Estrada de Ferro Vitória a Minas
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CAPÍTULO VII
O Chefe despede-se. Revisão de projeto. Compressão de dispêndios. A construção da estrada empolga a todos. O café das quinze horas. Comentários. Críticas aos “bitolinhas” e à Diretoria. Diligências máximas. Obcecados pela profissão. A estação de Colatina. O Pinga-Fogo. A borrasca. “Baiano custa ter medo.” Operários estrangeiros gungunam. Pagamento atrasado. A pescaria. “Estou muito preocupada.” Boatos. Pretendente nervoso. Cavalheiro de respeitável sociedade. A agourenta. Está solene. “Agora ou nunca.” “Que boa lembrança!” “Essa vale!” Deixam de ser amigos. Método impiedoso. Caçada interrompida. “Seu doutor, em bugres não se confia.” Vasto programa de trabalho. |
Depois de haver o Dr. Pedro Versiani assistido à terminação do levantamento das secções pelos auxiliares, manifestou vivos reconhecimentos ao Sr. Antônio Elias, abraçou-o e seguiu cavalgando, beirando a direita do rio. Ao Amorim confiou o transporte da bagagem disposta convenientemente na récua alugada. Seu regresso foi menos acidentado do que o nosso, porque já tinham baixado as águas dos rios e os dias estavam estiados.
Em Porto da Esperança apresentou-nos condolências pelo trespasse do meu cunhado.
Descemos para Colatina no vapor Milagres. Aí ficamos, e o Dr. Versiani com os auxiliares prosseguiu. Em Vitória dissolveu-se a turma. Do Dr. Pedro Bosísio levou uma carta propondo ao primeiro engenheiro nossa designação para ajudante técnico da secção de construção por ele chefiada.
A memória do inesquecível e querido amigo e bondoso chefe deixamos, aqui, registrada, nossa gratidão imensa e a saudade, ainda não amortecida, daqueles dias de atividade singular e de ensinamentos, que muito nos serviram.
Naquele lapso de um semestre vivemos de favores. Recebemos-los do Sr. João Buriche e família, do primeiro engenheiro Fernando Esquerdo, e da família Bosísio. Fomos-lhes grato e recordamos enternecido suas bondades.
A nossa faina transmuda-se, porque se modificam nossos encargos. Assoberbam-nos montes de projetos, de cadernetas, de plantas e de perfis que devem ser examinados minuciosamente. Este trabalho tem por fim não só arrumar o arquivo da secção como possibilitar novos estudos de que resulte diminuição no orçamento adotado. Coube-nos, em conseqüência, a tarefa dê uma revisão geral dos planos já em execução ou prestes a serem realizados.
Progride, diariamente o preparo do leito da estrada. Avança, resoluto, ao Rio Doce, onde se esbarrara em pedreiras, que olham para a Ilha dos Barbados, as quais, dinamitadas, cederão à exigência do estendimento dos trilhos. Urge, todavia, que se reexaminem as plantas e o projeto do traçado refazendo-o, e isto muito agradará aos diretores da Companhia, se se conseguir baixar o custo da escavação, na rocha dura de trabalhar.
Percorre-se, então, nova linha de exploração; levantam-se secções; no escritório desenham a topografia do terreno e projetamos o novo traçado, em que as condições técnicas podem não ser recomendáveis, mas o volume de pedra a ser extraído é menor do que o do primitivo projeto. A revisão desses estudos é louvada, é submetida à aprovação do primeiro engenheiro e logra assentimento.
Vingado o trato de rochas primitivas afloradas, seguem patamares e rampas brandas até Colatina, mas a chegada nessa vila apresenta cortes de abertura dispendiosa, além de muro de arrimo e desapropriação de imóveis. Mais uma vez se modifica o traçado e a variante caracteriza-se por um trecho de nível intercalado entre aclive e de:clive intensos e, depois, de segundo patamar, onde será construída a estação, é ainda acarinhada uma rampa, antes da travessia do Rio Santa Maria.
E altera-se, deste modo, o projeto da construção da estrada por ,necessidade de diminuição de despesas, e a Companhia, sem recursos, mendiga o pagamento vencido da garantia de juros, enquanto o trabalhador, o operário, o engenheiro, o médico e o fornecedor se debatem nas angústias periódicas de um mal freqüente e irremediável — a tardança na remuneração dos serviços prestados.
Também se revêem os planos das obras-de-arte. Cotam-se de novo as encostas das margens das ravinas, dos córregos, dos rios e de seus álveos. Fazem-se sondagens, examina-se o solo e o subsolo, avaliam-se as escavações. Com estes elementos desenhamos novos mapas, organizamos outros projetos, confrontamo-los com os aprovados e, se do novo orçamento advier economia, submetemos o conjunto ao exame e à apreciação do chefe da Secção que, com ele concordando, o remete ao primeiro engenheiro para o seu “aprovo” e o do engenheiro-fiscal.
