Pedro, o escrivão de polícia que, como sabe o grande e o pequeno público, também é escritor, estava concluindo, empolgadíssimo, a leitura do romance Histórias curtas para Mariana M, do seu muito amigo Francisco Grijó.
O romance foi considerado um verdadeiro ensaio sobre a literatura policial, num romance policial que era literatura pura, na opinião de Luiz Guilherme, outro amigo de Pedro e Grijó, que o leu ainda nos originais.
Foi neste estado de distanciamento da realidade que a realidade vibrou no celular de Pedro para lhe dar o aviso de que sua filha Mariana não estava passando bem.
Sem perder tempo, o escrivão largou de lado a Mariana do romance e foi atender a Mariana que necessitava de sua atenção, saindo às pressas das raias da literatura para os raios da vida.
Aqui entra uma primeira observação: a coincidência do nome Mariana, pelo lado de Pedro na vida real, e de Grijó, no mundo da ficção, era de fato mera coincidência. Diga-se também que largou de lado (cf. o parágrafo anterior) é apenas um modo de dizer uma vez que Pedro sabia que tudo que deixasse de lado, na delegacia da Chapot Presvot, ainda que fosse um romance, corria o risco de sumir para sempre. Mãos descuidadas se encarregariam de afanar o-que-quer-que-fosse-deixado-de-lado e nem Sherlock Holmes, Padre Brown, Lew Archer ou Rouletabille – qualquer um deste quarteto que em seu romance Grijó classificou de “primeiríssimo time” dos detetives policiais – seria capaz de recuperar.
Por isso, antes de se lançar em corrida desabalada para atender à filha, Pedro engavetou o romance nos cafundós da gaveta de sua mesa e só então se mandou da delegacia levando sua jaqueta jeans atirada sobre o ombro.
Aqui entra uma segunda observação: porque falamos em Rouletabille, falemos da admiração que Pedro nutria pelo detetive. Para o escrivão, que havia inclusive municiado o autor de Mariana M de informações sobre o dia-a-dia de uma delegacia de polícia e sobre histórias de presidiários que propiciaram uma passagem que é um pantagruélico banquete de canibalismo no romance de Grijó, o autor acertou em cheio quando inscrevera Joseph Rouletabille no time dos primeiríssimos detetives da literatura policial.
Pedro travara conhecimento com o personagem, criado por Gaston Leroux, quando leu O mistério do quarto amarelo. Do quarto amarelo e enigmático, passou para O fantasma da Ópera, a obra mais popular de Leroux, convertido em filme e em peça de teatro.
A partir daí se fez fã de carteirinha do escritor sobre o qual muito pesquisou, chegando até, em determinado momento dessa glorificação fanática, a adotar o hábito, que Leroux tinha, de soltar foguetes da varanda de sua casa sempre que terminava um romance. A diferença estava em que os rojões de Pedro saíam da janela do seu apartamento.
Pois talvez fosse o caso de soltar os foguetões da varanda da delegacia quando Pedro ali retornou duas horas depois, já inteiramente aliviado com a recuperação da sua Mariana, que sofrera apenas um mal-estar digestivo, superado com um chá de cidreira preparado pelo próprio Pedro como aprendera a fazer desde os tempos de Ibitirama.
E como naquele momento o escrivão não tinha nenhum depoimento para ouvir, decidiu fazer o que estava aflito por fazer e antes vinha fazendo: retomar a leitura do romance de Grijó, do qual se apartara bruscamente.
Só que, ao abrir a gaveta para pegá-lo nos cafundós em que os enfiara, lá não mais o deparou!
Em casos tais, a primeira reação é de surpresa, e Pedro se surpreendeu (razão pela qual entrou uma exclamação no fim da frase anterior). A busca infrutífera que a tais casos se segue levou à segunda reação de Pedro, sob a forma de dúvida: será que realmente enfiei o romance na gaveta?
A terceira reação, por que passou o escrivão, foi a de pedir a ajuda de um santo. E Pedro pediu pedinte a São Longuinho, em troca de três longos pulinhos, para encontrar o que procurava.
Mas nem São Longuinho, nem Santa Edwiges, nem São Judas Tadeu atenderam aos pedidos de Pedro, na ordem em que as santidades foram respectivamente invocadas.
Impaciente e acabrunhado, o escrivão procurou no mundo dos vivos quem o tirasse da situação em que se metera, recorrendo a Lenilda, a faxineira da delegacia.
Lenilda estava se despedindo do sobrinho, um jovem estudante que foi visitá-la de mochila às costas para pegar emprestado o celular da tia, quando Pedro a chamou.
Perguntada sobre se viu o romance que o escrivão tinha posto na gaveta de sua mesa, a faxineira respondeu que não; perguntada se sabia de alguém que tivesse mexido em sua gaveta, respondeu que não sabia; perguntada se vira alguém entrar ou sair da sala em que o romance fora posto, a depoente disse que vira; perguntada de quem se tratava, declarou que preferia nada dizer para não ficar em sinuca de bico (na verdade, Lenilda disse que preferia não abrir o bico); perguntada e reperguntada, sob a promessa de que o perguntador manteria em segredo a informação que lhe fosse dada, disse a informante, em atenção ao amigo perguntador, que entraram na sala o delegado Digital, o investigador Pedrinha e o escrivão Nanico, nessa ordem de ingresso, mas não ao mesmo tempo.
“Ninguém mais?” perguntou Pedro.
“Ninguém mais,” confirmou Lenilda.
“Mas você também esteve na minha sala…” disse Pedro.
