Luís da Câmara Cascudo, folclorista. |
PREFÁCIO
Ser Giovanni Fiorentino, Il Pecorone, XIII.
O engenheiro Ceciliano Abel de Almeida era Reitor da Universidade do Espírito Santo quando fui seu hóspede, janeiro de 1955, dando um breve curso de Antropologia Cultural.
Alto, magro, sorridente, o gesto lento desenhava no ar os episódios inesquecidos de uma nobre e grande vida de trabalho, dedicação e alegria de servir. Fora na cidade do Natal diretor da Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte (Sampaio Corrêa atual), conhecendo e privando com as figuras familiares ao meu coração. Encanto ouvi-lo evocar toda a história de sua profissão, a estada no Rio de Janeiro, estudante pobre, lutando para abrir um breve túnel no granito das dificuldades imprevistas que o separavam da Escola Politécnica onde concluiu, excelentemente, seu curso de engenheiro. Qualquer outro desanimaria ante a montanha que o distanciava dos livros da Politécnica. Ceciliano Abel de Almeida abriu seu caminho como uma verruma, tenaz, teimoso, acima do desânimo. E não há criatura mais tranqüila, serena, com seu sorriso melancólico e a doçura das invocações do passado, tão presente para ele. Deus sabe como estudou, subindo o curso sem desfalecimento, degrau a degrau, quando tantos deparam fácil, rápido, cômodo elevador guindante e confortável para a elevação fulminante.
Engenheiro, continuou a luta procurando em que aplicar quanto aprendera. Foi servir na Central do Brasil, gratuitamente, para fazer-se necessário na constatação do seu esforço diário e útil. Ficou como “engenheiro praticante” no Engenho de Dentro, encarregado do Depósito. O diretor era o grande Osório de Almeida. Admirava Ceciliano, mas não podia encaminhá-lo para os cargos remunerados na construção do prolongamento da Estrada. Não o mandou para Cordisburgo porque as vagas eram preenchidas segundo recomendações do Presidente e do Ministro, catucados pelos políticos indispensáveis. Ceciliano ia fazendo a vagarosa aprendizagem do sacrifício, capitalizando decepções que não tinham a força de anoitecer-lhe no coração o entusiasmo pela sua profissão.
Finalmente, agosto de 1905, aceita um lugar de engenheiro na Companhia Vitória a Minas, lugar para explorar, locar e construir na mata margeante do Rio Doce, onde há árvores contemporâneas do Gênesis, e vagavam os descendentes dos Aimorés, bravios, desconfiados, famintos. Ceciliano aceitou e veio para sua terra ganhar 600$000 mensais sem direito a diárias, e devendo pagar sua montada e as despesas do rancho. Era assim há meio século, e Ceciliano aceitou, como um rapaz novo, sadio, borbulhante de esperança aceita ir para o fim do Rio Negro missionar Tucanos e Tarianas merencórios.
E “Os trilhos venceram as selvas” do Rio Doce. É uma frase que sacode a curiosidade leitora na taquicardia da emoção. Mas é a história dos engenheiros ferroviários, os pioneiros das matas, nomes que desconhecemos, e sem eles o Brasil continuaria hemiplégico, com áreas mortas de produção, membros ignorados para o movimento coletivo da vida nacional. Ceciliano Abel de Almeida é um destes valorizadores reais do Brasil orgânico. Ajudou a criar uma artéria condutora de sangue indispensável para a distribuição vital em toda a organização de uma zona antes povoada de assombrações, rondada pelas lendas do pavor.
Há neste imenso edifício nacional muita cariátide que não sustenta a si própria, Atlas de mentira, fingindo esforço desmedido no equilíbrio de pesos que ficam noutros ombros, anônimos e discretos. O autor deste livro é uma base verídica de sustentação. Uma coluna firme e sólida, plantada na terra da coragem, garantindo estabilidade, duração e segurança às paredes imóveis e à cúpula dominadora. Uma fábula moderna (Trilussa?) lembra que o mecanismo de relógio, dezenas e dezenas de peças delicadas, sensíveis, eficientes, trabalham dentro da caixa de metal, desconhecidas e desprezadas, para que os ponteiros girem e ganhem olhares, gabos e citações de pontualidade. Ceciliano Abel de Almeida é uma dessas peças de precisão, trabalhando para que o relógio ande certo e os ponteiros ilustres recebam as glórias da consagração coletiva.
As toneladas de ferro do maciço mineiro do Itabira despejam-se no porto de Vitória graças a uma ferrovia que Ceciliano ajudou a tornar viva e forte. Ajudou-a dando sangue, vencendo floresta, rio, febres, desconforto, solidão.