Por uma revisão dessa natureza passaram todos os projetos de bueiros, pontilhões e pontes de Barbados a Santa Joana, o que, aliás, foi a praxe, que encontramos, estabelecida na construção da estrada, que prosseguia, com tenacidade assombrosa, num regime comprimido pôr dispêndios tão exíguos que resvalavam quase na avareza. E é nesse sistema de trabalho de tamanhas aperturas que, em 1905, são inauguradas as estações de Fundão, Pendanga, Lauro Müller e João Neiva, e, em 1906, as de Acioli, Baunilha e Colatina.
Placitados os projetos das variantes e locados, desenhamos o perfil, traçamos o grade definitivo, delimitamos os cortes e aterros, calculamos os elementos da caderneta de terraplenagem, e nesse delineamento vertical íamos perfilando, mensalmente, as cores convencionadas.
Naqueles dias de brava atividade na instalação dos serviços, na margem do Rio Doce, alentava-nos o ânimo, quando notávamos que o chefe da Secção, em seu amor elevado pelo trabalho, mais se exaltava e se rejubilava, à medida que as dificuldades desapareciam diante de sua orientação segura, de providências adequadas. Nessas ocasiões seu rosto desanuviava-se, seus olhos brilhavam e radiavam clarões de felicidade. Suas vitórias relampagueavam e, enfim, despontavam. E todos se imaginavam ditosos com os sobejos que efluíam da boa sorte do respeitável dirigente.
Ferimo-nos de espanto quando recebido, cavalheirescamente, em Lauro Müller, pelo Dr. Pedro Bosísio, reparamos em que os temas referentes à construção da estrada bedelhavam em tudo, devassando palestras familiares, cerceando os demais assuntos e substituindo-os. Em Colatina, talvez, mais se haja arraigado essa prática. Geralmente, ali, todos serrazinavam.
Se, ao escritório da Secção, chega esbaforido um estranho, e noticia haver divisado o soçobrar de uma canoa, nas proximidades de Barbados, surge, de inopino, a hipótese de se terem atarantado os remadores com os tiros de dinamite nas pedreiras e mupicando, desorientados, encontraram um escolho, que causou a submersão.
E, a propósito, narram-se fatos semelhantes, que produziram naufrágios; apontam-se os cuidados, que devem ter os trabalhadores nas escavações, para evitar acidentes; ressalta-se a incúria de feitores responsáveis pela vida dos operários; elogiam-se os previdentes, e relembram-se desastres ocorridos nos trabalhos de construção da estrada de ferro.
Porque, no pequeno intervalo do café das quinze horas, alguém alude à queda de um edifício estampada em jornais do Rio, vêm à baila diversos casos de pontes provisórias ou definitivas aluídas, de aterros danificados, de cortes entupidos, e de blocos de pedra rolados sobre a linha. Se, porém, a narração da imprensa reporta-se a um incêndio, que destruiu um quarteirão de certa rua, outro acode, prontamente, com a observação de não se compreender por que ocorra, com tamanha freqüência, tal fato na Capital da República, onde não há, como aqui, locomotivas, que afogueiam pastagens, matas, pilhas de lenha e até dormentes, em que os trilhos estão pregados. E os comentários generalizam-se, intensam-se, e recordam-se os prejuízos dos moradores nas cercanias da linha, já inaugurada, causados pelo fogo das máquinas, ou ateado por trabalhadores relapsos e inconscientes.
Ouve-se um aboio procedente de vaquejador distante, e surde uma voz consternada, que vaticina:
— Pobres bois, que serão atropelados, feridos ou mortos pelas locomotivas quando a via férrea for inaugurada! — E prossegue: — A Companhia só devia entregar a linha ao tráfego depois de cercada, mas o serviço é feito com a dupla recomendação: urgência e economia. Adia-se a feitura da cerca, por não haver arame farpado, e os comboios começam a rodar e a pilhar brutos impassíveis, que estirados no leito da estrada ruminam. O proprietário reclama pelos prejuízos, esgrime em seco, porque se esgueira a companhia pelo pretexto de não haver, ainda, recebido os mourões para a defesa da linha, conforme o ajuste com ele.
A matéria é vasta. Diversos opinam. Rememoram-se fatos. Vacas leiteiras, esmagadas pela composição de um trem de madeira, e que deixam crias ameaçadas de morte. Récua de bestas de carga aflitas, em disparada, abandonam os tropeiros aturdidos, atiram-se pelo aterro abaixo, ou entram numa ponte e estouram membros e entranhas, ficando os fardos estragados. Viajantes desmontando, depressa, de suas cavalgaduras, que escapam ofegantes pela estrada, enquanto o trem apita, incessantemente, aumentando o medo das desventuradas azêmolas.
A enfiada das ocorrências na circulação dos trens não terminaria, se não houvesse escoado o tempo da merenda e, por isso, escriturários e auxiliares não tardam, e retornam às tarefas.
Durante as pequenas e raras folgas, os engenheiros, os técnicos, cavaqueiam animadamente. O assunto, porém, das tertúlias é um só: a construção da estrada, ou o que se relaciona com ela.
