouviam sussurros, do Manhuaçu até ao fim da construção, reprovando o pagamento tardio. O operário não se conformava com semelhante procedimento da Companhia. As reclamações, dia-a-dia, crescerão, como veremos.
[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]
Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.