Rio Doce
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CAPÍTULO II
Linhares em 1905. Decadência. Reerguimento. Terra maravilhosa. Progresso delirante. O Rio Pequeno. A Lagoa Juparanã. Visita de D. Pedro II. Ilha do Imperador. Rio de São José e suas matas. Pescarias e caçadas. O caboclo indispensável. Apólogo. “Rodas ponteadas”. Versos soltos. Histórias fantásticas. Paisagens. Borboletas amarelas. |
O sol já havia começado a descair quando se passava o Campinho de Cima e não há demOra em divisar Linhares “na margem esquerda do rio, no alto de uma escarpa formada pela projeção para o sul de uma ponta da grande planície terciária que fica ao norte do Rio Doce.”:[ 45 ] É o antigo quartel[ 46 ] ou “povoado de Coutins que mais tarde foi denominado Linhares, em homenagem ao titular desse nome”,[ 47 ] o Conde D. Rodrigo de Sousa Coutinho.
Nesse ano de 1905 já se notava que Linhares havia passado por dias de maior esplendor. Os sinais do início de decadência eram visíveis e a inauguração da estação de Colatina, em 1906, da Estrada de Ferro de Vitória a Minas seria o fator decisivo de seu abatimento. No ano seguinte a sede do município é transferida para o antigo arraial de Santa Maria.
A primitiva aldeia de Coutins experimenta decênios angustiosos de empobrecimento. Jamais, porém, os linharenses e os seus amigos deixaram de lutar pelo reerguimento de sua vila, “situada em uma muito alta barreira em forma de meia lua para o Rio Doce”, no descrever de Francisco Alberto Rubim.[ 48 ] O trabalho, a perseverança e o amor desses lutadores triunfaram e entoaram, por fim, o hino da vitória. Para o triunfo muito concorreram a fundação da fazenda experimental de Goitacases, os incentivos conferidos aos cacauicultores baianos pelo governo do Coronel Nestor Gomes, a construção da rodovia de Vitória a São Mateus e, ainda, a criação do município de Linhares, desmembrado do de Colatina pela interventoria de Jones dos Santos Neves, e a instalação da comarca pelo governador Santos Neves. A construção da ponte sobre o Rio Doce, começada no governo de Carlos Lindenberg, foi concluída no do período do Governador Jones e completará a obra necessária para o pleno desenvolvimento dessa região ubérrima. A cil carinhosamente cuidada pelas administrações municipais cresce rápida e singularmente.
E essa terra maravilhosa quando “violada”, na expressão de Beresford Moreira, “abre-se em cacauais, algodoais, coqueirais, canaviais, cafezais e mandiocais, mas ao homem torna macilento e febril”. E assim era, mas a dedetização sistemática das choupanas, das cabanas, das casas, e das sedes das fazendas correu o espantalho da malária, e os linharenses, hoje, com orgulho justificado, campeiam de progressistas, enfrentam resolutos a agrestia do meio, porque sabem que nele está o garimpo, onde podem explorar não os metais preciosos, mas as gemas de outra espécie: café, cacau, algodão, coco, cereais…
E Linhares cresce, alarga-se, amplia-se e com ela sua população se adensa, porfia no progredir da cidade, labuta, moireja com tenacidade e trabalha, enfim, ordenada e confiante.
