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O desbravamento das selvas do Rio Doce (Memórias) – EFVM VI

Estrada de Ferro Vitória a Minas

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CAPÍTULO VI

O santa casa. A barriguda estourou. O capiau, a filha, Q tordilho e a alazã. Cabras, borrachudos, carrapatos e mucuins. A cachoeira do M. Crenaques e Puris. “Pode aumentar, diminuir nunca!” Canecas aos doutores, cuités aos trabalhadores. A tempestade. Vi cair um “perigo”. O córrego embraveceu. Estômagos e “terradas” sem açúcar? A estanca do ribeirão da Lapa. Úlceras. “É homem bom.” “O alarido era enorme.” “Estão vivos por milagre!” As três barras. A lenda indiscreta. Ainda o Lopinho. O Rio Doce impetuoso. A morte de um cunhado.

Alvorecia quando o Dr. Pedro chamou pelo Amorim e interrogou-o, a meia voz. Gritou pelo primeiro baliza e inquiriu, discretamente. E, tranqüilo, sem alterar a voz, recomendou-nos que, depois do café despedíssemos o João Fagundes, porque lhe interrompera o sono com cantigas e tagarelices.

— João, aqui estão sua conta e seu saldo — anunciamos-lhe. — Você foi dispensado pelo chefe.

— Seu doutor, eu não sou mandrião. Não mamparreio. Por que o Dr. Pedro me desemprega? Não vou embora, não senhor, acompanho a turma até o fim. Gosto de vosmecê e de Dr. Pedro. Posso falar com ele?

Expusemos o caso ao chefe que nos disse:

— Não me deixou dormir e, depois de despedido vai ficar? Consinta que ele venha explicar-se, mas hei de lhe passar uma sarabanda de que jamais se esquecerá.

E o trabalhador foi justificar-se.

— Você pode ficar e anote que à primeira que fizer será expulso da turma. Você é um santa casa.

E foi esta a grande reprimenda ouvida pelo faltoso. O Dr. Versiani era um chefe magnânimo. E o Fagundes daí por diante se tornou mais ativo, mais respeitador, mais amigo e menos cantador e tagarela.

* * *

Bem antes de se alcançar a cachoeira do Rebojo, pouco distante da foz do Cachoeirão, havia um pequeno trecho de mata virgem limitando a ampla bacia além do Barroso. Aí colocamos o trânsito, próximo de uma barriguda esfolhada, de tronco inconfundível, alvacento e aculeado.

O dia estava quente e abafado. As árvores não ramalhavam. O calor atmosférico soberanizava os outros fenômenos meteóricos.

Enquanto alinhávamos, observávamos a bombocácea que se nos afigurava arraigada no solo.

Mudamos o instrumento, o segundo medidor foi equilibrar a baliza sobre a brocha da piqueta e, quando voltava, todos ouvimos um grande baque. O feitor olha para a picada e exclama:

— O segundo baliza salvou-se por milagre. Lá está, de pé. A barriguda estourou. Caiu. Despedaçou-se toda. As árvores, quando caem, sem vento, o tempo vai mudar.

Atingimos o riacho do Cachoeirão. Até aí devíamos levar a picada para, então, cuidar da última mudança do abarracamento que seria no córrego da Onça que procede da serra de igual nome.

No dia imediato fomos a caminho desse lugar marginando o rio, observando os acidentes do terreno até a casa do Senhor Antônio Elias, a qual defronta com a famosa serra de dobras notáveis.

Entabulou o Dr. Versiani conversa animada com o bondoso sertanejo, mestiço de cabelos encaracolados, e conseguiu, facilmente, que ele nos cedesse um casebre, perto do córrego, e a menos de meio quilômetro de uma capelinha. A turma de trabalhadores arranchar-se-ia em uma casa de paredes esburacadas nas vizinhanças do oratório.

Havia bom pasto para os animais e o arroio de águas claras proporcionar-nos-ia banhos excelentes numa cascatinha rumorejante.

Agradava-nos a palestra do prestimoso capiau. Ouvíamos, de quando em quando, curtos relinchos que partiam do quintal da casa. Saboreávamos o café adocicado pela rapadura quando uma jovem bonita e morena se apoiou no portal da sala e ciciou:

— Meu pai, o tordilho agora acertou em cobrir a alazã, não se baldou. O senhor disse-me que o chamasse.