A Companhia atravessava regímen de indigência e exigia, com os pedidos oficiais, auxílios admiráveis, cuja justificativa estava no espírito e na vocação dos colaboradores. Depois de uma tarefa esgotante, digna de todos os prêmios, o engenheiro é convidado a locar, espontaneamente, no trecho sinistro onde o paludismo dizima as turmas e marcará a colocação de cada dormente futuro com o túmulo de um trabalhador. Não haverá teste mais emocional que a dedicação desses operários humildes das estradas de ferro, pagos com cinco meses de atraso, entregando aos barracões os vencimentos, arrastando miséria num disfarce estridente de bom humor, furando mata e engolindo mosquitos ao som dos “desafios”, das toadas de excitamento, das doces modinhas de amor. Quando se ouve o “ai Mariquinha, vai” de possível sugestão sensual e maliciosa, verifica-se que a cantiga apenas ritmava a deslocação e remoção de grandes blocos de pedras, pesando toneladas…
Vereis que Ceciliano Abel de Almeida fixa, neste livro, muita History rara para a documentação psicológica, e muita story para o conhecimento da natureza humana que o cercava, humana e animal, toda a paisagem dos homens e das cousas, haloada de ternura, compreensão e enternecimento.
Não quis salvar seu nome apenas, arrancando-o ao dilúvio olvidador, mas encheu o livro com o Rio Doce, fauna e flora, homens de todos os feitios, grandes e pequeninos fatos, todos ensopados de saudades, vivos no espantoso verso telúrico do curiboca Ubaldo Costa Porto, no novo estilo surpreendente das “rodas ponteadas”:
Adeus, pancadão da soidade!
E imperturbável na sua bondade, desculpa e esmaece os traços fortes acusativos daqueles que, como o cavalo de Chiquinha:
uma mão pisa firme,
e a outra não tem firmeza.
O Engenheiro atento ao “trânsito”, vigiando o estaqueamento da locação da linha, abrindo a facão a picada, prolongando, na luz do lampião belga, as horas de esforço nos desenhos dos perfis e retificações das cadernetas de campo, tem os olhos para ver e o coração para sentir as pequeninas vozes dos pássaros sem nome e o aroma anônimo das flores sem título.
Sabe que vai chover porque as saracuras cantam e a japira fez o ninho fora do nível da possível inundação. Ou não haverá chuvada porque houve a assombrosa “Capela de Bugios”, os macacos barbados reunidos, roncando ao entardecer. Lembra a jaqueira de Cariacica que desviou o traçado da estrada de ferro. O papagaio de Dona Maria. Subindo o Rio Doce que, nas manhãs das primeiras décadas do século XIX obrigava a 23 transbordos, vindo de Minas Gerais, contornando as cachoeiras sonoras, não esquece que Itapocu pareceu tão feio às moças viajantes que o nome foi mudado para Calogi. Não apenas a campanha na mataria densa o arrebata em sonho, mas a invasão irresistível das guaju-guajus, formigas de correição, espavorindo as surucucus, a saparia pulante, todos os animais de terra, empurrados para a fuga pela vanguarda vitoriosa das ferozes Eciton, que se detêm apenas diante de uma barreira de brasas vivas.
Comeu carne de onça suçuarana. Dominou com sua impassível face tranqüila todas as revoltas dos trabalhadores mal pagos, inesgotáveis de amizade e maravilhosos de dedicação, e sabe que as três barras que desgraçam um homem são: barra de saia, barra de ouro e barra de rio…
Agora, dentro da noite, ouve o noturno curiango na sua perpétua promessa mentirosa: “amanhã eu vou…”
Mais de dois anos de sacrifícios, aquele sacrifício votivo, a obediência jubilosa de que falava Ruskin, fecham o ciclo. Irá exercer outras responsabilidades com igual espírito, amor e esperança iguais para sempre em sua nobre vida modelar.
Aposentado, admite em sua intimidade o leitor para ver como viveu, começando a carreira inalterável, os meses ásperos e lindos no Rio Doce, planejando a ferrovia que traz o ferro de Itabira para o cais de Vitória, das montanhas mineiras para as ondas do mar.
Henri Guillaumet voando do Chile para a Argentina caiu nos Andes, cego por uma tempestade de neve e vento. Recusou-se a morrer e andou cinco dias e quatro noites através da cordilheira, de rojo nas montanhas de gelo, ladeando as cavernas azuis, os lagos imóveis e verdes precipícios. Não era a vida que teimava em defender, mas o elemento útil que representava, o grande piloto insubstituível na Ligne, o cidadão consciente da Terre des Hommes. Quando abraçou Saint-Exupéry pôde apenas balbuciar, convicto da veracidade: “O que eu fiz, palavra que nenhum bicho, só um homem, era capaz de fazer!”
Uma vida como a do Engenheiro e Professor Ceciliano Abel de Almeida dignifica a espécie, a humana no geral e a brasileira no particular. Atravessou setenta anos de batalha com toda ciência das escolas técnicas e toda a pureza da alma luminosa. O exemplo ilumina vários aspectos e é uma alegria sabermo-lo nosso contemporâneo. Ainda possuímos homens assim…
A sabedoria instintiva das abelhas, das formigas e dos castores, indicada como égide de trabalho associativo, apaga-se tranqüilamente quando vemos o velho engenheiro contar sua história clara e simples, sugestiva e poderosa, com o timbre de uma narrativa doméstica, fiel e natural, como “só um Homem é capaz de fazer!…”