Censuram pela milésima vez o traçado da linha, mormente no trecho da secção. Aplaudem as variantes já estudadas e aprovadas. Comentam as plantas das pontes sobre os rios de Santa Maria e de Santa Joana. Explicam o abandono do projeto primitivo e a esconsidade de certo bueiro, adotado pelo chefe da Secção que, presente, se justifica, produzindo argumentação lúcida para concluir declarando ter havido poupança apreciável no custo da obra. Fundamentam a supressão de muros de arrimo em razão de conveniência econômica. Reconhecem erros, que cometem no preparo do leito da estrada, quando empregam aclives e declives máximos e raios mínimos de curva, que reduzirão o poder de tração das locomotivas, embora seja o projeto aprovado pela Fiscalização, que respeita as condições técnicas estipuladas na concessão da linha.
Fazem críticas vigorosas sobre as estradas de bitola estreita e as concessões outorgadas pelo governo, que se louva, para concedê-las, em pareceres de colegas “bitolinhas”. Apesar disso estão construindo, com entusiasmo, uma “bitolinha”, que vai ensejar, mais tarde, a Salm de Miranda um registro apropositado sobre os seus comboios:
Os trens de carga, resfolegando nas rampas fortes, que de tão forte diziam-nos condenadas pela boa técnica ferroviária, voltando três e quatro vezes a retomarem pressão para subir, marcando passo a Catita e o Catuá… |
Lastimam a supressão de túneis nas gargantas de cotas elevadas e a anuência a um grade, que mais parece extravagante montanha-russa, atentados desmedidos não só à técnica como, também, às possibilidades econômicas do tráfego da estrada, que, por certo, viverá em eterno regime deficitário. Condenam as modificações, no trecho da secção, empreendidas por eles, que pioraram o projeto sancionado. Ressaltam que tais mudanças reprováveis são inspiradas pela diretoria da Companhia, forçada pela escassez de numerário, que lhe não permite enfrentar obras dispendiosas dentro de rigorosas normas científicas.
Esmiúçam as notícias espalhadas por toda a parte, afirmam que o engenheiro Duque Estrada iniciará os trabalhos de outra secção, e que o excelente grade, de Mascarenhas a Baixo Guandu, será alterado por motivo de fraqueza de haveres e, ainda, porque a Companhia tem pressa de inaugurar a estação de Colatina, no fim do ano, e a Parada de Porto Belo e as estações de Mailasque, de Baixo Guandu e de Aimorés em 1907. Tal mudança, quebrando a maior extensão de patamar a partir de Porto Velho, dizem, é um crime. O Duque Estrada vai submeter-se a essa exigência desarrazoada da Diretoria. E assim vamos, embora constrangidos, modificando e sacrificando o traçado, por amor à economia reiteradamente recomendada.
Em ocasião de lazer em que se agrupavam empregados da construção em Colatina — auxiliares ou técnicos — podia-se ter a certeza de que versavam somente um assunto — o serviço da estrada. Habituávamo-nos, devagar, àquelas conversas rotineiras e acabamos por não as estranhar mais e por adquirir, também, o costume de cogitar, refletir e falar unicamente nas coisas concernentes ao notável cometimento.
Havia três partes do traçado, naquele ano de 1906, sob a direção dos engenheiros Emílio Cunha, Duque Estrada e Pedro Bosísio, cujo tráfego seria inaugurado. Paulatinamente fomos tendo contato com os dois primeiros e verificamos que também eles estavam empolgados pelo grandioso empreendimento, e o mesmo acontecia aos seus auxiliares. Todos pertinazes em exaltado cumprimento de deveres, levado ao exagero, obduraram suas consciências, criando nelas obrigações despropositadas, que eram rojadas de suplícios. Imaginavam, sempre, apoucados seus esforços, embora os alçassem em diligências máximas.
Eram três punhados de brasileiros, abrasados de amor aos trabalhos da construção da Estrada de Ferro de Vitória a Minas, imbuídos de tamanha fé no êxito de suas atividades, que renovavam, cotidianamente, o milagre de executar, quase sem dinheiro, uma empresa crivada de dificuldades espantosas.
Um misticismo sublime e santo apaixonou-os, exuberou-os, e eles batalhavam ardorosamente para vencer, e as vitórias mais os estimulavam. Mourejavam no encargo pesado tendo por maior aspiração assentar o par de trilhos, que assenhoreava as planícies, serpenteava as encostas, atravessava os caudais e, quando inauguravam as estações, sentiam-se venturosos.
Eram uns devotados. Para eles só um mundo existia — o da estrada em construção. Viviam nele, dele e para ele.
Esses dedicados aos serviços da Companhia, tão aferrados eram em sua defesa, que parecia quererem erigi-la na dulcinéia querida de sonhos delirantes de ferroviários extremamente zelosos em realizar a obra valorosa e patriótica — a construção da estrada. Eram técnicos absorvidos na observância exata de compromissos contraídos e obcecados pela profissão, no pomposo descrever de ilustre ensaísta francês.
Certa manhã saudamos o chefe amigo e comunicamos-lhe:
— Está completamente cicatrizada a ferida, que tanto nos martirizou, graças a curativos diários do Dr. Louis Jouffroy, durante mais de dois meses. Vimos, por isso, declarar-lhe que já podemos ajudá-lo a fazer outras coisas.