Nessa planície ou chapada terciária a que se refere Charles Hartt e sabiamente descrita por J. Branner, duas cidades do Espírito Santo lampejam em sua história: Linhares e São Mateus. Esta ser o povoado do Cricaré ao tempo do primeiro donatário e ao qual o grande taumaturgo do Brasil José de Anchieta batizou depois, com o nome do apóstolo do telônio; e aquela, porque já na segunda metade do século XVI Sebastião Fernandes Tourinho reconheceu, ou “explorou o local”,[ 49 ] quando subiu o Rio Doce, segundo Álvaro de Oliveira, “plenamente abonado por Urbano Viana”.[ 50 ]
A oeste a meia-lua de Rubim-Linhares é banhada pelo Juparanã, ou Rio de São José, ou Rio Pequeno assim chamado pelo linharense que, no seu amor à terra, parece, quando usa desse apelido, golfar chispas de misticismo e destacar, mais ainda, a magnificência do Nilo Brasiliense[ 51 ] que a beija, apressadamente, ao sul. A leste e ao norte, ela, possuidora da altiplanura ilimitada edifica-a, corajosa e febrilmente. Dominam na cidade a atividade construtora, o trabalho eficaz e a cooperação espontânea. Surgem as belas vivendas, os colégios, as agências bancárias, as olarias, as serrarias… e diminuem os mocambos, e aparecem os jardins.
Após o declínio veio, a tropel, a marcha delirante para o cimo. Neste momento o linharense, com o seu nativismo efervescente, espelha-se nas ligeiras ondulações das águas borbulhantes do rio, que desgrudam os grãos de areia do alto barranco, em sua corrida contínua para o mar. Desse movimento, dessa agitação constante recebe ele o estímulo para ascender inteligentemente, perseverantemente, com suas energias redobradas, ao cume da civilização, do progresso, em suas variadas formas.
Seguindo-se do porto do Rio Pequeno, ao arrepio das águas, e atentando em suas margens, anota-se que a da esquerda esbarra, quase sempre, no araxá terciário, e a da direita em pleno inferior de camadas aluviais.
Ao avizinhar-se da Lagoa Juparanã o rio corre através de formação quaternária. É a várzea, o vargedo, ou o “recreio” da Lagoa Grande, como no local é denominado.
Cientistas, historiadores, excursionistas, turistas, jornalistas, que visitam Linhares são atraídos pela fama das belezas da Lagoa Juparanã, e as impressões que possam receber são completas, no conceito dos linharenses, se a ela se chegar pela via fluvial, pelo Rio Pequeno. Hartt considerou-o como canal e descreveu:
A lagoa está situada a uma distância de cerca de duas milhas para o noroeste de Linhares, e comunica-se com o Doce em Linhares, por um canal muito estreito e tortuoso, porém profundo, chamado Rio Juparanã, que corre por sobre os baixos terrenos arborizados que ficam para o lado das escarpas.
Veríssimo Costa, em seu estilo singular e ameno,[ 52 ] depois de assinalar a esplêndida viagem, a cavalo, até Guararema, onde passa para bordo do vapor Muniz, que desatracou para prosseguir na tortuosidade do largo e fundo canal que lhe oferecia o pequeno rio medianeiro dessas duas majestades, que por seu intermédio correspondem-se e trocam suas águas e produtos, e de registrar a multidão de pássaros com suas plumagens e seus gorjeios, termina:
E assim o vapor seguia para meio desses encantos naturais, nos conduzindo, até que entramos na imponente lagoa cujo extremo confundia-se no horizonte.
E o turista espanhol, Dr. José Casais, sintetiza a sua excursão de Linhares à Lagoa Juparanã de modo preciso:
…no desperdicié Ia ocasión para excursionar a Ia Laguna Juparanã, nascida del rio San José y ligada al Doce por el rio Pequeno. Este último, sinuoso en casi todo su curso y marginado por vegetación espléndida, arrastra masas de “balsedos” o plantas flotantes que le dan un original aspecto.
Assim como a Guanabara e a Baía do Espírito Santo, com o estuário do Santa Maria, onde, na ilha, está edificada a cidade-resépio, têm tido suas belezas assinaladas, enaltecidas, cantadas, também o altoplano, em que se assenta Linhares, verdadeiro mirante natural, tem servido para arrancar do excursionista, do observador, frases, expressões, conceitos que traduzem, eloqüentemente, o arrebatamento, a admiração, o enlevo que o domina, que o estatela, que o extasia.
