Ceciliano Abel de Almeida. |
Na chanura, na margem esquerda do riacho Santana, cercada de mata virgem, demorava a choupana de meus pais, distante uma centena de metros do álveo do modesto tributário do Rio São Mateus, outrora Cricaré. Nesse recanto do Espírito Santo minha Mãe ensinou-me a balbuciar as palavras afetivas de nosso idioma, e eu ouvia o trinado do casal de canário, que entrava pela janela, mal acepilhada, e nidificava na cumeeira carunchosa. À medida que crescia, embevecia-me no chilreio das andorinhas, no esvoaçar das rolas, que mariscavam no casqueiro de mandioca, no gemido das juritis, no guizalhar das capoeiras, no pio estridente dos tucanos, no galrear das araras e papagaios… As aves domésticas implumes seduziam-me. Aos sete anos já não receava os animais de maior porte: admirava-os, discernia-os, tinha interesse por eles e comecei a prevenir-me contra as cobras e as suçuaranas, que os atacavam, e temia penetrar no cerrado ou na floresta.
D. Deolinda, mãe de Ceciliano Abel de Almeida. |
João e Luís, rapazes esquisitos, freqüentavam o tugúrio. Eram “os caboclos”. Foram criados por minha avó. E os de casa diziam-me: “são órfãos”, perderam pai e mãe, que usavam batoques, e morreram quando a maloca investiu contra uma fazenda, situada rio acima.
De tempos a tempos, irrompiam no terreiro, chegados de Minas, tropeiros ou boiadeiros com cavalhada ou boiada para vender. Descreviam as peripécias da viagem em que avultavam os assaltos dos indígenas entre os Rios Mucuri e Itaúnas. Curioso ouvia as bravatas dos muladeiros e vaqueiros, e arrepiava-me a narrativa sobre o efeito das flechas atiradas das tocaias contra a piara.
Um dia quando, entretido, armava, no aceiro da mata, a arapuca, perto da barranca do ribeiro, sai da brenha um homem alto, esguio, com um camarada. Temi. Correr, fugir, deliberei de repente. O fantasma, porém, de pronto, falou: “Não corra, sou de paz, sou agrimensor. Não fuja, amiguinho! Diga-me, seu pai está em casa?”
Levei-o à presença de meu pai. Almoçou conosco e não me cansei de admirar-lhe as botas, os óculos e uma caixa de couro a tiracolo, possivelmente a bússola.
Estas são reminiscências de minha infância e estou certo de que são razões, além de outras menos antigas, que me decidiram a escrever este livro depois de setenta e cinco anos de idade.
Na sede da comarca de São Mateus assistimos aos festejos delirantes dos que foram libertos pela Princesa Isabel, às alegrias patrióticas espalhadas pela proclamação da República e quisemos que outros suetos nos fossem concedidos, motivados por acontecimentos de importância, cuja grandeza não avaliávamos.
Modificou-se a estrutura política do país. Em derredor de nós, porém, não percebíamos alterações. Víamos o campo coberto de gramíneas viçosas ou ressecadas, conforme a estação do ano; o gado farto ou faminto; a cabana onde nascemos com seus esteios de baraúna; o ribeiro manso, que corria, lentamente, cavando a chapada terciária; a bolandeira, que, movida pela junta de bois, dava velocidade ao rodete de ralar a mandioca; o engenho de açúcar, as moendas e as tachas de cobre; o pilador rústico de café e a mata virgem, agora, mais longe. Faziam-se derribadas, anualmente, os aceiros afastavam-se. Substituíam-se na terra as grandes árvores por mandiocais, cafeeiros, canaviais, laranjais, bananais. Tudo vicejava. O projeto da casa assobradada, breve, seria realizado.
Não tardou haver mudanças em nossa vida. Interrompemos o curso primário ministrado pelo Juiz de Direito, que foi removido da comarca e, depois de algum tempo, fomos internado num colégio em Petrópolis. Deixamos a terra natal, encravada na mata entre o Rio Mucuri e o Doce, na qual rareavam os civilizados e erravam os botocudos numa dilatada área equivalente à metade da superfície do Estado do Espírito Santo.
Catorze anos decorridos chegamos ao Rio Doce como engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas. A região das matas desconhecidas continuava indevassável. Pouco se havia transformado em confronto com as informações do Príncipe Neuwied, Saint-Hilaire, Hartt e outros.
Nos tempos coloniais sendo a exploração do Rio Doce apenas consentida em suas cabeceiras, a vasta zona do seu curso baixo e médio continuou a ser habitada pelo gentio até o século XIX, quando foram adotadas medidas, a princípio, pela Coroa Portuguesa e, depois, pelo Governo Imperial, para dominá-lo.
Apaziguados os índios que vagueavam pelo sul do Rio Doce ficaram, entretanto, numerosas tribos, que ocupavam a região da margem esquerda e que, só no primeiro quartel do atual século, foram incorporadas à civilização.
