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O maná do céu e a praga de Alcelina — relato sobre a pesca da manjuba no Pontal de Itapuã nos anos 40.

Comentário

Jair Santos vivenciou durante a sua adolescência — isso nos anos 40 — a rotina dos pescadores do Pontal de Itapuã, em Vila Velha, e é com base nessa vivência que ele faz o relato que se segue, com personagens reais, alguns deles ainda vivos, resultando numa importante contribuição para a memória do município. Na reprodução das falas foram mantidas as palavras e orações originais, a pedido do autor.

No horizonte o alvor diáfano de mais um lindo dia. A faina dos homens de rede começa antes do arrebol. É muito bonito o alvorecer no litoral capixaba. ltaparica, Praia da Costa, Pontal de ltapoã, Barra do Jucu, Ponta da Fruta… Na alegria de viver, a certeza da harmonia do homem com a natureza engalanada. Tudo está perfeito e o otimismo marca o semblante dos que vêm chegando. O céu vai ficando cada vez mais azul. É tempo de monções, a brisa sopra forte vindo do nordeste. Vento duro… é o setentrião da saúde — marca característica do clima no nosso litoral. Na estação quente o litoral do Espírito Santo é diariamente visitado por sucessivos cardumes de manjuba. É tempo de peixe farto e muito conhecido de todas as vilas e povoados de pescadores.

Lá fora, no sobe e desce das ondas, os pescadores da enseada lançam garatéias desde o escuro da madrugada que findou. O silêncio é quebrado pelo incessante marulhar sobre o baixio distante e pelos pios das gaivotas e das andorinhas do mar.

Foto: Jair Santos, 1942.
Nos barracões, homens fortes, de pele acobreada e luzente, dão começo à faina diária. Em aparente desorganização, retiram a canoa e a rede que devem ficar expostas ao sol, ao vento e também para abrir um pouco de espaço no interior da choça. Essas cabanas são abrigos necessários para a guarda de todos os apetrechos de cada grupo que se dedica à pesca de rede e são construídas na parte mais alta da linha da praia.

A conversa vai ficando animada à medida que a turma vem chegando. Todos falam ao mesmo tempo no meio de cantorias e risos. O ambiente é sempre alegre. Dá gosto de se ver. O fogareiro de pedras é aceso com fogo em gravetos para o café e, como coisa certa, lá vem vindo o Russo, moleque sarará, que vende os deliciosos muchás e os bolinhos de arroz da dona lná.

De pé, na boca da choça, assuntando o mar e apurando o movimento, Cabantonho, homem de mando, muito importante, o chefe, dono do barraco, proprietário do barco e da rede, é o amigo e companheiro que garante o trabalho de todos. Experiente, vetusto, dá sinal de sabedoria forjada no fazimento diário, quando prenuncia em tom grave: As água corre dura pro norte.” Todos ouvem e recebem as palavras de bom alvitre. Nelas o mestre anuncia que o tempo está firme e o mar bom pra peixe.

Dali da porta do tugúrio, como bom mariscador, fica espiando o mar. Conversa com um, conversa com outro…, depois chama dois dos seus homens e manda puxar o barco mais para perto do batente das ondas, porque viu que a maré riscou e vai começar a descer. E fica ali na frente do barracão, de atalaia, bem paciente, olhando para a imensidão daquele mundo salso. Enquanto isso, outro homem de muita importância cumpre as obrigações de quem sabe a hora. É Maglória cuidando da arrumação da rede no fundo do barco. Coisa muito simples para ele, porque a canoa não é grande e é de pouca palamenta. Primeiro, bem por baixo, arruma a corda da última ponta da rede e que será levada para a praia depois de completado o cerco ao cardume. Em seguida vem o calão, depois a rede de malha larga. Sempre tareando. No meio da arrumação, o saco, espécie de alvitana ou rede de malha fina (a parte mais resistente e mais importante do conjunto), tareando direitinho pro barco poder correr liso sobre as ondas na hora do ataque. E assim arruma a outra metade, mantendo sempre a chumbada de um lado e as bóias do outro. Por fim separa os remos da proa e da popa.

O sol já vai alto. Cabantonho, lá de cima, continua na espreita, olhando o mar. Os ajudantes por ali, uns conversando, outros pitando…

De repente, o mestre aguça os olhos, cofia o cavanhaque ralo. Mão direita faz aba na testa e resmunga em tom gutural: “Tá lá, e esse é bonito! Deixa vê pra donde ele vai.”