O Elias pediu-nos licença e atendeu o aviso da filha. Nós e Dr. Pedro trocamos um olhar.

Momento após ele voltou, desculpou-se mais uma vez, por nos ter deixado sós, e fundamentou porque desejava que o animal bom e de estimação padreasse a égua mansa e de raça recomendada.

Regressamos satisfeito porque o nosso novo arranchamento não era inferior ao que íamos deixar.

* * *

Desinçamo-nos, enfim, das dificuldades que nos torturaram na travessia do Cachoeirão e na subida da ponta pedregosa do morro que avançava sobre o rio e, pervagando as encostas, prosseguimos esfrançando o mato ralo, na trilha que abríamos e piquetávamos, avaliando distâncias horizontais e cotas para que pudéssemos traçar, à noite, no perfil desenhado, o grade compensado, vantajoso.

Por vezes nessa faina técnica caíamos no campo, divagávamos trechos do caminho que beiradeava o rio e topávamos fato de cabras que bezoavam fugindo. Não tardava e aparecia a cabana, moradia de gente simples, de brasileiros de cor.

O serviço rendia; entretanto, éramos chupado pelos borrachudos, sorvido pelos carrapatos, mordido pelos mucuins, ferroado pela mutucas, muito mais prolíferos nas capoeiras e nas pastagens infestadas de arbustos e de ervas do que na mata alta.

* * *

Enfrentamos com a cachoeira do M. Custou-nos distinguir a corrente catadupejando, ziguezagueando pelo canal cavado, durante séculos, no leito do rio, para formar as pernas da consoante, porque não nos postamos num lugar de boa visão.

Da outra banda do rio, de há muito, a maloca dos Crenaques vinha nos espreitando, enquanto, na em que estávamos, de longe em longe, deparávamos com alguns Puris semicivilizados remanescentes da tribo que habitara outrora a margem direita do rio.

Já notamos, à noite, o relampejar no horizonte, escutamos o reboar longínquo do trovão e esses distantes meteoros elétricos indicavam a próxima modificação do tempo.

A seca prolongada ia findar.

* * *

Amistamo-nos com o Senhor Antônio Elias. Era um homem bom e conservamos a amizade que lhe dedicamos até a sua morte, quando superintendíamos a estrada. Era um mineiro de coração nobre e de convicções inabaláveis.

Um dia, era domingo, palestrávamos com ele, no pequeno alpendre de sua residência, e gracejando dissemos-lhe:

— O senhor assiste, abandonado, neste deserto, sem escola, sem padre, sem meios de comunicação para as cidades. A estrada de ferro dentro de dois anos, no máximo, assentará seus trilhos diante desta casa. Uma estação será construída em suas imediações. O Espírito Santo já se está beneficiando com o trecho inaugurado em seu território. Lá o governo cuida com muito carinho da instrução e dos problemas de transporte. É um Estado pequeno e, por isso, há facilidade de seus habitantes entenderem-se com o Presidente. O senhor podia entrar por essas matas, tomar as assinaturas das raras pessoas que se aventuram, com suas famílias a ficar segregadas dos centros civilizados e solicitar que esta região fosse incorporada ao Espírito Santo. Vitória é muito mais perto daqui do que Belo Horizonte.

O Senhor Antônio Elias não gostou da brincadeira.

Confiado em sua bondade repetimos a sugestão.

Esquivou-se de nos responder e íamos insistindo nas razões apresentadas e acrescentávamos outras. Abusávamos da tolerância do amigo paciente, mas houve um momento em que ele se irritou e explodiu:

— Seu doutor, quero-lhe muito bem, respeito-o deveras, mas, por favor, não peça abaixo-assinado para Minas ceder parte de seu território à França, à Itália, ao Espírito Santo, a Pernambuco, à Turquia, à Espanha, a Sergipe; a Portugal… Seu doutor, Minas pode ficar com terra dos outros: da Argentina, da Bahia, do Peru, de S. Paulo, do Paraguai… mas o que ela achar que é dela, é dela. Seu doutor, ela pode aumentar; diminuir, nunca.

Desculpamo-nos com o prestimoso pardavasco. Abraçamos o bom homem. Ficamos-lhe mais amigo e por muitos anos.

E aqui registramos ter o nosso amigo Antônio Elias, de boa memória, a prioridade da célebre e arrogante advertência: “lembrem-se de que eu sou mineiro”.

