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O desbravamento das selvas do Rio Doce (Memórias) – EFVM IX

Estrada de Ferro Vitória a Minas

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CAPÍTULO IX

Casas de turmas de Quatis e Boa Vista. Trânsito difícil. Tolices de trabalhadores. Invernada. Ilhados. Mutuns. A mudança. Moradia aprazível. Elevado conceito técnico. Reconciliado o espalha-brasas. Novos planos. O engenheiro setuagenário. Aceleração no trabalho. Homem disciplinador. “Julguei-os hipócritas.” Gente enfezada. Admoestações. Feitores semi-embriagados. Impropérios do chefe. Linha telefônica. Exasperado. Babou-se de raiva. Frase indecorosa. Tocaia. Surrado e amarrado. “Seu Góis está aqui.” Condenação. Palavras respeitadas.

A casa de turma dos Quatis, escreveu-nos o Dr. Bosísio já estava construída, conforme aviso que lhe dera o empreiteiro, Sr. Virgínio Fernandes. Remetia-nos as plantas contendo o projeto de implantação da linha a partir da estaca 1.750. Devíamos locar os dez primeiros quilômetros para, com urgência, ir arranchando as turmas da construção. Um armazém estava sendo instalado em Quatis e depois outro seria montado, próximo de Boa Vista, lugar em que o Sr. Virgínio Fernandes já havia iniciado a construção de outra casa de turma para ser nossa moradia.

Ele, como chefe da Divisão e com a aprovação do primeiro engenheiro, havia dividido, a partir de Natividade, atualmente Aimorés, o trecho a construir em três residências: a primeira, com vinte quilômetros, confiada ao auxiliar Teodorico Tourinho, sob sua direção imediata, a segunda ao engenheiro Mário Eppinghaus e a terceira sob nossa orientação, com quinze quilômetros cada uma. As residências eram regidas por instruções claras, em que se ressaltavam os preceitos técnicos e reiteradas recomendações de ordem, disciplina e economia.

Partimos com a família, depois do almoço, de Porto da Esperança para Barra do Manhuaçu. Aí pernoitamos em casa do Sr. Antônio Bittencourt. E D. Calu, sua Exma. Esposa, e ele nos cumularam de gentilezas tamanhas das quais jamais nos esquecemos. Foram sempre nossos boníssimos amigos e aqui registramos os nossos agradecimentos a suas almas benfazejas.

No dia imediato transportamo-nos de uma ribanceira a outra do Manhuaçu em canoa. As cavalgaduras atravessaram-no a vau de orelha.

E depois de darmos um último adeus ao Sr. Bittencourt, seguimos a trilha que serpeia, na mata, a margem direita do Rio Doce. Revemos a vereda que havíamos, muitas vezes, percorrido com o Dr. Pedro Versiani, quando nordesteamos para assinalar a linha de exploração da estrada. Por vezes temos de parar porque ouvíamos o aviso do arrieiro que cuidava dos cargueiros guiando-os — “Caminho entupido”, “pau atravessado”, “pedra rolada”, “barranco caído”…

Através dos claros da floresta conseguimos furtivamente enxergar, da outra banda do rio, a Pedra do Lorena, as do Cágados e a do Resplendor e, uma vez por outra, as águas espumantes do rio.

Agora perlongamos a encosta gnáissica que mergulha na corrente borbulhante do caudal impetuoso que, apressado, vai engrossar-se, a jusante, com os seus tributários.

Está vencida mais da metade da jornada. Melhora a vereda através de capoeiras, que revestem a planura larga, entre o rio e a sofralda das colinas. Vadeamos alguns riachos e avistamos, depois de passar no armazém desprovido, levantado de madeira roliça, coberto de zinco, o descampado que o Rio dos Quatis limita. A casa de taipa, em que vamos residir, situa-se a cerca de duzentos metros da barranca do Rio Doce, em terreno de caída fraca.

O moço, encarregado do armazém, o trabalhador e cozinheiro, a turma de campo com um feitor ou primeiro baliza e seis ou oito trabalhadores, são, nos primeiros dias, os nossos companheiros e vizinhos, distando o armazém de nossa residência quase um quilômetro.

* * *

Abrigados os jornaleiros principiamos, três dias após a nossa chegada, a locar a porção da linha férrea cuja construção nos foi confiada.

