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O estrangeiro

Para ilustrar uma ideia de limites no uso de recursos naturais, um velho livro do conservador Molinari, hoje perdido pelas minhas estantes, falava de uma experiência feita em seu pomar. Havia um certo número de fruteiras e um certo número de pássaros com seus territórios determinados. Molinari concluía, se bem me lembro, que o uso da natureza tinha regras inflexíveis. A população de pássaros era estável em relação às fruteiras. Parece que ele queria também ilustrar algo da ideia do equilíbrio econômico geral.

A reminiscência vem a propósito do comportamento de meu cachorro que, na manhã de ontem, olhava alternadamente para mim e para o cimo da árvore de acerola. Um olhar interrogativo. Logo percebi o que o preocupava. Nas manhãs normais há sempre uma confusão de vozes passarinheiras. Mas é um caos organizado já que existe o propósito comum de saudar o dia que começa ou se inclui entre as providências próprias do universo da passarada. Pois na manhã de ontem havia um clima diferente. Nada do barulho costumeiro. Em seu lugar, apenas um forte ruído emitido, sem dúvida, por um pássaro. Meu cachorro, muito cioso de suas obrigações, continuava a me olhar, aguardando instruções. Todo o quintal ocupado apenas por aquele ruído que não pode ser chamado de canto. Uma coisa assim parecida com um rasgar de pano. Meu cachorro, à falta de maiores informações, começou a latir. Mas o ruído continuou. Logo depois pude identificar a fonte do barulho: um pássaro grande, maior que os bem-te-vis habituais, em cima da copa mais alta da árvore. Como não consegui saber que tipo de pássaro era aquele, fui até ao escritório para fazer a consulta costumeira ao extenso tratado de ornitologia do Sick.

Foi difícil encontrar um protótipo daquela ave que perturbava o meu cachorro talvez, instintivamente, preocupado com o equilíbrio das fontes de alimento existentes no quintal, institucionalmente sob sua responsabilidade. Uma preocupação que se estenderia aos habituais inquilinos da minha quase meia dúzia de árvores. Por fim, na página 262, identifico no desenho do quero-quero (batuíra ou maçarico) o estranho visitante da manhã. Ouço falar desse pássaro, de sua agressividade, de sua preferência por alimentação de origem animal, mas é o primeiro que vejo, ao vivo. Fico então sabendo que existem dele três espécies residentes e sete migrantes Como estamos em setembro e é época de migração, são maiores as probabilidades de que esse quero-quero ou afim que apareceu por aqui seja um migrante. Um estrangeiro que, para meu espanto, pode ter vindo de não menos que dos “hiperbóreos de além do Círculo Polar”, conforme leio no Sick. O naturalista diz que esse pássaro percorre 20.000 quilômetros até aportar aqui e chega à Terra do Fogo percorrendo mais 5.000. Algumas espécies viajam até 800 km por dia e a 200 quilômetros da costa. Os primeiros que nos chegam ainda portam restos da bela plumagem das festas de núpcias. Não pude verificar esse detalhe em relação a meu eventual hóspede porque ele passou a ficar escondido entre a folhagem.

Continuo folheando o livro do Sick e vou até sua apresentação, que é feita por Carlos Drummond de Andrade e que ainda não tinha lido. Mais surpresas.

Helmuth Sick — diz Drummond — nasceu em Leipzig. Jovem ornitólogo, chegou ao Rio de Janeiro em 1939. Deixou a esposa na Alemanha e veio embrenhar-se nas selvas do rio Doce, em missão científica resultante de convênio internacional. O Brasil entra na guerra e todo alemão passa a ser considerado espião perigoso, mesmo em potencial. Pelo sim, pelo não, Sick é internado na Ilha Grande. Aí, não podendo estudar aves em sua cela, estuda míseros companheiros de solidão: pulgas, percevejos, cupins — só destes últimos, identifica onze espécies desconhecidas. Melhorando os tempos, foi contratado pela Fundação Brasil Central. Mais tarde recusou o cargo de diretor da Seção de Ornitologia do Museu Zoológico de Berlim, preferindo prosseguir em seu trabalho no Brasil. Drummond termina sua apresentação fazendo um agradecimento, em nome dos homens e mulheres deste país. É o que fazemos, agradecendo também, no caso, ao quero-quero que resolveu mudar a rotina do quintal. Afinal, há tanto tempo com esse livro na minha estante, não havia ainda tomado conhecimento das interessantes informações de Carlos Drummond de Andrade sobre o sábio germânico.

[Crônicas de 2004. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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