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O desbravamento das selvas do Rio Doce (Memórias) – EFVM XI

Estrada de Ferro Vitória a Minas

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CAPÍTULO XI

O cascatear do ribeirão. Um apelo inesperado. “Não seja imprudente.” A afirmação do Dr. Mayo. O Rio Cuieté. O paludismo alastra-se. O sexagenário da Serra do Itueta. “Não é corrupio mas é birro grosso.” Transes comoventes. “Mosquito não transmite a malária.” “Foi a água da lagoa.” “Esteio de baraúna não se alui.” A alegria desapareceu. Durante o dia ou a noite o drama é o mesmo. Para imigrantes, monumentos, para brasileiros, discursos. Perseguição dos insetos. Termo da tarefa. Proteção. Recordações. Justiça e generosidade. Caçadores. O mau-olhado.

Com tamanha normalidade progrediam os trabalhos da Secção que os estorvos pareciam debandar. Entrepensávamos em nossas aspirações de chefiar, presentemente desvendadas. O que entressonhamos, quando nos afastamos da Central do Brasil, conseguimos alcançar. Já começamos a colher a paga de nossa diligência.

Na chefia do depósito das Oficinas do Engenho de Dentro habilitamo-nos para as normas administrativas das ferrovias do país, e, agora, não mais nos atemorizamos com os problemas vulgares de reconhecimento, exploração, locação, construção, projeto e, sobretudo, ganhamos a experiência de os enfrentar em regime de parcimônia excessiva.

Habitando com a família uma casa da qual ouvimos o cascatear do ribeirão, que, à noite, nos adoçava o repouso, sentíamo-nos alegrar, quando, de manhã, reiniciávamos a faina. Mourejávamos com prazer. Nossos anseios cumpriam-se.

A custo atingimos o cimo da posição por nós conquistada e, vagarosamente, iremos caminhando para perdê-la. Medidas adotadas pela Companhia levar-nos-ão a deixá-la, com pesar. Entretanto, não precipitemos a exposição de nossas recordações.

Escurece. Tilinta o telefone. É o Dr. Bosísio.

— Ceciliano! Recebi circunstanciada carta do Dr. Sá Carvalho. Preciso conversar com você. Pode vir amanhã?

— Irei; se o senhor não acha conveniente transmitir-me o assunto, agora.

— Venha. Eu e Dulce esperamo-lo com o jantar.

A carta pedia ao chefe da Divisão que, pessoalmente, se entendesse com os engenheiros da construção, fazendo-lhes um apelo para, como amigos da Companhia, irem locar um trecho da região paludosa. A distribuição do serviço seria feita de modo que coubessem quinze quilômetros a cada técnico. Deu-nos amplas explicações sobre o pensamento da Diretoria, que não encontrava, por mais que se esforçasse, engenheiro estranho ao quadro da Companhia, que se atrevesse a penetrar a mata pestilenta, onde se sacrificara o Dr. Nestor Gomes.

Constrangido, predispusemo-nos para atender à sugestão da Companhia, e depusemos em Deus a nossa guarda.

* * *

Recorremos à bondade do médico da construção. Pedimos-lhe que nos indicasse medidas preventivas contra o paludismo. Sinceramente nos esclareceu:

— Evite os focos, não vá aonde houver a sezão, não vá embrenhar-se na mata, rio acima. Não seja imprudente.

— Mas, doutor, já nos comprometemos. Iremos.

Diante da resolução decidida, aconselhou-nos: que tomássemos vinte e cinco centigramas de sulfato de quinina pela manhã, e aumentássemos a dose se fosse necessário; que almoçássemos antes de encetar o serviço; e, finalmente, que usássemos mosquiteiro.

Ninguém se admire que se restringisse o notável clínico da estrada, Dr. João dos Santos Neves, a essas recomendações. No meado do século passado, o Dr. Mayo, pai dos famosos irmãos Mayo, perseguido pelo impaludismo, afirmava que “o inferno é o lugar onde as pessoas têm malária” e lembre-se que, nessa época, ainda se lhe atribuía a propagação ao “miasma do brejo”.[ 155 ]

Estamos em 1907. A febre amarela dominada no Panamá pelo Dr. W. C. Gorgas[ 156 ] e no Rio de Janeiro pelo Dr. Osvaldo Cruz, no quatriênio (1902-1906) do Presidente Rodrigues Alves, já tinha a sua profilaxia suficientemente conhecida, não estando, porém, a da malária. Só mais tarde o hematozoário, descoberto por Laveran, transmitido pelo anófele, vai ser combatido, e evitada a “tremedeira”, causa de tanta devastação.

