Não basta ao homem a informação. Ele – o conhecimento – não se instala como “verdade” na vida de quem o procura. Na maioria dos casos, ele remenda o que a vida e as circunstâncias históricas trataram de esgaçar e ferir.
Há de se ter esta visão em perspectiva quando se analisa a obra do poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914), certamente um dos mais controversos e polêmicos poetas da literatura brasileira.
Nascido no Engenho Pau d´Arco, no sertão da Paraíba, Augusto dos Anjos deixou gravado na memória de nossa língua um livro único denominado Eu e outras poesias. Em uma literatura de tantos autores profícuos, o poeta paraibano perfila entre os autores de uma obra única e definitiva, a exemplo do grande poeta Dante Milano e de Álvares de Azevedo, autor da Lira dos vinte anos.
Embora não afeito à análise de um autor partindo de uma escola em que ele se insira, talvez por um viés atribuível à minha não origem na Academia ou a uma ausência de sentido do termo “escola”, em um tempo de poesia vária, onde inexiste uma unidade estrutural ou temática, seria impossível falar de Augusto dos Anjos sem dizer dos inúmeros textos que abordam sua obra sobre esse prisma.
Sejam quais forem os estudos e em que época foram produzidos, a concordância é de que Augusto dos Anjos é um “poeta de confluência”, não podendo ser estudado em apenas uma direção, nem localizado em um só período. Não só esse trânsito é pacífico entre os que se aventuraram pela sua crítica, mas também o reconhecimento de que ele comunga com características que se opõem com radicalidade, muitas vezes num mesmo texto poético.
Assim resumiu a estudiosa Lucia Helena a obra de Augusto dos Anjos: “um soneticista da poesia cientificista do realismo-naturalismo com ecos de simbolismo”. E ela ainda foi incompleta, como veremos…
A grande crítica feita ao olhar impressionista dos primeiros críticos de Augusto dos Anjos foi a acentuada exaltação do eu augustino, sua trajetória de vida e seu sofrimento pessoal – homem sensível, fragilizado pelas circunstâncias familiares e de saúde (atribuíram sua morte, erroneamente, a uma tuberculose) – como fator quase que único de análise da obra do poeta. Nada mais divergente quando se trata de um poeta com evidente caráter expressionista, de vanguarda, que, com uma estética diversa de sua época, buscou situar o homem de seu tempo. Obviamente o “eu lírico” se nutre das circunstâncias, mas, como as transpõe para o poema, os recursos estilísticos e a mescla do clássico com o porvir modernista é que merecem um maior detalhamento, quando diante da obra desse grande poeta. Como consequência dessa abordagem, por muito tempo a crítica literária e os livros didáticos reservaram a Augusto dos Anjos epítetos reducionistas como “poeta da morte” e “poeta do horroroso”.
Com o surgimento da “nova crítica”, a partir dos anos 50, tendo à frente o crítico Afrânio Coutinho, uma critica agora menos amadora, realizada em nível da “Academia”, com um olhar menos impressionista e priorizando a estética, a obra de Augusto dos Anjos passou a despertar maior interesse dos pesquisadores.
Sigamos, então, os breves passos desse “filho do carbono e do amoníaco” e suas “negras sombras” pela terra “dos lázaros”, até ser colhido pela morte “ a costureira funerária” que lhe costurou “a última camisa” em 1914 e o lançou “na frialdade inorgânica da terra”.
Os primeiros poemas de AJ apresentam acentuado traço simbolista como nos mostra o soneto “Vandalismo”:
Meu coração tem catedrais imensas,
templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas,
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos templários medievais,
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos…
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
Mas a grande e definitiva transformação ― aquela que tornou a poesia de Augusto dos Anjos única ― ocorreu com sua ida para Recife, para cursar direito.
Com o fim do Romantismo previa-se um futuro sombrio para a poesia. A poesia havia se tornado incompatível com o espírito de uma época onde o avanço da ciência e a predominância da razão impediriam a sobrevivência das ilusões, dos sentimentos e da imaginação – então matéria-prima do “eu lírico”. Mas o que fazer, se a poesia é algo fundamental para a humanidade?
Como alternativa à crise por que passava a poesia brasileira, surgiu a poética científica, que teve na Faculdade de Direito de Recife, nas figuras de Silvio Romero, Rocha Filho e Martins Junior, alguns de seus principais teorizadores.
Em Recife, Augusto dos Anjos entrou em contato com o Racionalismo religioso de Spencer e o Monismo de Haeckel . Ouviu e, sobretudo, leu sobre a morte do Deus antropomórfico e pessoal e o surgimento de uma nova trindade, a trindade monista constituída pelo “Verdadeiro, o Bem e o Belo”.