* * *

Embarafustamos pelo campo, não havia sequer relvas para cortar. Surgimos quase correndo, passamos deixando a capelinha, a casa velha da turma e a nossa moradia de uma banda da linha e o Rio Doce da outra. O feitor, azafamado, media e piquetava. Os trabalhadores solidarizavam-se com ele.

Queríamos explorar nesse dia pelo menos dois quilômetros que, em mais da metade, seriam percorridos sem necessidade de usar foices e machados.

Armamos o trânsito em frente da casa do Senhor Antônio Elias, que estava satisfeitíssimo. Seus olhos chamejavam de alegria. Obsequiou-nos com um oportuno e saboroso café, que distribuiu, em canecas de louça aos doutores, e, em cuités, aos trabalhadores. O Dr. Versiani agradeceu-lhe a gentileza.

Chegamos ao fim da pastagem e continuamos a tarefa dando direção ora à esquerda ora à direita, enquanto o rio, embaixo, borbotava comprimido lambendo as bases das ribanceiras alcantiladas.

* * *

Enevoara-se a manhã, o que não nos impedira de ir varando a encosta, diarizando o serviço habitual. Tínhamos urgência de alcançar o ribeirão da Lapa, até onde iria o trecho que o Dr. Pedro se comprometera pela exploração.

Trouxeram-nos as marmitas e almoçamos mal, porque o calor sufocava. Sentíamo-nos extenuados.

Retomamos, apesar disso, o ritmo do trabalho e, mais tarde, principiou a soprar uma aragem favorável.

O céu entretanto se foi enegrecendo e o vento, que apenas frolava, foi ganhando ímpeto e, agora, obliqua as árvores do capoeirão, torvelinha folhas e gravetos, e acaba quebrando em chuva. Na atmosfera aparecem, de quando em quando, traços cintilantes que infletem, sucessiva e instantaneamente, de um lado para o outro. São raios que ziguezagueiam.

Desmontamos e guardamos o trânsito à pressa.

Estugamos o passo em busca da vereda pela qual a água já corria gorgolejando. Os clarões, produzidos pelas centelhas desprendidas das nuvens, que se embatiam, ofuscavam-nos e os ribombos dos trovões retumbavam, intermitentemente, conforme os obstáculos que refletiam as ondas sonoras.

Das ravinas, dos sulcos e das rugas imperceptíveis brotavam jorros de água barrenta, e as enxurradas gorgolavam carreando o que encontravam e que podiam arrastar.

Presenciamos a violenta lavagem natural da terra, a sua conseqüente erosão pluvial e a captura pelo rio, dos detritos que nele se lançavam.

Nunca admiramos tanto o Dr. Pedro Versiani como naquele dia. O engenheiro notável, que não era um moço, galhardamente, caminhava ensopado como nós e pouco falava mas, quando o fazia, era para nos animar relembrando apuros por ele experimentados em outras emergências semelhantes àquela, ou para emitir conceitos de alta relevância.

— Lá — e mostrou o Norte — na “Bahia e Minas”, passei por pedaço horrendo quando, certa vez vi cair um “perigo” bem perto de mim. Os riscos da vida, as ameaças de toda ordem são os estorvos de nossa profissão. Mas resta-nos um consolo, a certeza de que realizamos uma obra meritória de desbravamento, de incentivo à colonização, de desenvolvimento cultural e de facilidade à circulação das riquezas.

* * *

Chovera toda a noite e, quando alvoreceu, não nos arredamos de casa, porque as bátegas, quase sem interrupção, se sucediam aos chuviscos. Copiamos cadernetas e desenhamos perfis, que seriam remetidos ao primeiro engenheiro.

As chuvas eram gerais. O Rio Doce enchia. O córrego amigo que nos proporcionava benéficos banhos embraveceu. Suas águas não mais cochichavam. Turbilhonavam. Fustigavam o leito e as ribas. O ribeiro estadeava fumaças de rio. Cresceu, avolumou-se, orgulhou-se, Vergava, deitava, arrancava e carregava ervas e arbustos. E, depois de se haver precipitado torrencialmente na ladeira, transportando pedras toscas e seixos que atritavam o fundo, que se entrechocavam e se desgastavam produzindo intenso zumbo, ao avizinhar-se da foz, espraiou-se.