“Estive sim… Mas o senhor não acha que eu…”
“Claro que não! Foi apenas uma observação de rotina, vício do ofício…”
De posse dessas respostas, todas as elucubrações cabiam agora a Pedro, que as fez, à moda de Joseph Rouletabille. De cara, descartou um possível interesse do delegado Digital pelo livro de Grijó como, de resto, por qualquer livro.
O investigador Pedrinha era outro que, se algum interesse demonstrava pelas letras, era pelas das palavras cruzadas.
Sobrava Nanico que, vez por outra, adentrava as páginas das narrativas policiais, tornando-se assim o suspeito nº 1 de Pedro. Mas bastou um telefonema ao companheiro de ofício para Pedro eliminar Nanico do seu rol de suspeitos, diante da resposta que ouviu: “Não encha meu saco!”
Pedro se viu num beco sem saída, sem outro suspeito de quem suspeitar. Voltou a desconfiar de Digital que, por pura sacanagem, poderia ter surrupiado e destruído o romance de autoria de Grijó, não por ser de autoria desse autor, mas por ser uma obra literária. Mas tornou a eliminar a hipótese: qualquer contacto físico, mesmo que momentâneo, do delegado com uma substância escrita, sobretudo quando escrita com talento, no mínimo lhe causaria uma alergia de 3º grau.
E o investigador Pedrinha, perguntou-se Pedro, para responder imediatamente: Não, Pedrinha era rústico demais até para uma brincadeira de mau gosto.
Descoroçoado – porque era assim que se sentia – Pedro voltou à sua sala e, pela vigésima vez, vasculhou a gaveta da mesa, vasculhou por detrás da gaveta, vasculhou por trás da mesa e mais onde vasculhar pudesse à cata do romance procurado. Mas continuou cata-catando em vão, mais descoroçoado do que nunca. De novo interrogou Lenilda:
“Você tem certeza de que não viu ninguém pegar o romance na minha sala?”
Lenilda tinha certeza. Mas se alguém tivesse pego ou pegado sem que ela visse, era outra história.
Pedro terminou o dia contrariado com o caso do romance desaparecido. Será – já se questionava vacilante – que o levei comigo quando saí às pressas para socorrer Mariana?
Era pouco provável, mas não impossível essa probabilidade. Por via das dúvidas, logo que chegasse em casa tiraria a questão a limpo.
Neste ponto da narrativa o leitor viciado em histórias policiais (não digo que seja exatamente o presente caso) já tem em mãos o elenco de suspeitos que poderiam estar implicados no desaparecimento do romance que Pedro desesperadamente procurava. Vamos repassá-los um a um como se estivessem reunidos numa sala de suspeitos para o grande final: o delegado Digital; o investigador Pedrinha; o escrivão Nanico; a própria Lenilda e até (não se esqueçam dele) o sobrinho da faxineira que entrou de passagem nesta história e saiu da delegacia carregando sua mochila às costas, esconderijo ideal para (com a cumplicidade ou não da tia) enfiar um romance policial que lhe despertasse o desejo de leitura.
Observem os viciados leitores antes referidos que eu estou sendo de uma honestidade a toda prova ao oferecer, em retrospecção reflexiva (ou em reflexão retrospectiva), o naipe de personagens que poderiam ter surrupiado, seja para ler, seja por qualquer outro motivo, o romance Histórias curtas para Mariana M.
Um dado a mais precisa ser dado para que não venham me dizer depois os que me lerem que foram ludibriados por uma trama tramada e coroada com uma solução tirada de fora do texto, como costumava fazer Agatha Christie: o de que o caso do romance desaparecido é uma curta história que caminha pela trilha, ainda que nada sonora, da narrativa psicológica, posto que possa até parecer que não seja.
Feita a observação, que é chave para o fecho da história (estou dando a pista do desfecho sem que me fosse pedida), vamos ao clímax (ou anticlímax) da obra que, neste caso, é esta obra.
O carro de Pedro estava estacionado diante da delegacia, quando nele o escrivão entrou para ir para casa, após o seu expediente. Mal bateu a porta, antes mesmo de ligar o motor, esticou a mão para pegar um maço de cigarros no bolso da jaqueta que havia atirado sobre o banco do carona, quando saíra às pressas para socorrer sua filha. E bastou levantar a jaqueta para que um palavrão se lhe escapulisse da boca:
“Filho da mãe!” – eis o palavrão, não muito palavrão, com que Pedro saudou o aparecimento do romance que estava debaixo da jaqueta (razão mais do que suficiente para justificar não só o palavrão, mas também a forma castiça com que ele foi anunciado neste texto, a saber, “… para que um palavrão se lhe escapulisse da boca”)
Finalizando o texto com o desfecho psicológico anunciado: Pedro havia jogado o romance no banco do carona junto com a jaqueta, apesar de acreditar que o tivesse enfiado nos cafundós da gaveta de sua mesa. (*).
“Lapsus memoriae”, concluiu ele.
Com a alma leve e o coração em festa pôde retornar ao lar, decidido a contar para a sua convalescente Mariana a curta história do sumiço das Histórias curtas para Mariana M, do escritor e amigo Francisco Grijó. Todavia, por uma questão de cautela, e lembrando-se a tempo de uma das epígrafes do romance – exceto pelo que não se vê, tudo é falso – Pedro apalpou com força o exemplar que havia encontrado no carro a fim de comprovar a veracidade do achado.
Tendo-o como verdadeiro e não como uma simples aparição fantasmagórica, disse para o seu prezadíssimo e quase vazio maço de cigarros: é o romance mesmo, e não o fantasma da obra!
(*) O final decepcionante e forçado é a regra geral nas narrativas policiais. Segui a regra.
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)