Avaliamos a imensa responsabilidade que oprime nossa pequena experiência. Forcejamos por evitar consultar o chefe da Divisão acerca de minúcias técnicas e administrativas na execução dos serviços. Esta preocupação leva-nos a ter cuidados, quiçá excessivos, em só adotar resoluções, depois de muito bem examinadas e amadurecidas. Sem hesitações e com tal disposição de ânimo nos entronizamos no cumprimento de: nossas obrigações.

Ainda não se aparelhou a residência de auxiliares técnicos e de escritório. Tudo, em nossa tarefa, laboramos locamos, nivelamos, contra-nivelamos, levantamos secções, apontamos os nomes dos trabalhadores presentes ao serviço, organizamos folhas de pagamento…

Só o primeiro baliza, Sr. Joaquim Guimarães, nos auxilia, por ser o intermediário entre nós e a turma. Acabou por ser nosso amigo dedicado. Inteligente, disciplinado, ativo, fazia respeitar-se. Ornavam-no qualidades de comando, justiça, prudência e energia. Acertava com os trabalhadores os casos que surgiam, as diferenças que despontavam e, só depois de tudo sanado, relatava-nos as ocorrências por ser de seu dever, dizia, assim proceder, para que nos cientificássemos das tolices daquela gente.

Esse rapaz fluminense campista, de tão excelente caráter, apenas era alfabetizado. Não fez o curso primário.

Caprichosamente diarizamos, com alegria, os nossos serviços. Absorvido por eles não nos poupamos a canseiras e, por vezes, à noite, toscanejamos quando a desoras ainda manuseamos cadernetas, plantas e perfis.

* * *

Não havia decorrido uma quinzena da chegada a Quatis, e recebemos aviso de que o engenheiro Mário Eppinghaus aguardava que lhe participássemos a transferência de nossa morada para a casa da turma de Boa Vista, em construção, para vir instalar os trabalhos da segunda residência.

De pronto escrevemos ao Sr. Virgínio Fernandes rogando-lhe apressar a construção da obra a fim de fazermos a mudança.

* * *

O nosso plano de imediata retirada vai ser retardado.

Certa noite, troveja e chove torrencialmente. De manhã ainda mais se enfarrusca o tempo e, não tarda, caem chuviscos que se transformam em aguaceiros e chuvas pesadas, contínuas. Sucedem-se os dias, o céu mantém-se carregado e a borrasca não passa. O Rio Doce, seus afluentes e confluentes, grandes e pequenos, avolumam e transbordam.

E assim como o sol brilhante floreja aquelas florestas, aqueles bosques, aqueles relvões, nascidos nos claros da mata, e espalha louçanias por toda parte, assim com ele contrasta a chuva procedente de um céu cinzento, a qual engrossa águas, torrentes e terras e a todos entedia e aborrece. A tristeza, porém, que nos causa, naquela conjuntura, a invernada, não se compara com os seus malefícios.

Dia a dia os escassos gêneros do armazém diminuem e afinal se esgotam. Está ali, naquele barranco de rio, um punhado de empregados da Companhia, segregados de sua assistência. Nem sequer temos uma canoa para mandar à Barra do Manhuaçu, arrostando o mau tempo, buscar recursos. Por via terrestre nem excogitamos, porque os riachos, além e aquém de Quatis, não oferecem vau. Suas águas ensoberbecidas remoinham. Desafiam a imprudência de qualquer ousado. Do lado do Ocidente a mata virgem impera. Homem não a penetra, ninguém a transpõe.

Depois de seis ou oito dias começam a apresentar-se pequenos intervalos de estiada. Durante um deles divisamos, na várzea alagada, pássaros corpulentos, que tentam escapar de nossas vistas e embrenhar-se nas imbaubeiras. São mutuns que fogem, piam e rouquejam. Calçado de botas e rebuçado numa capa, afrontamos o charco. Apontamos a espingarda a uma das aves e abatemo-la. Ao ouvir o estampido sai correndo de um barraco o primeiro baliza, aproxima-se de nós, procura, acha e apanha o estimado cracídeo e consegue matar outro.