Muito satisfeito nos felicitou pela cura e disse-nos:
— O seu primeiro serviço externo será o de locar a estação. A turma de pedreiros, que vai construí-la, estará disponível, dentro de alguns dias, e o senhor responderá pela obra. Recomendo-lhe executar a planta rigorosamente, porque não desejo que o primeiro engenheiro e o fiscal federal façam objeções estribados em não se haver cumprido o projeto. Outros trabalhos lhe serão ainda distribuídos, e toda a parte técnica no escritório continuará sob sua imediata responsabilidade, porque o senhor está dando boa conta do recado.
No dia imediato, ordenamos a roçada da capoeira e locamos a estação. A vila edificada aquém, no espigão, à margem direita do Rio Doce, desde então passou a chamar-se Colatina Velha e a que, rapidamente, foi nascendo, nas vizinhanças da estação, denominou-se Colatina Nova. A 20 de dezembro daquele ano, 1906, inaugurou-se o novo trecho construído até ali.
Perto da entrada do Santa Maria no Rio Doce, num vargedo em parte inundável, durante as cheias desses caudais, formiga uma população constituída de malandrins, desordeiros e jogadores, que habitam barracas desengonçadas. Para ali também afluem marafonas bulhentas, desbocadas e desvairadas. Tais magotes de desclassificados improvisam o arraial de duração efêmera, que desaparecerá quando for inaugurada a estação, para ressurgir noutra parte da linha em construção.
Essa legião de indesejáveis certamente se orgulha de sua capital de delinqüência alcunhada de Pinga-Fogo, epíteto condizente com a sua finalidade escandalosa.
O morigerado trabalhador da estrada, o garimpeiro honesto e o operário honrado repelem a execrável aldeia, que é um pesadelo para o chefe da Secção.
É freqüente na manhã a participação do administrador: — “Seu doutor, no Pinga-Fogo houve um assassínio por causa de jogo — o criminoso fugiu”; ou, “foi esfaqueada uma pobre mulher, que está agonizando — o culpado desapareceu”; ou, “duas rameiras brigaram e por amor delas, também, dois rufiões lutaram — estão todos feridos, vou dar aviso ao médico”; ou ainda, “aqui lhe trago este maltrapilho. Furtou. Não sei o que devo resolver sobre ele”.
E, dia-a-dia, o Pinga-Fogo cresce. O número de seus ranchos tresdobra, porque a matulagem recebe continuamente novos comparsas.
Essa multidão de elementos alheios à construção, e que a segue causando-lhe tormentos, compara-se com a praga das “muquiranas” repulsivas, que deslustrava os velhos exércitos acampados. Com suas acometidas inevitáveis conformava-se, bem-humorado, o General Osório e advertia ser a “muquirana” a peça obrigatória do uniforme.[ 153 ] Assim, também os chefes de secção condescendiam, com os pinga-fogos, por ser um mal inextirpável.
Já se escoavam os dias da segunda quinzena de março e, num deles, abafadiço e de temperatura escaldante, à noite, zuniu rijo o vento, ribombou de apavorar o trovão e relampeou tão incessantemente que permitiu se distinguissem os borbotões de água barrenta, que gorgolejante descia as curtas ruas enladeiradas de Colatina Velha.
Passam as horas procelosas e a manhã refulgente sobrevém e realça os lindos panoramas do vale magnífico. E chegam celeremente, ao escritório da Secção, notícias atropeladas.
Folhas de zinco desprenderam-se das coberturas de alguns ranchos, foram arremessadas à distância, e trabalhadores com suas famílias ficaram desprotegidos. Aterros correram, cortes entupiram-se. Bueiros de pequenas ravinas atulharam-se. Postes da linha provisória de telefones tombaram e o fio partiu-se. Barracas do Pinga-Fogo não escaparam da calamidade; há diversas cercadas de águas e descobertas, outras submersas. E toda aquela ralé descomedida está desapontada, e escolhe lugares mais altos, nas imediações, para restabelecer as choças inundadas.
Diante da divulgação de tais acontecimentos resolveu o chefe da Secção percorrer os trabalhos a seu cargo. Acompanhamo-lo. Enxergamos estragos, anotamos prejuízos por toda parte. Consertando seus abrigos, nos acampamentos, os trabalhadores pilheriavam. Esbofavam-se em relatar cada qual o terror dos outros. Estavam prazenteiros. Poucos eram os escabreados.
Para enxugar, a roupa daquela gente balouçava estendida nos varais de cipó do abarracamento. Ouvimos a um dizer:
— Vamos rapaziada, faz valetas, apanha zinco espalhado, repara casebres e espera, firme, que a borrasca pode repetir-se.
E, de pronto, outro redargüiu:
— Não fale assim, não agoure. Basta a triste e horrível noite que passamos…
O chefe vistoriou todo o trecho e ia providenciando, dando instruções ao administrador e aos apontadores. Urgia que os consertos fossem terminados para novamente se ritmar o serviço.
Um crioulo magro e loquaz, com filhos pequenos rodeando-o, labutava com a mulher, afincadamente, na restauração da barraca, quando o chefe o saudou e perguntou-lhe:
— Teve você, Elesbão, medo da tempestade?