* * *

Só um pensamento prevalecia na turma: chegar ao ribeirão da Lapa e de boa vontade todos afrontavam o tempo incerto e nublado.

Havia dias em que as estiadas eram de menores intervalos do que os aguaceiros. Outros em que, depois de alvorejar límpida manhã, se turvava o céu e não demoravam o ribombar do trovão e o cair da chuva curta ou prolongada e, por amor dessas interrupções forçadas, pouco adiantava a linha de exploração.

O Dr. Pedro Versiani observava os esforços da turma e perseverava em cumprir a palavra empenhada e, assim, tínhamos de atingir o fim do trecho isento de malária.

Sempre bebemos a água do rio. Agora, porém, apresentava ela cor barrenta muito mais acentuada. Colocada numa vasilha, ao fim de poucos minutos, via-se espessa camada de impurezas. Sentíamos repugnância de dessedentar-nos nela. O Senhor Antônio Elias informou-nos que a água do rio tem terra, mas não faz mal, e acautelou-nos contra as dos córregos por serem perigosas. Não discutimos, obedecemos-lhe o aviso e o Dr. Pedro pilheriou — que pensariam nossos estômagos dessas “terradas” sem açúcar?

* * *

Fincamos, enfim, a estaca no barranco do sonhado ribeirão. Vibramos todos, de contentamento.

Depois do jantar o chefe assim nos falou:

— O senhor amanhã far-me-á o favor de entregar o rancho ao Masserano, providenciará o seu regresso para o Porto da Esperança, onde aguardará minha chegada. Levará as barracas, os instrumentos, e a bagagem disponível. Com o senhor irá o nivelador Laurindo Macedo, que já nivelou e contranivelou até a última estaca, e far-lhe-á companhia. Ficarei com os seccionistas que não terminaram ainda o levantamento, e voltarão comigo.

Propusemos ao Dr. Versiani sua volta imediata e permaneceríamos com os auxiliares. Não acedeu à nossa sugestão e fundamentou:

— O senhor precisa tratar, com urgência, dessa ferida perto do tornozelo que lhe tolhe, em parte, os movimentos, o impede quase, de calçar-se e está crescendo diariamente. Essas úlceras, provenientes de mordidas de carrapatos-estrela, podem transformar-se em feridas velhas, que não cicatrizam com facilidade.

De fato, em Colatina, o Dr. Louis Jouffroy com um tratamento intenso só conseguiu livrar-nos de tal úlcera tórpida depois de dois meses.

* * *

Despedimo-nos do chefe amigo, dos companheiros e do Senhor Antônio Elias, que nos revelou todo o seu sentir com encantadora simplicidade pela forma seguinte:

— Queria muito que o Dr. Pedro e o senhor viessem construir este pedaço de estrada. O Dr. Versiani já me declarou que vai retirar-se da Companhia. Que pena! Ele é o homem bom, às direitas. E o senhor, seu doutor, aprendeu a ser bom com ele. Peça aos seus amos e venha, como chefe, fazer a construção. Darei minha casa para moradia sua e da família.

Manifestamos-lhe nossa gratidão e comovido abraçamos o groteiro generoso.

* * *

Em Santana embarcamos numa canoa grande, com boa tripulação — um popeiro e três remadores.

Com a enchente a correnteza do rio engrandeceu em velocidade. Numa igara não nos teríamos arriscado a empreender a viagem.

Os canoeiros estavam bem-humorados. Esperavam que a derrota fosse ligeira, mas a volta já os preocupava. Teriam de roçar pela ribanceira puxando pelos galhos. “Em menos de duas horas chegaremos à Barra do Manhuaçu”, diziam, “e seremos felizes se gastarmos somente dois dias na subida”. “O rio”, acrescentavam, “adquere” muita força quando enche, fica “macriado” e para virar uma canoa não “cochila”. Quando “nóis desce” é fácil, mas quando “sobe” ele “matrata muito o cristão e por qualquer descuido leva à sepultura”.

Escutávamos essa lengalenga, quando defrontamos com a pedra do Resplendor e, depois, surgem a do segundo e a do primeiro cágado. E os canoeiros já se esforçavam, tanto quanto podiam, porque a canoa renteasse a margem direita do rio, quando estivesse em frente à do Lorena, mas não o conseguiram. Impelida pela corrente do Rio Doce rapidamente ela se achou na foz do Rio Manhuaçu. As maretas balançavam-na, os jatos ameaçavam soçobrá-la e as carneiradas, mais e mais se enfureciam, à medida que a embarcação, mantida oblíqua à corrente pelos remadores, se acercava do meio da embocadura do Manhuaçu, cujas águas se misturavam com as do Rio Doce naquela agitação desordenada, furiosa.