Foi uma alegria. Ao feijão, arroz e farinha que minguavam, ajuntamos nacos deliciosos de mutum e continuamos esperançados em socorros que, por certo, nos mandaria o gerente dos armazéns.

Pouco a pouco melhora o tempo até que o sol levanta, e três dias depois de cessar a chuvarada chega, puxada, de galho a galho, pela musculatura rija dos barqueiros, uma canoa trazendo mantimentos, alguns ameaçados de deterioração por estarem umedecidos.

Urge a saída de Quatis. Não chove há cinco dias. Os ribeirões, porém, só dão passagem tranando-os. Há trechos alagados da vereda que margeia o Rio Doce. Não hesitamos e resolvemos tornejar as inundações, os charcos, as origens dos lacrimais, as cabeceiras das grotas e atravessar a montante os álveos dos riachos, onde fosse possível vadeá-los.

Orientando os trabalhadores, enfrentamos as dificuldades. O Guimarães e sua turma esbofaram-se nos trabalhos variados: ceifar, derribar e arrancar ervas, arbustos e árvores, escavar encostas e construir estivas.

Cautelosamente empreendemos a mudança. As cavalgaduras são guiadas pelos camaradas servindo de arrieiros. Por vezes, enterram os cascos, e os condutores sustentam-nas, livrando-as de quedas que pudessem contundir os cavaleiros ou avariar cargas alceadas e embruacadas.

Sem acidente vencemos cerca de nove quilômetros, distância que medeia entre Quatis e Boa Vista. Aliviamo-nos dos imprevistos da viagem. A casa de turma, a nossa desejada sede da terceira residência, fora barreada na véspera da chegada. As paredes, apenas, estavam enchombradas. Um carpinteiro ainda pregava nas portas e janelas dobradiças, fechaduras e taramelas. “O fogão ia ser improvisado. Havia de se dar um jeito, porque não há chapa de ferro, mas há o recurso de se fazer trempe de pedras” — informou o aludido operário.

Apesar de todos os estorvos, eu e minha mulher estamos satisfeitos, porque adormecemos as preocupações relativas à moradia requerida por outrem.

* * *

Depois da invernia persistente mais apreciada é a luz brilhante do sol que brinca, ora nas águas de rios, regatos e lagoas, ora nas copas e flores de árvores, arbustos e tufos de relvas, ou nas superfícies rugosas ou lisas das serranias desnudas, emprestando-lhes, por vezes, reflexos matizados e resplandecentes.

A casinha que a Companhia nos dá para residir plenamente nos satisfaz. Pela manhã é alagada por intenso fulgor, e pela tarde é ensombrada, por encosta de suave aclive, que vai findar no solais da montanha. Está bem situada.

Coberta de tabuinhas, de paredes entaipadas sem emboço e reboco, é assoalhada e não tem forro.

Compõe-se de uma sala, onde funciona o escritório, de dois quartos-dormitórios e de uma pequena varanda. Nesta, tomamos as refeições e colocamos os porangos em que se decanta a água. A cozinha é prolongamento da varanda.

* * *

Com regularidade prosseguem os trabalhos. Nossa faina na instalação das tarefas é semelhante à que já descrevemos, quando iniciamos a construção do trecho de Porto Belo.

Implantamos o eixo da linha com rigor. Confiamos na planta proveniente de nossos trabalhos de exploração e, também, no do engenheiro projetador por nos merecer elevado conceito técnico. Colhemos excelentes resultados na locação que diarizamos. As tangentes e as curvas de concordância adaptam-se, conforme a topografia do terreno.

* * *

Deixamos, numa tardinha, a última estaca da locação fronteando com a casa do Sr. Lopinho, nosso conhecido de má recordação, em face de seu procedimento censurável para com o Dr. Pedro Versiani. Não nos apareceu. Não o procuramos.

Seis horas da manhã do dia imediato chegou em nossa casa o espalha-brasas daquelas paragens. Vem presentear-nos com um cacho de banana. Estava reconciliado com a gente “braba” da estrada de ferro.

No decorrer da construção foi seu jornaleiro, tirador de madeira, e mais do que isso, foi amigo, sem fumaças de valentão.

* * *

Está locada a linha até algumas centenas de metros, além da futura estação de Resplendor, quando nos avisou o chefe da Divisão que, breve, se nos apresentaria um engenheiro para prosseguir a locação, e que devíamos acelerar os trabalhos de construção.