— Ah! seu doutor, medo eu não tive. Baiano custa ter medo, mas a água ensopou tudo; a enxurrada carregou os mantimentos e eu e a família, que já estamos escanifrados, vamos ficar mais ainda entrezilhados. O apontador não me há de querer dar vale, e o encarregado do armazém não fornece gêneros sem vale e, seu doutor, que será destas crianças?
— Darei ordem ao apontador para lhe fazer adiantamento. Não deixarei de socorrê-lo e você continue a ajudar-me. Conto com você.
— Pode contar, seu doutor. Baiano, quando é bem tratado, não mente.
Os pedreiros, quase todos portugueses, italianos e espanhóis, respeitavam os engenheiros. Receberam-nos com muitas atenções. Conformavam-se com os prejuízos causados pelo temporal. Com o administrador, porém, usavam linguagem diferente da dos brasileiros, gungunavam, explodiam na sua repulsão, ou vociferavam contra a Companhia dizendo que se ela desse melhores instalações, decerto, não estariam reparando tugúrios ordinários. “Mas não há dinheiro. O pagamento está sempre atrasado. O armazém não tem o que se compre. Falta o bacalhau, some o macarrão, desaparece o trigo, não há azeitonas e óleo. O doutor é boa pessoa e por causa dele a gente vai remendando estas joças”, como lhes chamam os negros, nossos serventes.
Português laborioso, leal, arrebatado, exigente e enérgico, o administrador arrepiou, resoluto defendeu a Companhia e arrasou os reclamantes, os magnatas do serviço, como os classificou, e informou a ocorrência ao chefe que lhe ponderou:
— É real a paga tardia do salário e não se irrite quando eles asseverarem isso. Quanto à alegação de escassez, ou falta de víveres, corra os armazéns e examine se há desfalques de gêneros para se reclamar ao gerente, que, ultimamente, me avisou de que o abastecimento de mercadorias estava regularizado e não havia deficiências.
Retornamos a Colatina e o chefe, porque proveu ao restabelecimento dos trabalhos, observou-nos que os danos sobestiveram à sua expectativa e que o Joaquim Pinto de Miranda, o brioso administrador que tanto se esforçava por aumentar as obras, reconduziria todas as turmas à faina habitual no dia imediato. E assim aconteceu.
Em dias subseqüentes ao do terrível temporal há chuviscos e aguaceiros, mormente à noite, e o Rio Doce enche e, com o gorgolejo das águas espumantes, se ensoberbece desafiando o denodo dos canoeiros destemerosos, que não se arriscam, prudenciam.
Os barqueiros dizem-nos que as chuvas são gerais e, por isso, as águas crescerão ainda muito. As do Santa Maria e do Santa Joana pouco alteram o volume do Rio Doce, mas estão caindo, também, chuvas abundantes nas bacias de seus tributários de longo curso. e os contingentes de suas cheias não chegam de imediato. A enchente de São José, afirmam, é a última do primeiro semestre de cada ano. Depois há, apenas, repiquetes de nenhum interesse.
Atentamos para diversas pessoas que estavam na margem do rio e certificamo-nos que cada qual, com uma cana de pesca ao anzol, de quando em quando tira da corrente um peixe — a cumbaca ou o judeu — afamado pelo sabor delicioso.
Aproximamo-nos dos pescadores. Agradamo-nos da diversão e. também. começamos a dar. de espaço, puxadas rápidas na vareta que sustinha a armadilha com o engodo. O desporte encantou-nos e só sentimos o nosso desajeitamento para despegar o peixe do anzol.
A pescaria distraía apreensões da Senhorinha Olga Calmon, que participava do grupo e que, discretamente, nos perguntou se havíamos estado com o Sérgio na véspera. Em face de nossa negativa, revelou-nos: “…O senhor é nosso amigo e precisa saber — ele incumbiu o Dr. Bosísio de me pedir em casamento. Temo que o papai não dê o consentimento e, se o fizer, será em atenção ao emissário. Estou muito preocupada. A recusa intimamente me acabrunhará e não me conformarei com ela, porque a minha alma grita contra essa decisão.
Decorrem os dias e o Dr. Pedro Bosísio não se decide a avistar-se com o Coronel Alexandre Calmon. Difere a embaixada, que muito o sensibilizou, talvez por não confiar plenamente em seu êxito, e isso enseja que bichanem as comadres, a princípio; boatejem os bisbilhoteiros, depois; e finalmente, que a notícia do próximo noivado se corporize e espraie-se em explanações reticentes. E acreditam uns que o pedido não será deferido, entendem outros que o Coronel, coagido a ceder pela consideração da amizade para com o amigo íntimo, não vacilará, e o acontecimento será festejado com desvelo e solenidade, e há, ainda, os que afirmam: “o Xandoca não dará o sim, nem o não, deixará o tempo andar”.