Abandonamos o banco da canoa no qual viajávamos comodamente, e assentamo-nos no fundo, agarramos os bordos e, completamente molhado notamos que homens de remos às costas corriam, pela margem direita do Rio Doce, gesticulando e gritando, enquanto outros acompanhados de mulheres aflitas guaiavam. A correnteza impulsionava-nos para os saltos da cachoeira das Escadinhas: seríamos sorvidos pela voragem, era funesta a nossa situação.

Os canoeiros, cônscios do perigo que nos assaltara, remavam, desesperadamente, tresdobravam-se-lhes as forças, enrijeciam-se-lhes os músculos vigorosos, mas não logravam encostar a embarcação que, sempre esconsa, lá se ia despedaçar no vórtice ao encontro dos escolhos batidos pelas águas espumantes.

O alarido era enorme. “Aproem para terra”, bradavam. “Vocês vão morrer”, avisavam. “Não percam tempo”, clamavam.

Rugindo de pavor, o popeiro ordena aos proeiros que o ajudem e, de tal modo força no remo, que o parte, perde o equilíbrio e descamba no barco; os companheiros que haviam conjugado seus esforços com o dele conseguem aproximar a proa do barranco e, de chofre, lançam sobre ele uma corda que é recolhida pelos de terra. Estávamos salvos.

— Estão vivos por milagre! — exclamaram os que prestaram socorro.

— Sim. Foi um milagre — confirmaram as mulheres — e minudenciaram. — Pedi a São Brás; eu a Nossa Senhora dos Navegantes; eu ao Sagrado Coração de Jesus; eu a Santo Antônio… — e, assim, cada qual, havia rogado ao Santo de sua devoção, que evitasse o desastre que acarretaria a perda das vidas dos viajantes.

Desembarcamos. Fomos, todos, cumprimentados, abraçados. senhoras choravam, soluçavam.

E havia indivíduos de aparência impassível que nada diziam. Meneavam a cabeça. Persistiam na lembrança de que por um triz nos livramos de ser tragados pelas catadupas, a jusante.

Gravou-se em nosso coração a bondade daquela gente simples. Naquele punhado de brasileiros modestos anotamos, comovido, respeitável solidariedade, resultado de seu excelente grau de formação cristã.

* * *

Já trocamos de roupa. A recordação da ameaça de um fim terrível esvaecia-se.

Cogitávamos, agora, na viagem do dia imediato. Garoava e, de quando em quando, rajadas investiam para a casa comercial do Senhor Antônio Bittencourt, decidindo-o a fechar duas das três portas, franqueadas à sua clientela.

Acomodado no interior da loja, depois do balcão, graças à gentileza do prestimoso negociante, ouvíamos, quedo, aos seus fregueses, as histórias das ruínas havidas na cachoeira das Escadinhas canoas afundadas, espatifadas, perdas de cargas e de vidas — e sentíamo-nos feliz por não haver concorrido para o enriquecimento dessas narrativas horripilantes.

As desgraças ocorridas, nos famosos saltos, eram sem conta e parecia-nos que o repertório crescia, à medida que a pinga escorregava nas gargantas dos clientes insaciáveis.

O cavaco daquela gente que, de começo, sussurrava como humilde corregozinho cantando nos tropeços que encontrava, foi-se alteando e atingia a grazinada de psitacídeos nas grimpas das árvores e, às vezes, a galhofa explodia na irreverência mestiça.

As impressões fortes daquele dia nos sugeriram o retrospecto dos vividos nos três meses em que coleamos o Rio Doce.

Memorávamos esse passado próximo, prenhe de dificuldades, de ensinamentos colhidos num pedacinho da pátria, quando um capadócio abaçanado nos interrogou:

— Conhece o seu doutor os três maiores perigos do homem? Cabeceamos um movimento de negação.

— Pois vou ensinar a seu doutor. São três barras: barra de saia, barra de ouro, e barra de rio. O seu doutor quase morreu por amor da última e tenha cuidado com as outras.