* * *

Comunicava-nos, ainda, que o escritório da Divisão já estava instalado em Natividade, atual Aimorés; que a derribada e rolação na primeira e segunda residência estavam sendo executadas, com urgência, pelo empreiteiro Sr. Virgínio Fernandes; que a parte metálica da ponte sobre o Manhuaçu já havia sido encomendada; que a Companhia pretendia entregar ao tráfego em dezembro de 1907 ou princípio de 1908 sessenta quilômetros a contar de Natividade, última estação inaugurada.

Possivelmente, dizia-nos, a nossa residência, que tinha quinze quilômetros, passaria a ter trinta ou quarenta e cinco, e que já se havia pensado em nossa futura mudança para Derribadinha ou Figueira, a fim de ficar sob nossa direção a construção da ponte sobre o Rio Doce e, ainda, porque sendo saudáveis esses lugares poderíamos acompanhar-nos da família.

A parte final desse programa não foi realizada por nós, como se verá adiante, porque nos licenciamos.

* * *

As turmas estão acampadas ao longo dos doze quilômetros já locados, quando nos aparece o engenheiro gaúcho Militão de Matos. É homem setuagenário que seduz pela delicadeza de trato, pela brandura que irrompe em sua conversa grave, em que se adivinha a vereda incerta percorrida nos dias compridos de sua existência trabalhosa e adversa.

Prometemos dar-lhe toda a assistência para safar-se bem do encargo de que lhe incumbira a Companhia.

Oferecemos-lhe nossa turma de campo enquanto não organizasse a sua. Acompanhamo-lo até Santana e favorecemos sua instalação fornecendo-lhe o que necessitava para o êxito de seus esforços.

Tudo aparelhado, deu começo o velho, cansado e trôpego, às suas diligências técnicas.

Aos sábados vinha, cedendo a instante convite que lhe fizemos, pernoitar em nossa casa, regressando à sua barraca no domingo, depois do jantar. Chegava fatigado o respeitável ancião. Recebíamo-lo penalizado e descavalgávamo-lo.

Dentro em pouco salteamo-nos com as notícias que nos trazem: o engenheiro não faz o serviço na encosta, pode ser vítima de acidente, afadiga-se em demasia, não dá ocupação à turma… Fomos visitá-lo. Não havia exageração nos rumores. E ele, muito satisfeito pela cortesia, declarou-nos que a encosta era íngreme e escorregadiça, arreceava uma queda, vivia exausto, produzia pouco e se nos fosse possível intercedêssemos por ele à Companhia para lhe dar serviço compatível com sua idade.

Asseguramos-lhe nosso interesse pelo seu pedido, que foi, em parte, considerado, e a essa ocorrência referimo-nos quando, em março de 1949, por delegação do Dr. Henrique Cerqueira Lima Filho, saudamos o Dr. Elói Chaves por ter sido o autor do projeto referente ao Decreto n° 4.682, de 9 de janeiro de 1923, que criou as caixas de aposentadorias e pensões.

Dissemos então:

Fui testemunha de situações aflitíssimas, de ocorrências impressionantíssimas. Construía, em 1907, o trecho de Quatis a Conselheiro Pena da EFVM. Da locação de parte desse trecho foi incumbido um engenheiro gaúcho distintíssimo. Já havia completado setenta anos. Estava em completa decadência física. Era impossível locomover-se em encostas abruptas, em vales profundos. Não podia vencer os obstáculos que se lhe deparavam. Inúmeras vezes, com minha família, tive de assisti-lo e socorrê-lo. Apeava-o. Cuidava dele com simpatia, com amizade.
Até que um dia, lá partiu o boníssimo colega com o prometimento de receber da Companhia seis meses de vencimentos e a dispensa. E depois… a miséria, o desamparo, o abandono…

* * *

Com a decisão tomada pela Companhia prescindindo da ajuda do Dr. Militão, novas instruções foram-nos transmitidas. Devíamos refazer a locação executada por aquele engenheiro, prossegui-la e enfrentar a construção, à medida que fôssemos locando, além do limite da terceira residência.

Nelas já se mencionava a próxima vinda de tarefeiros e empreiteiros com recomendação para ativar o preparo do leito dos quinhões que lhes fossem concedidos.