É nesse momento que Augusto dos Anjos se apropria de termos biológicos e médicos para expressar seu espanto diante da expansão que ocorre do entendimento humano.
Foi a partir dessa marcante influência do cientificismo nos poemas de Augusto dos Anjos que muitos críticos o taxaram de poeta científico. Críticos da grandeza do poeta Lêdo Ivo e de Antônio Cândido, que definiram Augusto como “um rastilho da explosão” cientificista. Mas, conforme nos mostra o poeta na estrofe abaixo, colhida do poema Monólogo de uma Sombra, os críticos novamente incorreram em uma simplificação:
Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem…
E apenas encontrou na ideia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!
Ou ainda do poema As Cismas do Destino:
Homem! por mais que a Ideia desintegres,
Nessas perquisições que não têm pausa,
Jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os fenômenos alegres!
Outra corrente crítica é a que insere a obra do nosso poeta maior no período denominado Pré-modernismo ou Belle Époque. Período de transição, que não alcançou o status de escola literária, caracterizado pelo ecletismo que surgiu em 1902 com a publicação do Canaã, de Graça Aranha, e Os Sertões, de Euclides da Cunha. Período que, em tese, durou cerca de vinte anos, de 1902 a 1922.
Augustos dos Anjos “viria a se inserir perfeitamente” nesse período de obnubilamento e estranhamento, em um final de século (XIX) que, segundo Alexei Bueno, “se caracterizou pela excelência do ufanismo científico, da euforia do conhecimento da ilusão do progresso ilimitado, criador de uma relativa onipotência do homem sobre a matéria”. Mas é um paradoxo dizer que toda perplexidade e negativismo de Augusto dos Anjos possa se inserir em um tempo no qual, conforme nos diz Afrânio Peixoto, a literatura fora concebida como “o sorriso da sociedade”.
Ora, acrescenta a estudiosa Maria Olívia Arruda, denominar Augusto dos Anjos de poeta pré-moderno seria como que “colocá-lo numa espécie de limbo da criação” pois, segue a autora, “ser pré-moderno era o mesmo que ficar em suspensão, permanecer no vácuo entre o romantismo e o modernismo”. Isso atenderia o mesmo objetivo dos que tentaram ocultar a obra do poeta paraibano por considerá-lo antagônico aos poderes vigentes ou um demiurgo deslocado do eixo mantenedor do poder cultural no país.
Creio ser esse o ponto crucial na análise da obra de Augusto dos Anjos. Ponto de inflexão de onde partimos para o que de mais atual e significativo foi dito sobre sua obra.
Passou-se quase um século até que viessem à baila estudos focados em três fundamentos da obra do poeta: a aproximação com o expressionismo alemão, a modernidade dos textos e a culpa como pilar de sua poética.
Talvez o texto crítico que melhor defina as influências filosóficas de Augusto dos Anjos seja o de Anatol Rosenfeld que enumerou os pontos em comum entre o Eu augustino e a poesia dos poetas do movimento expressionista alemão. Obras escritas por autores que nasceram, viveram, produziram seus poemas e morreram na mesma época de Augusto dos Anjos e que, mesmo desconhecidos entre si, apresentaram uma convergência incontestável de ideias.
Se traçarmos uma linha imaginária entre a obra desses autores, teremos como ponto de encontro a obra do filósofo alemão Schopenhauer. Daí Anatole considerar que a principal influência de Augusto dos Anjos não tenha sido Haeckel ou Spencer, mas sim o autor do Mundo como vontade e representação. Diz-nos Schopenhauer:
Parecemos carneiros a brincar sobre a relva, enquanto o açougueiro já está a escolher um ou outro com os olhos, pois em nossos bons tempos não sabemos que infelicidade justamente o destino nos prepara – doença, perseguição, empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura, morte, etc. |
São inúmeros os momentos da obra de Augusto dos Anjos que lembram a obra do filósofo alemão. A evocação de imagens lúgubres com no soneto Solilóquio de um visionário:
Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!
A utilização de metáforas encarrilhadas nos moldes de uma alegoria, utilizando uma de suas imagens preferidas – a do verme:
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Mas é no celebre poema Versos íntimos que o poeta despeja sobre nós toda sua angústia existencial e prova ter bebido do pessimismo schopenhauriano:
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera,
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Poderíamos dizer que, em suas reflexões, Augusto dos Anjos encontrou a verdade dos corpos putrefeitos e assim eles deveriam ser apresentados. Lavá-los destruiria sua pureza e demonstraria a falsidade dos gestos cotidianos.
Falemos agora um pouco do lugar de Augusto dos Anjos na modernidade.