Todos gargalharam à vontade. Compreendemos a expansão da matula, conseqüência do uso imoderado da aguardente. Sorrimos contrafeito.

* * *

Hospedou-nos, fidalgamente, o senhor Antônio Bittencourt, e esclareceu-nos sobre as franquezas da sua freguesia, quando se arrimava ao balcão.

— A venda no interior — disse-nos — compara-se com a barbearia na cidade. Nela tratam-se todos os assuntos. O negociante, c naturalmente, está sempre informado das menores ocorrências ha,vidas nas redondezas. O freguês bazofia sua importância, sua galhardia. Gaba-se de ter opinião, de ter palavra. Elogia o compadre que o socorreu na doença. Deprime o vizinho, que lhe não emprestou o burro cargueiro. Relata as boas ou más transações, sobretudo estas, dos conhecidos. Conta o que pretende fazer e os planos que projeta. Propala o que sabe, o que lhe consta, o que corre e, até, as vinganças e as ameaças que ele próprio faz. O Lopinho, por exemplo, estava disposto a inimizar-se com o Dr. Pedro Versiani. Manifestou seus propósitos no balcão, diante de muitos da laia dele, que tiveram um lampejo de bom senso, e que o aconselharam que o não fizesse, e refletisse que o doutor tinha o apoio do Governo e da Companhia. Eu, também — ajuntou o Senhor Bittencourt — pedi-lhe que tivesse calma, mas o que o desarmou, de todo, foi a prudência do Dr. Pedro. E o Lopinho que, de fato, é de má catadura, amainou a ira contra a turma, acusada por atos que ele presumiu pudessem ser cometidos.

Parecia não ouvir os informes de nosso bondoso hospedeiro o nosso esforçado companheiro. o nivelador Laurinho Macedo. Ele magicava, porque não se lhe arredava do pensamento a ronda da morte, quando estivemos a pique de nos despencar de envolta com o catadupejar da corrente indomável.

* * *

Esparrinhando borrifos e jatos de água leitosa ou barrenta, que corria no caminho, ou que nele se empoçava, ia a nossa cavalgadura produzindo com as patas zapes ritmados, que provavam a andadura, que lhe fora ensinada.

Chovia sem parar.

Vestimo-nos de capote, e, assim, arrostamos o tempo áspero e a estrada entijucada para morrinhar no Porto da Esperança.

Sofríamos, entretanto, da ferida mal pensada.

* * *

Quando o rio começou a encher, o meu cunhado Mileto de Carvalho viajou no vapor Milagres para Regência. Foi prover aos interesses comerciais da firma João Buriche.

De volta, as águas, com a chuva, já haviam inundado as várzeas e a torrente arrijou.

O navio, no segundo dia da derrota, arribou, para pernoitar no porto, outrora, da sede do núcleo de Muniz Freire. Antes de escurecer foi servido o jantar.

Perseveram na resolução de ser a viagem feita à luz do dia, porque a impetuosidade da corrente, as árvores caídas, as galhadas que mal boiavam, arrastadas em turbilhões, arriscavam a segurança da navegação. A bordo, todos, mestres, tripulantes e passageiros se acautelavam contra os perigos à vista.

Conversavam sob a tolda do tombadilho fracamente iluminado e, em certo momento, o meu cunhado apartou-se do grupo. E como custasse retomar, chamaram-no. Não lhes respondeu. Procuraram-no. Não o encontraram. Não formularam a hipótese de uma cilada, porque ele era benquisto. Conjeturaram que houvesse sido vítima de um acidente, talvez um escorregão, ou a perda de equilíbrio na popa, que o tivesse atirado sobre as águas revoltas do rio.

Quando raiou, ainda baço, o clarão da manhã, pesquisaram rio abaixo, junto da margem. Todas as buscas foram, porém, baldadas.

Com urgência a embarcação prosseguiu a derrota, levou a notícia ao Senhor João Buriche, que se transportou ao local com canoas, e remadores. Em lá chegando bateram, diligentemente, a margem do rio, os amontoados nela existentes, as espumas formadas pelo gorgolhar das águas, e as sarapieiras encostadas nas beiradas.

Foi, enfim, achado o cadáver, quatro dias após o desastre, e sepultado no velho cemitério do referido núcleo.

Esse acontecimento causou-nos imensa e compreensível tristeza. E recordamo-lo comovido.

[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]

Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.

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