Nossas ocupações ainda mais se dilataram e o pior é que não aparecem os auxiliares prometidos.

Localizam-se, dia a dia, novas turmas. Os apontadores são morigerados. O administrador, Sr. Urbano Salgueiro, é esforçado, maneiroso e enérgico. São eles as sentinelas atreitas, afeiçoadas ao serviço.

Minha mulher socorre-me. Dita-nos da caderneta as notas para desenharmos as plantas e perfis e organizarmos projetos e registro de cortes e aterros.

* * *

Entardece. Acabamos de voltar a casa. Ouvimos tropear, no caminho de serviço agora alargado, cavalgatas. É intenso o estrépito. À frente do séquito surge um garboso cavaleiro que perneia em seu macho árdego e passarinheiro.

Percebemos sua desenvoltura ainda antes de nos saudar com um “boa tarde, é o senhor o engenheiro da terceira residência”?

— Sim senhor. Queira apear.

— Sou o engenheiro Feijó. Venho continuar a exploração a partir da última estaca afincada pelo engenheiro Versiani, seu ex-chefe. Trago-lhe carta de recomendação do chefe da Divisão, Bosísio, a quem me credenciou o primeiro engenheiro Esquerdo. Aqui ficarei hoje com os auxiliares, camaradas e animais.

Novamente o convidamos para descavalgar. De pronto o fez. E loquaz dá-se por engenheiro pela segunda vez, e apresenta-nos carta de recomendação do chefe da Divisão e antes de a lermos vai inculcando-se como especialista em traçados de estrada de ferro. O Dr. Nolasco soube de suas habilitações e resolveu aproveitá-las. Os trabalhadores, sob sua direção, cedo, adquirem o hábito de ordem, obediência e boa produção. É disciplinador.

Interrompemo-lo. Avisamo-lo de que se aproxima a hora do jantar. — Entremos — dissemos-lhe — no escritório, que é, também, a sala de visita e onde acomodaremos o senhor e seus auxiliares. Queiram todos descansar, enquanto vamos providenciar hospedagem no barraco da turma de campo para os jornaleiros. As malas e os instrumentos podem ser arrumados no salão que vão ocupar, é do que dispomos e prazenteiramente lhe oferecemos.

Saímos, entendemo-nos com o primeiro baliza e tudo foi combinado para se albergarem os camaradas.

De volta, recebeu-nos satisfeito o recomendado da Companhia, que se revela cavalheiro distinto, de maneiras civilizadas.

A modesta varanda, em que foi servida a refeição, mereceu elogios, e o trivial achou ele saboroso.

Findo o jantar passamos ao escritório.

Queríamos dar-lhe a impressão de um hospedeiro obsequiador e evitamos linguarejar, preferindo que o técnico ilustre e de nomeada o fizesse. Expandiu-se à vontade. Narrou fatos ocorridos no desempenho de comissões difíceis. Engrandeceu peripécias de viagens perigosas. Confrontou, comparou longes e inóspitas regiões, por ele percorridas e desbravadas, com a zona do Rio Doce em que havia matas virgens sem importância, muito inferiores às do Norte e Oeste do , país. “Falam em febres intermitentes. Que valem? Nada. Curarei os trabalhadores com facilidade.”

Não sei se lhe devia dizer: — “Reprovo as exagerações e condeno-as. Há cerca de três horas conheci o senhor e foi o único que não me fez a propaganda negativa de maleitas. Os demais me receberam com exclamações. “Como! Vai arriscar-se a contrair paludismo!?” E ouvi um rosário de frases desse teor. Esses homens medrosos, esses chefes acovardados, são os grandes inimigos da Companhia.”

— Mas doutor, se eles o receberam assim asseguro-lhe que a advertência foi preveni-lo sem terem a intenção de desafamar a Companhia.

— Respeito a sua interpretação mas, reafirmo-lhe, não me abalou a acolhida que me dispensaram. São refalsados; hipócritas. Neles não encontrei cordialidade espontânea. Não prossigo expondo-lhe todo o meu juízo. Não desejo desgostá-lo.

E apesar desse rasgo de cortesia continuou, por mais algum tempo, a conceituar como elementos maus os dedicados engenheiros da Companhia, descolorindo seus esforços e sacrifícios.