Não se apressa efetivamente o Dr .Bosísio a ir fazer a visita protocolar. Deixa, como homem de prumo seguro, que os comentários culminem em juízos dúbios, ou decisivos a seu respeito. A protelação premeditada do mensageiro sagaz acaba calando as bocas dos abelhudos. E só então se resolve a desempenhar a missão, que lhe é grata, e honrosa, e reclama muita habilidade. Sente, porém, que os que lhe confiaram o difícil encargo só acariciam o triunfo completo, e está apreensivo.
Escolhe uma ocasião em que há máxima cordialidade com o coronel para conversar sobre o assunto, e anuncia, de véspera, sugerindo-lhe a hora, uma visita familiar.
Durante o almoço o lar do Dr. Bosísio só pratica no compromisso do casamento, que vai ser combinado, à noite, com o Coronel. O Sérgio, presente à mesa, está nervoso, esperançado e loquacíssimo, e o anfitrião está circunspeto, e evidente preocupação reflete-se-lhe no rosto, que exibe vincos mais acentuados.
Nesse dia, também, no escritório da Secção, de vez em quando, brotam referências ao próximo noivado do Sérgio, augurando-lhe todos um bom acolhimento por parte do Coronel. O pretendente, pensam, merece que consintam em suas justas aspirações. Honesto, inteligente e trabalhador como é, triunfará na luta pela vida assim como já venceu na preferência da distinta jovem, que parece amá-lo deveras. Ser pobre, ou não ter pergaminho, não embacia o renome de ninguém. O rapaz tem amigos e admiradores, que desejam vê-lo feliz. É subgerente dos armazéns, e uma negativa à sua pretensão acenderá maior simpatia pela sua causa, e ele passará por vítima de explicável opressão. É, pois, opinião unânime de auxiliares e escriturários não haver cabida na recusa ao pedido, que o chefe vai fazer.
Ao jantar enevoa-se ainda mais a atmosfera em derredor da mesa do que ao almoço. Não se esvaecem as dúvidas, por isso, formulam desfechos. Ciciam que a Senhorinha Olga está aflita, o que denuncia sua incerteza na transigência do pai.
Anoitece e o Dr. Bosísio veste-se de camisa branca de linho, com refolhos discretos e colarinho alto, engomado, alisado e reluzente, guarnecido de belo laço de gravata preta com forma de borboleta; de costume de sarja de lã da cor do ébano, composto de calças e fraque, adido a um colete de gorgorão branco. Todo o conjunto, rigorosamente talhado e bem cosido, lhe dá uma postura de altíssima distinção, em que os sapatos de verniz e as finas meias de seda rematam e distinguem o perfeito gosto do cavalheiro de respeitável sociedade.
O Sérgio e os funcionários da Secção extasiam-se perante o Dr. Bosísio, quando reparam em sua elegante e distinta indumentária, que realça seus dotes diplomáticos e recordam, como contraste, a passagem de outro ilustre engenheiro da Companhia que, convidado por Dr. Muniz Freire, para assistir a uma recepção em palácio, lá se apresenta de fraque e botas insinuadas nas calças. Habituados a lidar com o chefe usando roupa de brim comum, sem preocupação de galhardia, não suspeitam que o seu guarda-fatos oculte fatiota de tamanha pompa, de tão apurada elegância.
Com um chapéu modelado em forma de capacete, munido de uma bengala de brejaúva de castão de ouro e biqueira de metal, para se defender de possíveis investidas de cães errantes parcializados com pirilampos luciluzentes que os rodeiam descrevendo trajetórias fantásticas, dirige-se o Dr. Pedro Bosísio à casa do Coronel Alexandre Calmon. Durante o percurso, por certo, antegoza o prazer de sua vitória e o júbilo, que propiciará ao amigo, que já preliba os afagos da encantadora desposada. No céu as estrelas tremeluzem ostentosamente e, da outra banda do Rio Doce, na mata fechada, ressoa, de longe em longe, o pio de um macuco empoleirado. Lá embaixo, no fim da rua enladeirada, percebe ele, de um lado, os borbulhões das águas do caudal, que no álveo espelha os astros brilhantes e iluminados e, do outro, divisa a luz forte de magnífico lampião belga. Chega, enfim, à porta do Coronel e, quando bate as palmas chirria na escuridão, pousada na cumeeira do prédio da escola, uma coruja e o Dr. Bosísio, homem civilizado, que chasqueia das superstições populares e as combate, recorda ter ouvido a um trabalhador nordestino: “a coruja quando canta está rasgando a mortalha”[ 154 ] e sorri da crendice, porém, de inopino, reflete e quase concorda em que a agourenta lhe vaticina sua derrota.
— Entre, Dr. Bosísio. Estamos eu e minha senhora à sua espera — disse o Coronel, e a seguir, depois dos cumprimentos: — Noto que o senhor está solene, dê-me por favor o chapéu-coco e a bengala.