Em 1925 levantamos, como engenheiro e fiscal do Estado do Espírito Santo, e o Dr. Alexandre Costa, como engenheiro do Estado da Bahia, a planta topográfica da região compreendida entre os Rios Mucuri e Itaúnas, e não adquirimos paludismo. Adotamos, porém, a providência de mudarmos de abarracamento todos os sábados. O nosso colega não o fez e contraiu a infecção palúdica.

* * *

Organizamos a turma de locação. Integravam-na um ajudante, dois secionistas, um feitor e trinta trabalhadores dispostos e diligentes. Das plantas extraímos os comprimentos das ordenadas à linha do projeto. Compusemos, caprichosamente, uma caderneta e entregamo-la ao ajudante, instruindo-o sobre a abertura das normais e dos alinhamentos do projeto até cruzá-los.

Transmitimos-lhe as recomendações do médico, fornecemos-lhe pílulas de sulfato de quinina de vinte e cinco centigramas e, por fim, dissemos-lhe:

— Participe-nos, quando faltarem dois dias para acabar a tarefa, e espere-nos que lá estaremos ao findar o prazo.

O ajudante armou as barracas numa elevação, à margem esquerda do Rio Cuieté, cuja travessia deveríamos cuidadosamente estudar. Deslumbramo-nos com o panorama que se desdobrava ao derredor. O rio, a jusante, ia mansamente reunir-se ao Doce. Além da barranca direita, extensa pastagem de capim-gordura alastrava-se, refletida em cor esbranquiçada, como se estivesse permanentemente orvalhada. Depois do descampado, vestígio do quartel aí estabelecido pelo governo anterior, imperava a mata virgem.

Transposto o rio a vau, vencemos o pequeno intervalo de aclive e chegamos ao acampamento. Quase se horizontalizavam os raios solares com as altas copas da floresta. Receberam-nos o ajudante, que nesse dia finalizara a abertura dos alinhamentos, os auxiliares e jornaleiros.

Aquele, satisfeito, cumprimentou-nos e passou a noticiar que não havia casos de paludismo. O uso da quinina e do mosquiteiro, que evitava as picadas das muriçocas, por certo, concorriam para todos gozarem saúde. — Faz dez dias que nos arranchamos aqui, e nenhum ameaço de tremedeira houve. Parece que a coisa não é tão feia como se pinta.

Objetamos-lhe haver passado pelo abarracamento de Dr. Emílio Cunha, no Rio João Pinto Grande, onde já havia febrentos e, por isso, pensávamos ser ainda cedo para regozijar-nos.

Infelizmente nossa previsão aconteceu. No dia imediato, quando nos encaminhamos para iniciar a locação dos cinco quilômetros aquém do Cuieté, já tiritavam de frio de febre palustre três trabalhadores e, na mesma data, mais cinco adoeceram.

Os acessos sucediam-se, recrudesciam, e, um a um, auxiliares e jornaleiros iam contraindo a malária. Substituímos os doentes por outros camaradas que o Dr. Leitão nos mandou. Quinze dias, a contar de nossa chegada ao acampamento, toda a turma, incluindo os trabalhadores recentemente vindos, havia tido paludismo, afora nós e o porta-trânsito, talvez porque tomávamos, diariamente, mais de vinte e cinco centigramas de sulfato de quinina.

* * *

Dois dias após havermos começado a locação, chega à nossa barraca, ao anoitecer, um velho de barba comprida, alto, espadaúdo, de postura respeitável, saúda-nos e inculca-se:

— Eu sou o José Gomes, conhecido como Zeca Gomes, morador na Serra do Itueta e amigo da família Pernambuco. Tenho uma fazendinha e nela resido com a minha mulher, que muito me ajudou a criar os filhos, hoje casados. Na minha mocidade gostava de me embrenhar nas matas. Passava dias fora de casa pescando e caçando. Quando voltava trazia mantimentos para muitos dias. Agora já estou velho, a barba e o cabelo embranqueceram. A mulher, os filhos, os vizinhos e os amigos não querem que eu dê minhas fugidas para a brenha e, quando formo os meus projetos, descobrem-nos e vão contar ao compadre Pernambuco, e lá vem o recado: “diga ao compadre Zeca Gomes que tenha juízo, eu não quero que ele faça as loucuras de quando era moço”. O recado chega, e eu obedeço a vontade do amigo, que me tira o prazer da vida. Desta vez, porém, usei de capoeiragem com todos. Espalhei que vinha em sua companhia. O compadre Pernambuco conhece o seu doutor, é seu amigo e concordou, mas fui caipora, porque, quando cheguei ao Cachoeirão, o seu doutor tinha vindo na antevéspera. Não desanimei, porém, e aqui estou. Seu doutor, quer dar-me licença para arrumar minha tarimba, antes que a noite caia de todo?