Preparadas as camas, aproveitamo-nos de uma pausa de suas exprobrações e demos, como delicadeza, as boas-noites.

O alvorecer do dia vem encontrá-lo fazendo matinada. Trabalhadores atarantados campeiam pela capoeira buscando machos matreiros, outros examinam as bruacas, as cangalhas, as ferramentas e dois ou três, talvez os de sua confiança, retiram canastras, trânsitos, níveis, balizas do escritório e recebem ordens, admoestações, censuras.

De véspera havíamos recomendado ao nosso cozinheiro e ao da turma que servissem muito cedo o café. Todos desjejuados podia o Dr. Feijó apressar e apoquentar aquele magote de aliciados, em sua maioria, de caras enfastiadas.

Feitas as despedidas, apresentados os agradecimentos, a brava e elegante personagem parte, à frente de sua gente enfezada, prosseguindo, de fronte sobranceira, o caminho de direção sinuosa. À direita borbulham as águas do Rio Doce.

O último do grupo é o Sr. Antônio Sousa, engajado no serviço de estafeta da turma, grande conhecedor daquelas paragens. Mateiro respeitável, de barba grisalha no momento de estribar vem apresentar-nos adeuses e segreda-nos que o chefe lhe parece muito brabo e se não se ajeitar com ele retornará na fiúza de lhe darmos a mesma ocupação, porque já nos provou saber exercê-la.

— Lembre-se, Sr. Sousa, que, auxiliando o Dr. Feijó, ajuda o senhor a Companhia. Capriche em agradar-lhe — reguingamos-lhe.

* * *

Estão distribuídas as notas de serviço dos primeiros doze quilômetros da terceira residência. As barracas achamboadas afeiam as cercanias do eixo da linha contrastando com o lindo aspecto de vegetação variada que orna a restinga do rio. As nossas andanças ao começo e ao fim do trecho em construção já monotonizaram o trajeto.

Em um sábado, dia de fornecimento às turmas, retornávamos a casa descuidado, rédea solta, confiado na marcha lenta e segura do Queimado e em sua mansidão, quando, ao entrarmos numa curva do caminho, onde o terreno, lateralmente, estava vestido de espessa capoeira, deparamos com duas turmas de trabalhadores cujos feitores semi-embriagados, enraivecidos se injuriavam e ameaçavam com revólver. Tocados estavam seus subordinados. De inopino, achamo-nos em situação incerta no meio daquela gente inebriada.

Recordando o fato não afirmamos que houvéssemos tido calma refletida ou audácia, mas que lhes intimamos, com energia, nos entregassem as armas. Fomos prontamente obedecido. Ordenamos-lhes que se recolhessem às barracas, caminhando uma turma em nossa frente e a outra nos seguindo. E ainda fomos, respeitosamente, atendido. Ambas deixamos cambaleantes em seus acampamentos.

Surpresa maior nos assaltou no dia imediato. Quando despertamos, pela manhã, estavam cosidos com a porta do escritório os dois feitores. Envergonhados da bebedeira suplicavam desculpas e despediam-se. Desculpamo-los e não aprovamos a renúncia. Restituímos-lhes os revólveres.

Tornaram-se nossos amigos dedicados a partir daquele momento. E, cumpridores de suas obrigações, jamais se embriagaram.

* * *

O estafeta da turma de exploração do Dr. Feijó, de passagem para Natividade, entrega-nos uma carta. Agradece-nos ele, mais uma vez, a hospedagem que lhe proporcionamos. Manifesta-nos as dificuldades que despontam. A turma não corresponde, com dedicação, à execução de suas ordens. Falham os seus propósitos, estão falindo os seus esforços. Apesar da deficiente cooperação dos engajados no serviço, remete ao primeiro engenheiro cadernetas e perfis de alguns quilômetros de linha explorada.

Dirige-se, também, declara-nos, ao chefe da Divisão, a quem pede ajuda no envio de bons trabalhadores. Se não o socorrerem, desabafa, o seu malogro será completo.

O Sr. Sousa confidencia-nos que já se conformou com os impropérios do chefe, que prima em alacaiar os auxiliares, em aturdir e humilhar os trabalhadores. “Até hoje — diz-nos — não me desfeiteou e se o fizer despicar-me-ei de seus desaforos.”