E depois de assentados, a visita e os donos da casa, o Coronel passa a discorrer, alegremente, sobre diversos objetos: o progresso dos cortes e aterros do leito da estrada, a construção dos bueiros, as instalações para o início das fundações das pontes, o adiantamento das obras da estação, o transporte de gêneros por via marítima, fluvial e por tropas, e a boa quadra do ano, sem chuvas, que se atravessa. E sempre destacando e louvando os esforços e a sábia orientação do chefe, passa de um assunto para outro, sem pausa, rapidamente. O Dr. Bosísio cedo compreende que ele, com finura, evita que o amigo, o visitante, logre o ensejo para iniciativa de qualquer tema e, intimamente, começa a admitir o malogro de sua missão, e o Coronel não dá folga, fala, fala sempre enaltecendo o tino administrativo do profissional competentíssimo a quem o Rio Doce, a quem Colatina vai dever, sem tardança, a inauguração do tráfego ferroviário.
Deu o relógio dez horas e a Senhora Calmon anuncia gentilmente:
— O chá está servido. Vamos para a mesa.
Após haver saboreado a deliciosa infusão e os excelentes biscoitos de goma, elogiando-os irrestritamente, o que muito aprouve à anfitrioa, o Dr. Bosísio pensa — “agora ou nunca” — e dispõe-se a fazer o pedido. E antes que o Coronel se profunde em novas explanações, ele diz-lhe qual o principal objetivo de sua visita e ressalta os ótimos predicados do pretendente à mão da Senhorinha Olga.
A fisionomia do Coronel Alexandre Calmon levemente se contrai e escuta, com muita atenção, os louvores, ao Sérgio, do Dr. Bosísio. Cumprida a incumbência o engenheiro aguarda a deliberação, que não é cogitada, porque o Coronel faz uma hipótese imprevista e atordoante. Sorri, depois do sorriso passa à risada franca e desta à gargalhada e, finalmente, exclama: — Dr. Bosísio, sei que o senhor gosta de gracejar e como gracejo não me aborreço, porque o senhor me desopila o fígado. Que lembrança! Que boa lembrança! Essa vale!!…
E o Dr. Bosísio, atônito, vence, entretanto, o seu enleio, o seu desapontamento, afirma-lhe que não está brincando e esforça-se por mostrar que é incapaz de galhofar com um amigo, de troçar dele, a quem tanto considera, mormente em se tratando de matéria de tamanha relevância por ser relativa à família. Que faça o Coronel, o amigo, outro conceito a seu respeito. E nessa toada desenvolve, fundamenta e rebusca infinitos argumentos.
O Coronel, por sua vez, reconsidera o juízo emitido e promete:
— Dar-lhe-ei a resposta mais tarde. Vou entender-me com a família. Despedem-se amistosamente. Na residência do Dr. Pedro Bosísio o ocorrido é narrado, comentado e discutido até alta madrugada. O Sérgio fica desalentado e, talvez, o Dr. Bosísio se lembre, contrafeito, da jetatura. do agouro e da casquinada estridente da coruja malfazeja.
Correm os dias e o Coronel não dá a resposta prometida. Urdem-se as trancinhas. Os mexeriqueiros entram em atividade e a amizade entre os dois chefes enfraquece dia a dia. Passados alguns meses apenas se saúdam. Deixam de ser amigos.
O Sérgio continua como subgerente dos armazéns e nunca soubemos que o Coronel o detraísse. A princípio muito se amargura. Pouco a pouco se conforma com o sucedido e persevera no afeto que dedica à prendada senhorinha. O casamento realiza-se depois da retirada, em 1908, do Dr. Bosísio da Companhia. Foram felizes. Ele faleceu em 1950 e ela reside no Rio, respeitada e amada pelos filhos. Foi esposa virtuosíssima. Da amizade do casal sempre nos orgulhamos.
As atividades na construção da estrada não deparam divertimentos nem folgas. Faz apenas dois decênios que se extinguiu a escravidão dos pretos. Trabalha-se ainda de sol a sol. Ao alvorecer, os triângulos de vergalhão de aço são percutidos e vibram estridentemente. É o sinal de despertar para o comparecimento ao serviço, que prosseguirá às seis horas. Não há sequer vaga aspiração à lei de redução de horas de trabalho, nem à de amparo em casos de acidentes e muito menos à de férias. O Estado não havia decretado ainda leis regulando o trabalho de operários.
Engenheiros e demais servidores da Companhia cumprem seus deveres segundo as ordens emanadas de seus dirigentes e, os que não se conformam com certas exigências ou deficiências, não permanecem, retiram-se espontaneamente ou são dispensados.
No país, até aquela época, só havia existido um arremedo de organização de trabalho que se deseja esquecer porque, adotado pelos senhores de escravos, não mais condizia com a época; entretanto, é o resquício desse método impiedoso, em que o homem cativo não tinha direito, que parece ainda subsistir.
Nas grandes cidades, na Capital da República, por exemplo, as condições dos trabalhadores e operários não eram diferentes. As firmas comerciais abriam as portas dos estabelecimentos às seis horas e só as encerravam às nove da noite. Em Vitória, em 1909, quando instalamos a Prefeitura Municipal, tivemos que contrariar interesses de respeitáveis casas de varejistas e atacadistas, que se opunham tenazmente a que cumpríssemos a lei da Câmara Municipal, que determinava o fechamento das portas às oito horas. E quando resolveram obedecer, ainda, alguns patrões retinham seus empregados para terminarem as arrumações recomendadas.