D. Pedro II, que visitou Linhares em 1860, a cavalo, percorrendo o itinerário Vitória, Serra, Nova Almeida, Santa Cruz, Riacho, Linhares e Lagoa Juparanã, não fez exceção, e da chanura elevada, empolgado pelo incomparável panorama, exclamou: “Nenhum mais belo!”[ 53 ]1 frase equivalente à de Henri Coudreau, quando mais tarde, navegando certo estirão do Rio Tocantins, exaltou-o registrando: il est 1e plus beau.[ 54 ]
O trecho de Riacho ao fim da Lagoa do Aguiar, o Imperador viajou em canoa. Em 1932, setenta e dois anos depois, fizemos a mesma excursão, e pareceu-nos pouco se haver modificado o quase nenhum progresso da região, notado pelo Imperante. Estamos, entretanto, informado de que, hoje, a colonização espontânea está desbravando a zona e nela penetrando vitoriosamente.
D. Pedro II, o príncipe estudioso, patriota, caprichoso tanto quanto se pode ser em se aprofundar na história do Brasil, conhecia, por certo, o renome, o extraordinário renome, do grande Lago Giparanã, a que se refere o Governador Silva Pontes, as incursões de Sebastião Tourinho, e de outros,[ 55 ] e tudo quanto já se havia escrito sobre o Rio Doce por historiadores e por visitantes do estofo de Augusto de Saint-Hilaire, do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied e de Francisco Alberto Rubim.
Interessam-lhe os grandes como os pequenos problemas do Império. Acabava de estar na Cachoeira de Paulo Afonso. Em Vitória preocupou-se em organizar um vocabulário do dialeto dos Puris[ 56 ] e, provavelmente, sua ida ao Rio Doce seria, de há muito, aspirada e acariciada, porque lá encontraria ele o rio selvagem, a Juparanã encantada e vasta, e o gentio para satisfazer-lhe a curiosidade, e quiçá quisesse ele acertar, em chegando ao Paço, providências administrativas adequadas para beneficiar a rica região deixada sempre à margem, quase ao abandono. No Rio, porém, encontrou o Monarca uma situação que se agravava, dia a dia, com a Questão Christie, com as desconfianças e mesmo injúrias das repúblicas vizinhas, do Sul, e, finalmente, depois da queda de vários ministérios, com a Guerra do Paraguai.
As impressões da viagem ao Nilo Brasiliense, à Lagoa Juparanã, cujas paisagens deleitaram Sua Majestade, do almoço na Ilha de Santana, servido numa “pedra pardacenta e nua”,[ 57 ] por haver o soberano preferido a pedra, no alto da ilha, a “opípara mesa que havia sido de antemão preparada debaixo de seguro e lindo barracão”,[ 58 ] todas essas comoções possivelmente se esmaeceram no turbilhão dos acontecimentos que, breve, cobririam Sua Majestade de muitas e respeitáveis cãs.
A grata recordação, porém, da visita de D. Pedro II ao primitivo Rio de Santa Luzia[ 59 ] persiste inalterada, e o linharense que, de princípio, substituiu o nome da Ilha de Santana pelo do “almoço”, passou a chamar-lhe Ilha do Imperador[ 60 ] por lhe parecer essa denominação mais expressiva, e ainda por lhe despertar maior ufania.
Em várias ocasiões perlongamos as margens da Lagoa Juparanã em canoa a remo, a motor, e em gaiola. Em 1924, mais uma vez, percorremos esse decantado lago e subimos o seu principal alimentador, o Rio de São José, até à Cachoeira da Onça.[ 61 ] Nesse ano, da lagoa às nascentes, o rio não contava com um morador sequer. Possuía soberbas matas até suas origens, na Serra dos Aimorés, muito peixe e caça.
Participamos dessa excursão, como convidado do Dr. Domingos Cunha, catedrático da Escola Nacional de Engenharia, do Dr. Sílvio Betim Pais Leme e do Coronel Lastênio Calmon que desejavam, de visu, avaliar as riquezas florestais da região, para fins industriais.