Conforme o grande poeta e ensaísta mexicano Octávio Paz, autor de O arco e a lira, o que distingue a modernidade é a crítica: “o novo se opõe ao antigo, e essa oposição é a continuidade da tradição”.
Ou seja, conforme nos diz Hildeberto Barbosa Filho, “a tradição moderna se cristaliza na ruptura”, e, continua o pesquisador, “é exatamente esta ruptura com a tradição parnasiana, já estéril em tratar do novo momento do homem (…), o primeiro traço de modernidade” em Augusto dos Anjos.
Na mesma linha, Abrahão Costa Andrade vai mais longe, ao afirmar que, ao contrário do que se convencionou pensar― sempre baseado nas convenções advindas da ideia de hegemonia da região sudeste como o eixo central da cultura brasileira ―, “não foi o maravilhoso poeta Manuel Bandeira e sim Augusto dos Anjos o primeiro poeta moderno brasileiro”. Segundo esse autor, a poesia do poeta paraibano não seria uma posição de transição e sim de “ruptura originária: sua poesia seria a origem da moderna poesia brasileira”. Faz-se necessária então, mais uma vez, distinguir moderno (o autor que realizou a ruptura estilística) com modernismo (o movimento propriamente dito com data marcada na agenda história de nossa literatura).
Mas dentro de todo absurdo existe um reino de impiedosas perdas. E qual foi a grande perda – a sombra – que Chico Viana encontrou na obra trágica de Augustos dos Anjos?
A sombra do pecado original.
Em seu O evangelho da podridão, o estudioso, também paraibano, tenta responder: onde encontrar o “elo perdido” do poeta Augusto? Com quantos fragmentos do eu se construiu o Eu caleidoscópico de Augusto dos Anjos? Como, conforme nos diz Secchin, “o poeta busca construir sua precária utopia do uno…?”
E ele nos surpreende ao enxergar um “eu lírico” barroco em Augusto dos Anjos. Um eu despido do humanismo greco-latino que se caracteriza pela graça e pela beleza. Um eu-proteico, chafurdando na lama, por força do pecado original; um eu que aspira ao excessivo e melancólico por saber-se culpado.
E como reage o eu lírico destituído de identidade com o ser supremo, desconstruído e fragmentado? Através da sublimação e da utilização da alegoria para realizar um escambo com o sem-sentido. Daí dizer o autor da impossibilidade da “língua paralítica”, pois a língua não mais diz o ser.
De onde ela vem?! De que matéria bruto
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!
Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!
Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas do laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica…
Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!
Conforme o linguista José Augusto Carvalho, a “língua paralítica” diz da “dificuldade que a linearidade do signo linguístico (encadeamento de palavras) impõe na expressão de uma ideia. Quando pensamos ou quando vemos um quadro, temos a visão global, una, total do que pensamos ou vemos”. Por isso, nos diz o linguística, Drummond diz que “lutar com palavras é a luta mais vã”; por isso Bilac fala nas “confissões de amor que morrem na garganta”. Em outras palavras, “nós pensamos paradigmaticamente, mas falamos e escrevemos sintagmaticamente.”
Augusto dos Anjos trabalha com o conceito da insignificância humana. Daí ser recorrente o antropofagismo em sua obra. Parte-se do esquecimento e chega-se ao esquecimento…
O antropofagismo em Augusto dos Anjos suplanta a obviedade sinalizada por seus primeiros críticos; atravessa o século XX como precursor oculto do modernismo; expande-se ao homem do seu tempo e chega ao século XXI encontrando ainda ressonância, fato em nada surpreendente, porque é a negação da morte, tão bem sinalizada pelo discípulo e dissidente freudiano Otto Rank o grande impulsionador do artista, seja rumo ao salto transcendente camusiano, seja através da sublimação ou da atitude neurótica. Augusto dos Anjos foi este poeta de olhar insubornável, perdido na ausência. Poeta com um olhar entardecido de uma ilusão.
Talvez seja essa a vertente que mais me agrada neste verdadeiro emaranhado critico em torno da obra desse poeta tido como inclassificável. Idiossincrasias e heterogeneidade de conteúdo à parte, talvez o que apenas agora, com o distanciamento histórico necessário, fica claro é que Augusto dos Anjos foi o poeta precursor do modernismo brasileiro. Não como movimento organizado, mas como fruto da revolução cultural e filosófica que impulsionou todos poetas pioneiros do modernismo ― como o caso de Baudelaire ― no mundo ocidental.
Jorge Elias Neto (1964) é capixaba, cardiologista e poeta residente em Vitória – ES. Tem vários livros publicados é colaborador em vários blogs e revistas literárias.
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