Com as aberturas do estafeta sigilosamente esparramadas, aonde chegava, nenhum jornaleiro iria subordinar-se a um amo que se inviperava facilmente.

Tentamos preservá-lo da dissolução da turma, mas até aqueles que preferem trabalhos de foice e machado recusam-se a ir para a mata, porque o homem é muito brabo. A propaganda desfavorável ao engenheiro avolumou-se demais. Danou-lhe a reputação.

* * *

A residência aquinhoa-se com um inestimável melhoramento — a ligação com as outras sedes por uma linha telefônica. Atenua-se nosso insulamento. Já nos comunicamos com facilidade com o escritório da Divisão, situado em Natividade, última estação inaugurada e dotada de serviço telegráfico.

* * *

Quando o Sr. Antônio Sousa regressou, noticiando não haver possibilidade de recrutar trabalhadores para a exploração, já o Dr. Feijó se havia exasperado e ameaçara alguns de pancadas, os quais escapolem, dia a dia.

Na linha em construção, não mais murmuram os dislates do engenheiro. Sua irascibilidade está divulgada. Boatam ocorrências inverossímeis. Dizem-no ríspido, temerário, louco, sanguinário…

As cartas levadas pelo estafeta desagradaram-lhe. Enfureceu-se e a cólera transbordou. Irado, não se conteve, cometeu absurdos, violências.

* * *

Percutiam os feitores os triângulos de ferro roliço, anunciando a hora de recomeçar o trabalho, quando o Sr. Sousa nos saudou e passou a relatar-nos seus apertos.

Ao crepuscular do dia anterior o Dr. Feijó incriminou-o de não se haver esforçado no engajamento de jornaleiros para preencher os claros da turma. Não aceitou suas escusas e no auge da indignação invectivou-o e jurou cortar-lhe a barba a facão. Babou-se de raiva. Bamboleou a cabeça como surucucu enraivecida preste a dar o bote. Peneirou-se em sua frente, como o beija-flor desidratado diante da corola de uma passiflora. Ele arrostou o atrevimento da fera, encarou com o chefe e esperou. Célere furou-lhe o pensamento a desgraça de ambos.

Se fosse atacado tinha de se embridar e de se defender. E sangraria o insolente de morte; sem remorso o mataria.

Deus, porém, dele se apiedou e o engenheiro, que chispava em ira, lentamente se vai reprimindo e retirou-se hirto gungunando, bufando a fama de seu valor.

Matutou o Sr. Sousa, recordou-se de outra cena, horas antes presenciada por ele, em que o chefe se altera com um trabalhador, arrasta-o pela picada até frontear com um airizeiro, saca rápido do revólver, encosta-o, de prancha, na orelha do desgraçado, aciona por vezes o gatilho. O infeliz atordoado escapa-se, joga-se contra a palmeira agressiva, estrepa-se nos acúleos, safa-se do ardil cruel, espavorido, precipita-se pela mata cerrada e some-se. E o doutor solta uma frase indecorosa e uma gargalhada selvagem.

O homem é perverso. O estafeta persuade-se que lida com um desassisado. Não pode e não quer eliminá-lo. É seu amo, deve-lhe respeito. Pensa, medita. Não se acovardará a ponto de deixar que sua barba caia, em flocos, tosquiada, a facão, contra sua vontade. Isto nunca. Se ele tentar pôr obra à ameaça é obrigado a trucidá-lo e estará perdido para o resto da vida.

Será um foragido e os chefes da estrada procurarão capturá-lo. Afinal a solução reponta — fugir.

Cautelosamente retira seu macho do cercado. Nele monta e parte. Em certo momento lhe parece ouvir tropel. Pára, assunta. É ilusão. Esporeia o burro que aligeira a marcha. Zoam os passos estugados ao animal banhado em suor espumante. Duas léguas vencidas, deixa de ser enluarada a noite e a escuridão protege a fuga. Ao chegar ao ribeirão de Santana já os galos amiúdam. Ele reflete e esconde-se atrás de um bloco de pedra. Se o maldito vier, dá-lhe cabo da vida.

Quando o sol rompe, encontra-o firme na tocaia e, como ninguém o encalçou, veio fazer-nos o relato do ocorrido e prosseguirá, até Natividade, para de tudo cientificar o chefe da Divisão.