— Vá — dissemos-lhe. — E ficamos matutando na história do sexagenário. Minutos depois convidamo-lo para o jantar.

* * *

Na manhã seguinte, depois de servido o almoço às cinco horas e meia, colocaram-se todos em fila e fizemos a distribuição de praxe do sulfato de quinina, pondo uma pílula sobre a língua de cada um.

Nessa ocasião o Sr. Zeca Gomes saiu-se com esta:

— Seu doutor, a gente com os doutores aprende muita cousa boa, e também aprende o que não dá resultado. Já soube que os doentes engoliram pílula, o que não lhes impediu que apanhassem a tremedeira, assim parece que só se deve usar o remédio, depois que se tiver a febre.

Apesar da oportuna observação, o Sr. Zeca não rejeitou o preventivo.

Ao feitor competia designar dois homens para trabalharem com o Sr. José Gomes, a quem ensinamos a marcar, com o esquadro, as ordenadas. A escolha foi fácil, porque diversos queriam auxiliar o ancião.

Decorridos alguns dias os trabalhadores imploravam, ao primeiro baliza, que os substituíssem, e fundamentavam: “pensamos que o velho fosse mofino, mas é o contrário, é muito rijo. Anda devagar, mas não dá folgas. Não é corrupio, mas é birro grosso, que agita os outros, enquanto ele vai na maciota”.

Queixava-se, por sua vez, o Sr. Zeca, dos camaradas, e pedia a troca por outros menos molengas, que não fossem as rodas encravadas de seu serviço.

* * *

Dia a dia se multiplicam os acessos de sezões que avassalam aqueles infelizes da turma renovada. Havia noites em que o delírio simbolizava o paroxismo em seus sofrimentos e, quando a aurora rasgava, embora trôpegos, até à barranca do Cuieté se deslocavam alguns, que encorujados aguardavam os raios do sol.

Se bravos navegantes de séculos passados presenciavam descoroçoados a morte da tripulação de seus barcos produzida pela avitaminose, não podíamos, como eles, quedar-nos diante daqueles companheiros derreados pelo impaludismo devastador. Temos à nossa disposição sais de quinina, que combatem a infecção palustre. Devemos aplicar aos encolhidos doses duplicadas, triplicadas, conforme nos orientou o médico, e retirar desse local pestífero aqueles que o desejarem. Estamos obrigado a socorrê-los, a pensá-los e, assim procedendo, provamos-lhes que o engenheiro não se limitava a chuchar a dedicação dos trabalhadores, mas que a Companhia era grata aos seus esforços, aos seus sacrifícios.

Havia transes comoventes.

À noite, nas tarimbas de paus roliços, gemiam e tresvariavam os atacados pela febre, que recrudescia, e confissões inesperadas surgiam. A um pardavasco robusto, de musculatura de aço, ouvimos: “seu doutor me perdoe, eu sou curpado. Eu sentia muito calor e por isso tirava o mosquiteiro e deixava as muruçocas picarem meus pés. Não obedeci ao seu doutor. Me descurpe seu doutor.” Outro, negro de dentes alvos ornando gengivas ebâneas, revela-nos em soluços, e em lágrimas, que rolavam pelas faces azevichadas e ressequidas: “vosmecê punha a pila de sulfato na minha boca, mas eu não engolia, escondia debaixo da língua e atirava depois para longe, por mode eu não queria ficar surdo.”

E os acossados de malária iam indicando as causas da infecção: o banho no rio, a água do brejo ou da lagoa, a fruta silvestre comida sem estar sazonada… Quando admitiam a transmissão pelo mosquito só o faziam em atenção ao doutor.