No preparo do leito da estrada, em meio daquela faina rude, recordávamos, de quando em quando, o recanto espírito-santense em que nascemos. E das lembranças da infância, as que mais se corporizavam eram as pescarias, no ribeirão remansado, e a apreensão de pássaros em viscos, arapucas e laços, na capoeira vizinha.
A floresta da margem esquerda do Rio Doce, onde soavam os pios e a grasnada do passaredo de toda sorte e onde estavam os esconderijos dos animais silvestres, espicaçava-nos o desporte venatório e resolvemos excursionar aquela região.
Um domingo convidamos discretamente um canoeiro para nos levar à foz do Francilvânia depois do almoço. Em lá chegando dissemos-lhe que podia retornar à vila voltando àquele local decorridas três ou quatro horas, e fomos afastando-nos córrego acima, marginando-o, cautelosamente, na esperança de encontrar algum bicho a que atirar.
Teríamos distado do rio apenas quinhentos ou seiscentos metros quando ouvimos gritos seguidos e prolongados, tiros de espingarda e de dinamite. Compreendemos que nos chamavam e regressamos quando perseguíamos um jacu que, assustado, voava de galho a galho cacarejando. Respondemos ao chamado descarregando também nossa arma diversas vezes.
Numa canoa topamos cinco ou seis homens de carabina a tiracolo, providos de cartuchos de dinamite e um deles assim nos falou:
— A mando do Dr. Bosísio vimos buscar o seu doutor. O chefe ordenou-nos que não perdêssemos tempo e que tirássemos o seu doutor destas brenhas, porque o senhor está arriscado a ser vítima dos bugres.
— Rapazes, muito agradecemos a vocês e ao Dr. Bosísio o empenho de nos subtrair aos ataques dos índios; entretanto, os que habitam estes lugares são amigos, são mansos, são os do Capitão Nazaré.
— Seu doutor, em bugres não se confia. Na mata safam a roupa, ficam nus e viram as flechas contra nós. Além disso, os terríveis Crenaques erram também estas beiradas. Seu doutor, embarque, não afronte esta gente bruta.
Em Colatina o Dr. Bosísio recebeu-nos alegremente por nada de grave haver ocorrido. Havia ficado, disse-nos, muito preocupado e pediu-nos não fôssemos caçar pássaros ou outros animais na outra banda do rio, no Norte. Prometemos-lhe. A ocorrência foi largamente comentada. Julgaram-nos por moço imprudente, temerário, e repisavam a traição dos selvagens ao Dr. França Leite.
Progride normalmente o preparo do leito da estrada, a labuta diária vence dificuldades de toda sorte, e a correção de cada qual no cumprimento de deveres, pouco a pouco, é rotina louvável.
O rouquejar dos fogachos de pólvora nas pedreiras extrai lajões para o capeamento de bueiros, o cavoucar dos operários destroça rocha e o gabarito da estrada vai fixando-se vitoriosamente; o carrear de pedras para as construções de alvenaria acode à precisão dos pedreiros; o entupir das ravinas patenteia a atividade do garimpeiro valoroso; o abrir de valas e valetas protege cortes e aterros; o harmonizar de patamares, aclives e declives ressalta a técnica profissional; o transitar de burros, guiados pelas madrinhas dos pontos de carregamentos aos de descarrego, e vice-versa, avulta a utilidade do bruto ao homem; o registrar do ponto dos jornaleiros pelos apontadores, o fiscalizar do serviço pelo administrador, o vistoriar de todos os trabalhos pelos engenheiros, tudo, enfim, que condensa atividades, forma um conjunto maravilhoso, do qual se vai levantando a obra grandiosa construída por brasileiros que, informados sobre os apoucados recursos da Companhia, abunham sem constrangimentos, e festejam ruidosamente o assentar da cumeeira dos prédios das estações ou o inaugurar destas, porque as consideram como vitórias de seus esforços, de sua tenência, de sua tenacidade.
E se o ritmo dos serviços está regulado, se no escritório tudo se acha perfeitamente ordenado, é razoável que o Dr. Pedro Bosísio pense na data do término da sua tarefa do momento, e excogite o principiar de outra, e que a respeito colineie o seu pensamento explicando-o, em relatório minucioso, ao primeiro engenheiro. Este organiza com a Diretoria da Companhia um vasto programa de trabalho, que será adotado de Natividade para cima. Por ele a construção terá um chefe de divisão e residências quantas forem necessárias.
Desde logo fica resolvido que deixaremos o cargo que ocupamos na Secção de Colatina. Seremos promovido a engenheiro residente percebendo 580$000 e com o encargo imediato de instalar a Secção de Porto Belo, que será entregue ao engenheiro Emílio Cunha. Em seguida faremos o estudo do local da travessia do Rio Guandu, levantaremos o plano cotado correspondente e locaremos a linha até Natividade. Concluídas essas diligências iremos, em novembro ou dezembro, construir o trecho da terceira residência da primeira Secção a partir da vazante das Preguiças, situada três quilômetros além do Rio dos Quatis.
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NOTAS
[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]
Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.