Quando esguardavam dentro da mata uma copa de peroba, de jacarandá, de vinhático, de cedro ou de jequitibá, detinham, por algum tempo, a marcha da canoa e estimavam o volume da árvore secular e, como conheciam a densidade, deduziam a massa com razoável aproximação. Comentavam as despesas de derribada, de secção em toros do velho tronco, de transportes… Faziam cálculos de toda natureza, aplicáveis ao caso, e até o de probabilidades, objetivando dados amplos e suficientes a fim de resolver se conviria ou não abater “o decano das selvas”.[ 62 ]
Por essa época a Lagoa Juparanã, a Juparanã-Mirim ou Lagoa Nova, e outras continuavam a ser fracamente povoadas. Algumas como a das Palminhas, a das Palmas, a do Limão e quejandas não eram permanentemente habitadas. Jaziam abandonadas. Em todas, de longe em longe, em ocasiões consideradas apropriadas, se faziam pescarias e caçadas. Fisgavam-se traíras, piaus, curimatãs… e abatiam-se lontras, caititus, antas… Alardeavam-se as pescarias maravilhosas e as caçadas inacreditáveis. Piava o macuco ou imitava-se o seu pio, e a onça cautelosamente se aproximava. Vezes havia que não era esta, mas o veado arisco que, abelhudo, se apresentava, ou a cobra traiçoeira que, rastejante, sibilava. O caçador prevenido devia contar, também, com o imprevisto. A notícia da abundância de caça espalhava-se. A fama corria e organizavam-se excursões venatórias e, ainda, em 1940,[ 63 ] como hoje, caçadores planeiam visitas à região do Rio Doce na esperança de abater variadas peças de sua fauna.
De volta, cada qual conta sua proeza e nos racontos é assinalada. quase sempre, a personalidade humilde e matreira de um caboclo. Ele cuida dos cães. É o cachorreiro indispensável. Guia-os no rastejo do animal. Anima-os, buzinando. Assobia. Estuma-os. E levantada a caça é ele que indica a direção da corrida, os pontos de espera, o caidor no rio ou na lagoa. Dirige a canoa, persegue a paca ou a capivara em seus mergulhos, a anta ou o veado em seu nadar acelerado. Se a caça é de aves ele descobre a jacupemba embrenhada, o mutum enfunado nas galhadas altas, o zabelê desconfiado, a capoeira, apesar de seu mimetismo…
E quando, de regresso, se chega ao pouso, ao barracamento, é o cozinheiro canhestro, O caboclo, que passa no coador o café, que improvisa o almoço ou o jantar e que, no dia subseqüente, ao amanhecer, oferece o peixe assado ou a carne enfiada no espeto, bem temperada, cozida ou tostada no braseiro, com a apreciada farofa, e a chaleira fumegante com a infusão apetecida da rubiácea famosa.
É companheiro útil. E se à noite lhe dão uma pouca de pinga, então se toma loquaz. Inventa histórias inverossímeis. Mente para distrair os “homes da cidade”. Relata fábulas. Toca, enlevado, o cavaquinho e canta.
Um narrou: “Certa vez meu irmão foi à Lagoa das Palminhas. Anoiteceu no “recreio” dela. Ele e outros companheiros não puderam dormir por amor dos bichos. Fizeram uma grande fogueira, mas o fogo não arribava, morria. A imundícia podia mais do que ele. As nuvens de mosquitos impediam as labaredas e eles não respeitavam nem a fumaça.”[ 64 ]
De outro[ 65 ] guardamos o apólogo: era uma sexta-feira santa e um caçador, sem atender os rogos de sua dona, foi caçar. Assim que penetrou na mata virgem deparou-se-lhe um bando de macacos. O homem apóia a espingarda ao ombro para fazer a pontaria, de imediato um dos monos que sustinha um filhote exclama: “Muié toma o Gabrié, que eu quero vê o que esse home qué.” O caçador pasmado caiu sem sentidos e só no sábado de Aleluia foi encontrado, ficando leso por muitos dias.