Também o Sr. Zeca Gomes não escapou à infecção palustre, e tremendo, com a longa barba grisalha, desgrenhada, em seu delírio, deu-nos esclarecimento: “seu doutor, foi água que bebi apanhada na lagoa. Quando moço fiz minhas vadiagens por estes rios. Cacei, pesquei e não pernoitava, no mesmo lugar, duas vezes. Mudava-me com minha cachorrada todos os dias e nunca fiquei doente. Já vi muita gente bater queixos, como porco do mato com medo, e é o que estou fazendo agora. Esta minha terçã é braba, eu lhe garanto isso, seu doutor. Há dois dias tive o primeiro acesso e este, que é o segundo, já está me amolecendo. Seu doutor, dê-me as pilulas. Amanhã não ficarei nesta barraca. Quero acabar o meu serviço, a minha tarefa. Uai! seu doutor, parece que vou me acabar, mas não, não pode ser assim. Este velho é esteio de baraúna, ele não se alui. Mas, ó santo Deus, que vejo? Vejo a matinada que vão fazer quando eu chegar fracassado em casa. A mulher, os filhos e o compadre Pernambuco vão me arrasar de nomes feios, de velho sem juízo para baixo…”

Na picada já se esvaiu a alegria dos trabalhadores. Até o desafio, cantado na derribada de uma árvore, caprichando cada qual em chegar primeiro ao âmago do tronco, já se evadiu. A imaginação dos parceiros andeja indiferente, não se esvoaça como os anofelinos quando, sequiosos, procuram sugar o sangue de suas vítimas e inocular-lhes o germe da malária que os apatifa na ocasião dos acessos. Registamos o eclipse de fortaleza de ânimo daqueles brasileiros que, como soldados desconhecidos, arrostavam a morte e nunca, como consolação sequer, pensaram que fossem, cedo ou tarde, recordados seus sofrimentos pelas companhias, que sucederam à paupérrima Vitória a Minas ou pelos governos estaduais, ou federal.

Os padecimentos, à noite, dos homens da turma, repetiam-se, durante o dia, na mata frondosa. O drama não se interrompia, só o cenário se mudava.

Era freqüente chegarem ao nosso conhecimento participações desse teor: do marcador de secções — “estou acompanhado de um trabalhador, o outro adoeceu”; do ajudante — “o nivelamento ficará atrasado, o porta-mira está curtindo o acesso de febre”; do primeiro baliza — “o estaqueamento da curva vai demorar. Apenas dois foiceiros estão diligenciando, os outros estão com a tremedeira”… E certa vez muito nos comovemos quando um curiboca espírito-santense, Francisco Bicuiba, de machado às costas, se aproxima do trânsito e, tiritando, bambeando, humildemente com a voz entrecortada, assim nos fala: “seu doutô, a mardita me montou. Me dê licença pra encostá entre as sapopeira daquela arve. Quando eu começá a suá vorto pro trabaio.” Efetivamente, passado algum tempo, o Bicuíba, com a camisa ensopada de suor, machadava valentemente.

Os emigrantes terão um dia monumentos em diversos pontos do país, que comemorarão o início de suas atividades na terra, que os recebeu com carinho e que é a pátria de seus descendentes, mas os desbravadores dos sertões, os exploradores das riquezas ocultas, os jornaleiros das vias de penetração, que enfrentaram endemias, embora brasileiros, serão lembrados apenas nos discursos improvisados por oradores, que tocados de inspiração transitória dirão, conforme a inauguração do empreendimento, frase como esta: “contai, meus senhores, os dormentes deste trecho de estrada que se inaugura, hoje, e ficai certos de que o número que encontrardes será superados pelo dos trabalhadores enterrados no limiar de suas barracas miseráveis…” E esta é a homenagem única àqueles que ensejaram aos colonos o estabelecimento na gleba brasileira.

* * *

Transposto o Cuieté, o eixo da linha contorna, descrevendo uma curva composta, a encosta que morre na várzea do Rio Doce. Nessa curva denunciaram-se cristais de turmalina preta com jaças, semelhantes aos da vizinhança da casa de turma de Boa Vista.

Faltam-nos, para concluirmos o trabalho, dez quilômetros, que serão locados à custa da singular abnegação de homens, cuja saúde está arruinada pela malária.

A cada momento nos perseguem carrapatos, mucuins, mosquitos, mutucas e, principalmente, os lambe-olhos que, também, entram pela ocular da luneta impedindo-nos de enxergar a baliza aprumada no picadão. Sufoca-nos o calor dentro da mata; e o chiar dos insetos atormenta-nos tanto quanto o chalrar dos pássaros. Talvez a impaciência, que nos angustia, origine-se do uso imoderado da quinina.