Não alcançou nossa morada mais cedo para não nos molestar, mas temendo o ataque do endemoninhado, dele resguardou-se tocaiando-o.

* * *

Telefonamos ao Dr. Pedro Bosísio, após a partida do Sr. Sousa. Resumimos a impressionante narrativa e conjeturamos a dispersão da turma.

À tarde comunicamo-nos ainda com ele e participamos-lhe a chegada de outro fugitivo, que nos anunciou a retirada de Dr. Feijó para Caratinga, ao alvorecer do dia e de haver presenciado a surra que ele aplicou ao auxiliar Góis, deixando-o amarrado em uma árvore, antes do cruzamento da vereda para aquela cidade.

Cientificamo-lo, ainda, de já haver providenciado a volta, na madrugada do dia seguinte, do camarada que nos trouxe a notícia, acompanhado de um parceiro, cada qual montado em uma cavalgadura, conduzindo outra ajaezada para trazer o cativo, depois de o alimentar e pensá-lo.

Essas notícias propalaram-se em toda a construção. Na linha em tráfego chegaram engrossadas pelos boateiros, pelos maldizentes. Nunca se vira isso — um engenheiro humilhar trabalhadores inofensivos, encadear auxiliares morigerados, judiar de subordinados. Incrível!

Estouraram protestos. Queriam confirmação das crueldades cometidas pelo monstro. Telefonavam-nos. Pediam pormenores. Comentavam. Sugeriam-nos medidas violentas contra o desalmado.

Noite alta chegaram os emissários. Trouxeram o auxiliar e bateram à porta anunciando, repetidamente — “seu doutor, seu doutor, seu Góis está aqui”. Despertamo-nos, hospedamos o pobre moço e pensamos suas equimoses e feridas, espalhadas na cabeça, no tronco e nos membros.

Efetivamente havia sido ele seviciado. Plangia. Estava derreado pelas pancadas.

* * *

A emotividade generaliza-se. Amiúde tilinta o telefone. Querem notícias e sucedem-se as perguntas — “o Góis, o auxiliar, o desventurado, chegou? Foi encontrado vivo? ou morto? Está muito flagelado?” E à proporção que dávamos os esclarecimentos desabafavam tremendos juízos. Argúem o engenheiro de nomes que se relacionam com o de crueldade. Desejariam entrar no conselho de sentença do júri, em que fosse ele réu de tão hediondo crime, para votar a condenação…

Sugerimos ao Dr. Bosísio deixar amortecer a exacerbação dos espíritos e que o auxiliar só comparecesse ao escritório da Divisão, depois que estivesse fisicamente restabelecido e de ânimo levantado.

* * *

Aceitou o chefe da Divisão nossa sugestão e perguntou-nos que medidas devíamos adotar contra o Dr. Feijó — nós, os engenheiros da construção. Sabia que lhe competia resolver o assunto, sem tardança, mas queria deliberar de acordo com o pensamento dos colegas. “Há — acrescentou — alvitre aceito por alguns, de mandar capturá-lo e conduzi-lo preso até Vitória, entregando-o à Polícia.”

Dissemos-lhe que discordávamos inteiramente desse parecer. Não era atribuição da estrada fazer prisões. Trabalhadores e operários iriam presenciar um chefe, detido por ordem de seus pares, passar, como prisioneiro, através das turmas. “Lembremo-nos que toda a nossa autoridade provém de duas palavras: “engenheiro” e “chefe”. Assim respeitemos essas divisas e resguardemos nossos deslizes das vistas de nossos subordinados.”

Foram dois positivos a Caratinga com reiteradas recomendações de acatamento ao chefe. Lá não mais o encontraram. Trouxeram, porém — aparelhos, trenas e balizas — por ele deixados, sob a guarda de uma casa comercial.

O Dr. Feijó, souberam, havia prosseguido derrota para a estação mais próxima da Leopoldina. Constou-nos, depois, que vendera os animais e, no Rio, justificara-se perante a Diretoria e prestara contas do adiantamento recebido.

O auxiliar Góis, restaurado na saúde e com a alma aliviada de tamanhas torturas, não permaneceu na Companhia.

[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]

Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.

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