Durante uma caçada à Lagoa Nova[ 66 ] em que tomamos parte, o Dr. Guilherme Santos Neves[ 67 ] colheu de Ubaldo Costa Porto,[ 68 ] curiboca de fama como cantador, dançador, sapateador e tocador de harmônica e de viola, interessantes “rodas ponteadas”:
“Eu não amo,
eu não bebo, eu não durmo
Iaiá,
somente só imaginá — ei…
Mas vô deixá do ciúme
pra podê vivê sossegado — uai…
Adeus pancadão da soidade,
Iaiá:
Eu vou mudá desse logá — oi…”
E mais a cantiga do belo cavalo de Chiquinha, que tem uma pata firme e a outra trôpega:
“o cavalo da Chiquinha
tem um andá por natureza:
uma mão pisa firme,
e a outra não tem firmeza.
O cavalo da Chiquinha
é o suco da beleza!
Você diz que me qué bem,
eu também tô te querendo.
Um bem se paga com outro,
nada eu fico devendo.
O cavalo da Chiquinha
é o suco da beleza!”
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E, ainda, outra em que o cantador revela a pouca sorte em seus amores, os seus queixumes e a pertinácia de querer bem à moça.
“Não sei que hei de fazê
pra moça me querê.
Mora perto de mim
não vai lá em casa me vê.
Assim mesmo,
eu quero bem a você.”
O repertório de Ubaldo era vastíssimo e o Dr. Santos Neves registrou, além de cantigas, versos soltos que refletem, sobejamente, os costumes, as necessidades, os desengano, o vício e os romances daquela gente simples, resignada e decidida:
“Amigo que está fumando dá
ua fumaça pra eu —
Tenho fumo, tenho palha
meu canivete perdeu.
No tempo que eu cantava,
Nunca encontrei cantadô —
Cantei com Zé da Bernarda,
nêgo véio abrasadô.
Meu cravinote
que fogo não me negava,
no dia dos meus aperto
nem ua faísca botava.
Eu não bebo mais cachaça
nem meu mano gosta dela:
Eu bebo garrafa e meia,
meu mano, meia tigela.
As meninas da vizinha
não pintia mais o cabelo:
vevem na hera do rio
namorando os canoero.”
Os canoeiros do baixo Rio Doce, como os das lagoas próximas, geralmente, cantam suas mágoas, seus amores, suas alegrias.
Por essas paragens correm lendas notáveis. Algumas contadas no lar pobre do caboclo conservam-se vivas, constituindo tradições e quiçá verdades para sua alma simples. Outras, porém, vão, pouco a pouco, desaparecendo.
Assim a Juparanã e o Rio de São José têm as suas histórias fantásticas.
Neste, afirma-se que, à meia-noite, quem estiver próximo às suas margens ficará alucinado, e desvairado julga ouvir o bater de remos na água. O ruído vai-se avolumando e chega a parecer que se distingue até o barulho de pancadas numa embarcação e, por fim, percebem-se vozes aflitas, respirações ofegantes… E, então, a alucinação passa. Tudo some e as estrelas espelham-se nas águas tranqüilas do rio. :É a lenda dos remadores noturnos.[ 69 ]
Naquela, o quadro fictício abrange maior amplitude. À meia-noite surgem galeras enfileiradas em ordem de combate, movem-se, depois, garbosas e ameaçadoras nas águas do majestoso lago. Cruzam-no em todas as direções. Parecem procurar o inimigo oculto em alguma reentrância de suas margens ou pela Ilha do Imperador. Vultos marciais comandam-nas e constituem seus almirantes, seus oficiais, seus marinheiros e, enfim, sua tripulação. Fogos fátuos, estranhamente potentes, erram, em seguida, na parte central da lagoa. São os archotes das galeras, que suplantam o luar, que ofuscam! as estrelas. Assim o fenômeno criado pela fantasia atinge o apogeu.