A alegria da turma esmarriu, obdurou-lhe a decisão de triunfar dos obstáculos, que se lhe apresentassem. E com o propósito de alcançar a vitória, chantando o marco final da locação, aquela gente, embotada na hora do acesso palustre em seus tresvarios, se referia amiúde ao término do serviço e à volta imediata ao trecho em construção. E esses delírios, na picada, convertiam-se em anelo consciente e justo e, por isso, todos procuram, como náufragos, sopitando canseiras, salvar-se, chegando à praia simbolizada na última estaca, que iam cravar.

O termo de nossa tarefa sorri em um sábado esplendoroso, que contrasta com as faces embaciadas daqueles infelizes, sempre pacientes em esperar os terríveis acessos intermitentes, sempre em demasia agradecidos à pouca terapêutica, que lhes oferecíamos.

* * *

Colubrejando pela floresta, com o Rio Doce à esquerda, temos a alma pura de quem cumpriu o dever e a satisfação de não registrar desenlace de qualquer de nossos devotados companheiros. A vitória alcançada atribuímos à proteção de Deus, sobretudo quando, ao passar pelo abarracamento de Dr. Emílio Cunha, nos inteiramos de que não só os trabalhadores e auxiliares estavam derreados pela malária, também ele sofria acessos intermitentes.

Vingando a lonjura, montado no Queimado, deixamos o espírito devanear. Recapitulamos nossa retirada da Central do Brasil, a intenção de, pelo esforço próprio, realizar nosso projeto de tarimbar nos trabalhos de construção de estrada de ferro, de conquistar a confiança dos colegas e da Diretoria, de ocupar, sem preterição de outrem, cargos que, por justa promoção, fôssemos chamados a exercer, de ser levada em conta nossa dedicação à Companhia. Houve, é certo, o reconhecimento de nossa lealdade, e por amor disso nos fez a Administração um convite amável para irmos locar um trecho da linha em que as maleitas campeavam deveras. Os únicos que à honrosa convocação acudiram, fomos eu e o Dr. Emílio Cunha.

Meio século é passado e recordando esse caso que, naquela ocasião, tanto nos golpeou e tendo, mais tarde, conhecido os sentimentos de justiça e de generosidade da Diretoria da Companhia, que por muitos anos representamos, justificamo-la invocando o Eclesiastes, que afirma: “Voltei-me para outra coisa, e vi que debaixo do sol não é o prêmio para os que melhor correm; mas que tudo depende do tempo e das circunstâncias.”

Percorrida a trilha na mata, transpusemos o córrego da Lapa. O caminho, agora é franco, não há nele embaraços. Começamos a ter notícias da família, do pessoal da construção e da linha em tráfego. Saudavam-nos com alegria e felicitavam-nos por não havermos contraído a febre. Antes de pardar o sol, chegamos à sede da Secção.

* * *

Na véspera de nossa partida do Cuieté, visitou-nos um grupo de caçadores de curiosidade excitada pela presença de turmas de engenheiros naqueles cafundós. Queriam esclarecimentos sobre a construção da estrada, porque desejavam abandonar os borocotós distantes, onde moravam, para se engajarem no serviço de terraplenagem, apesar de respeitarem, diziam, as tremedeiras da margem do rio, que não eram de “caçoada”.

Satisfeitos com as informações, quiseram vender-nos um filhote de anta, ainda listrado. A compra não nos interessou. Alegamos-lhes a dificuldade de transportá-lo. Ouvindo-nos a alegação prontificaram-se o Francisco Bicuíba e o José Ferreira a conduzi-lo até nossa casa, no Cachoeirão. Custou-nos a antazinha dez mil réis.

Na segunda-feira, por volta de meio-dia, saudaram-nos os dedicados trabalhadores e relataram-nos, desapontados, os incidentes da viagem. Na mata tudo correu bem. A antinha, com um pé amarrado a uma ponta de encorpada peça de embira caminhou, sem dar trabalho, como se fora um porco doméstico. Do córrego da Lapa, para baixo, no descampado, não andou mais, “amuou”. Carregamo-la nas costas até ao sítio do Sr. Antônio Elias, que consentiu em prendê-la em um cercado. O animalzinho estava esperto e alimentou-se de ervas e mandioca que lhe demos.

Antes, porém, de anoitecer, a Dona Maria Pais Leme foi conhecê-lo. Achou-o lindo, quis ficar com ele. Pagava-nos bem. E o pobrezinho amanheceu morto.

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NOTAS

[ 155 ] Helen Colapesattle, Os Doutores Mayo, p. 28.
[ 156 ] Idem, Ibidem, p. 173.

[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]

Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.

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