Em agosto de 1905, quando nos preparávamos para prosseguir, como ajudante do notável engenheiro Pedro José Versiani, os trabalhos da estrada, a partir da estaca Viminas, próxima do Rio Natividade, noticiava o jornal O Mucuri, sob o título “Ataque de Bugres”:
Entre as estações de Francisco de Sá e Presidente Pena, na Estrada de Ferro Bahia e Minas, foi no dia 9 deste mês atacada uma turma de trabalhadores que em um trolley percorria aquele trecho da linha.
Às seis horas e trinta minutos da manhã, ao chegar a turma em certo ponto encontrou sobre os trilhos galhos de árvores que supuseram ali atirados pelo vento e quando fazia a remoção deles foi inopinadamente atacada pelos bugres que se tinham emboscado em ponto próximo, dentro da mata.[ 1 ]
Essa investida contra homens civilizados não foi a última. O prolongamento dos trilhos da estrada, a catequese fundada, no Rio Suaçuí, pelos missionários, e a Estrada de Ferro Bahia e Minas confinaram a ação dos selvagens, e os postos de atração estabelecidos pelo Governo Federal completaram sua inclusão na sociedade dos trabalhadores.
A ponta dos trilhos avizinha-se de Colatina. Breve, o estardalhaço das locomotivas, com apitos curtos como assobios de tucano ou prolongados como ornejos de asno, com rangeres e remuneios de suas peças, afugenta a caça, alvoroça o indígena, reboa, ao longe, anunciando a penetração, Rio Doce acima, nas florestas virgens paludosas. Vai ser devassado o caudal em seu curso médio. Profundas alterações sofrerá a região.
Inauguradas, até Figueira, hoje Governador Valadares, as estações mineiras, cuidou o Governo Federal de criar postos de atração às tribos botocudas. Pacificadas estas, foram dominadas as matas desconhecidas. Na área por elas ocupada apareceram os agricultores, tiradores de madeira, exploradores de pedras coradas, pecuaristas e negociantes.
O abreviamento da exploração da região do baixo e do médio Rio Doce foi a conseqüência imediata da inauguração do tráfego da Estrada de Ferro Vitória a Minas. Outras mudanças testemunhamos: o saneamento de sítios como Lajão, atual Conselheiro Pena, Cuieté, Baguari, Pedra Corrida, Naque, Cachoeira Escura e outros, em que reinava o paludismo. Alguns desses lugares são atualmente cidades prósperas, saudáveis.
Concorreram para o saneamento as queimadas. Vimos o fogo carbonizar gigantes troncos de árvores seculares, labaredas nelas se enroscarem, como serpentes endoidecidas, subirem e projetarem-se além de suas grimpas. Estarrecemo-nos, diante da queda do velho jequitibá devorado pelo incêndio, que lhe destruiu a base, ou ante a peroba oca, cujo âmago carcomido vomitava ao céu, como conduto vulcânico, gases incandescentes. Espantamo-nos com a rapidez com que juncos, tábuas e ciperáceas se transmudavam em cinza e como as taquaras, de princípio, apenas crestadas, davam, depois, estouros de protestos aniilando-se.
Após a devastação ocasionada pela carreira das chamas desembestadas, alguns troncos ficavam ainda fumegando. A terra havia recebido o batismo do fogo destruidor. Outras calcinações durante anos viriam. O solo empobrecia-se. A erosão aumentava. A fauna decrescia.
Provinham os incêndios, diziam, das locomotivas fagulhentas e dos cigarros das turmas de conserva. Certo, porém, é que o colonião era semeado regularmente e as manadas, que com ele se empanturravam, enricavam os seus donos. Serras, como a do Ibituruna, perderam suas belezas naturais. Os zebus bem nutridos, soltos, passeiam por elas sobranceiros. De Governador Valadares para cima muita madeira foi extraída e convertida em carvão. A indústria assim o exigiu.
Os novos aspectos da região causados pela abertura ao tráfego da Estrada de Ferro Vitória a Minas decidiram-nos a recordar, neste modesto livro, as dificuldades enfrentadas e vencidas para construí-la, a ação perseverante do trabalhador nacional, bom, ordeiro, ativo e resignado, a abnegação dos técnicos, o meio social equilibrado e a alta visão e o patriotismo dos diretores da velha Companhia Vitória a Minas.
Não é técnico o nosso trabalho e, por vezes, quando a técnica o ameaçou procuramos afastá-la, limitando-nos, apenas, em tangenciá-la. Memoriamos fatos, passagens, ocorrências, sem recorrer a notas ou apontamentos porque não os possuímos.
Sucintamente descrevemos o Rio Doce no momento exato em que a locomotiva arfando dele se aproximava. Suavizamos a descrição do caudal, desde Regência até a foz do Piracicaba, apanhando aqui, ali e além fiapos da crendice popular, do linguajar dos barqueiros e do narrar dos sertanejos, que julgamos preciosos. Recolhemos quadros, cenas e panoramas, que jamais se apresentarão porque o meio se transmudou.
Em síntese assinalamos a presença do botocudo, ora procurando-nos, pedindo alimentação, ora atacando-nos, rejeitando mantimentos.
Por último, expomos o regime de trabalho da Companhia Vitória a Minas, balda de numerário, para construir a ferrovia, que trouxe ao porto de Vitória a primeira remessa do minério do Cauê.
_____________________________