Ao romper do dia, com os primeiros pios dos pássaros, antes dos gorjeios das avezinhas canoras, tudo se dissipa. A Juparanã deixou de ser encantada.[ 70 ]
A lenda, a tradição popular, por ser fruto da imaginação, exprime, apenas, o relato, completamente adulterado, de fatos, que perdem no tempo e no espaço todo vislumbre de verdade.
A Lagoa Juparanã sem ser “a encantada” apresenta paisagens esplendorosas, deslumbrantes. Aí vai modesta síntese feita de quadro por quem teve a dita de senti-lo, mas não de descrevê-lo com a devida mestria.
A doze quilômetros de Linhares a linha telegráfica aproxima-se da margem esquerda da Lagoa Juparanã, alcançando a fazenda das Três Pontas, hoje abandonada. É daí que se descortina um panorama empolgante e belíssimo. É vasto. É majestoso.
A cavaleiro da lagoa, sobre o seu barranco, o espectador, quase a seus pés, num desnível de vinte e cinco a trinta metros, vê ora um espelho amplo, cheio de enigmas e mistérios, arrebatando a imaginação ardente para um mundo desconhecido de ideal inatingível, ora ondas revoltas e encapeladas bravas como o vendaval que as produz ou como o indígena que, outrora, errou naqueles sítios vizinhos. Na margem oposta distingue ele diversas praias com cintilações de prata ou pequenas clareiras atapetadas de relvas, sobressaindo pelos seus verdes característicos, moitas de mandioca ou de cana-de-açúcar e, pelo branco pardacento das coberturas de pindoba ou de aricanga, casinhas toscas, sem conforto. No fundo, quando a lagoa começa a curvar-se para a direita, emerge humilde e garrida, como a mestiça que mora defronte, a Ilha do Imperador. Além se estende, em todo sentido, a floresta virgem em cambiantes que se sucedem, desde o verde-claro reluzente ao escuro quase negro, confundindo-se com o horizonte, num abraço longo e suave, como o imenso azul do céu, destacando-se nela disseminados, irregularmente, outeiros e serras.[ 71 ]
Além do grandioso quadro panorâmico acima pouco relevado, aparecem, de súbito, painéis que retratam belezas de lugares dessa região plena de atrativos naturais. Certa vez viajamos, a cavalo, da Lagoa Juparanã a Linhares, e ao avizinhar-nos do corregozinho do Louco o caminho passa entre dois algares e depara-se-nos uma paisagem singular. Logo que descendo, esguardamos o gracioso vale, avistamos bem junto das margens, na areia esbranquiçada e úmida, duas curvas quase simétricas, que limitam pequenas superfícies cobertas de borboletas cor de enxofre. Umas estão paradas, outras, porém, deslocam-se formando chispas que parecem grandes pepitas de ouro em movimentos rápidos, desordenados. O conjunto assemelha-se a dois halos separados pela água límpida, cristalina, que recebe raios incidentes do sol e os reflete, enquanto o lacrimal se some, a montante e a jusante, em colchões magníficos de tufos verdes ladeados por arbustos da quaresma em flor. As grandes árvores, à direita e à esquerda, do caminho, montam guarda à linda perspectiva. E passarinhos insetívoros saltitam nas galhadas e na linha telegráfica e caçam os lepidópteros extraviados e os besouros escondidos.
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NOTAS
[ 45 ] Charles F. Hartt, obra citada, p. 127.
[ 60 ] Eugênio de Assis, Dicionário Histórico e Geográfico do Estado do Espírito Santo, p. 150.
[Reprodução da primeira edição publicada pela Livraria e Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1959, como parte da Coleção Documentos Brasileiros. Publicado originalmente no site em 2004.]
Ceciliano Abel de Almeida (autor) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas, tendo trabalhado nos primórdios de sua construção, sendo também responsável por importantes obras de infraestrutura no Estado. Foi o primeiro prefeito de Vitória, ES, professor de ensino secundário no Ginásio Espírito Santo e primeiro reitor da Universidade do Espírito Santo, quando de sua fundação como instituição estadual.