É coisa que só ele distingue nessa lonjura, e mais, saber que rumo o cardume pode tomar! Mas deixa que ele conhece o “bicho” de longe.

“Maglória, ei… Maglória, olha o cardume, vem vindo na direção das ilhas ltatiaia.” Maglória, forte que só um zebu, amigo de todos e sempre risonho, mariscador tão bom como o chefe e muito dunga nas coisas do mar, arruma o cuité, estica-se pro alto e olha aguçado na direção do arquipélago; alarga o sorriso de confirmação e exclama: “É vem manjuba…”

A partir daí a notícia corre feito relâmpago. Parece explodir em festa toda a orla praiana. Inicia-se uma estranha mazorca, seguida de grande vozerio. Faz lembrar um daqueles canjerês que se vê lá pras bandas de Nova Almeida e Praia Grande, no litoral norte.

A manjuba é um peixe muito parecido com a sardinha e de carne igualmente saborosa. Vive em cardumes de superfície e o tamanho máximo de cada peixe atinge pouco mais de um palmo quando adulta, e aparece nos meses de dezembro a março. Para os habitantes das vilas e povoados do litoral espírito-santense é como um maná que cai do céu, porque torna farto o prato das famílias pobres, especialmente quando preparada em fritura ligeiramente queimada de modo a torrar os espinhos pequenos.

Cabantonho explica pro Maglória, seu amigo e discípulo, o seguinte: “Pra peixe de cardume não existe maré arta nem maré baxa e, quando vem vindo que nem esse, depressa desse jeito, correndo dum lado pro outro e às veis se partindo em dois pra torná a se juntá lá na frente, é certo que tem peixe grande comendo por trás. E esse é que é dos bão. Assim chega logo a hora da gente ir pra cima dele. Cadê Jonsé, cadê Curuba? Chama Fiinho mais Cirilino. Tá quais na hora.”

No barracão adiante, seu Carlinho, homem também de mando, está lá com todas as providências arrumadas e pronto para lançar a canoa ao mar, caso o cardume venha no seu rumo. A turma dele está espiando há um tempão.

“É de costume a gente vê o cardume dá uma guinada de rumo, quando se aproxima da praia ou quando alguma coisa espanta ele. Muitas veis isso aconteceu. Ali mesmo, adonde que ele tá, se virá um pouquinho pro sul vem batê direitinho na nossa rede”, fala seu Carlinhos. “Mas se virá um tiquinho pro lado norte e passá pu fora da ilha Pituã, num vorta nunca mais. Vai corrê a Praia da Costa todinha e caí na rede de Demá Guelelê, lá na Sereia”.

O sol subiu um bocado. Já são quase nove horas e o cardume continua vindo no seu rumo. Cabantonho está feliz. Olha para o companheiro Maglória e…

“Vamo?”

“S’imbora”, é a resposta.

A canoa é lançada ao mar, de proa para as ondas, que hoje são pequenas, e o primeiro cabo da rede já fica em terra por conta de Cirilino e Curuba.

Curuba ganhou esse apelido desde quando apareceu aqui na rede todo empipocado de coceira e era um magricela malcomido e malnascido, mas um rapaz bom e trabalhador. Hoje ninguém se lembra do seu nome. Já o Cirilino é filho daqui mesmo, de pai e mãe conhecidos de todos. Ele é um negão do tipo mangangá, sempre bem mandado. Só que demora muito pra começar a se mexer, por isso cada ordem ou pedido já vem acompanhado de esporro e pontapé.

Só um nadinha de água entrou na canoa, porque uma onda pequena, sem vergonha, bateu atravessada a bombordo. Agora com remadas curtas e lentas, o barco é afastado do ponto de quebração das ondas. Maglória, de pé na proa, espia e rema com calma, enquanto aguarda a aproximação da mancha escura que marca o cardume. Pelo seu cálculo, o “bicho” ainda está um pouco além do comprimento da corda que puxa a rede. “É melhor deixá juntá mais um tico.” O coração acelera a batida, fica que só uma múmia, respira fundo, apronta o remo lentamente, porque “o bicho tá quais colocando a cabeça no laço.” Tem que ser preciso. É hora de decidir. Assunta bem e já pode ver que o tamanho do cerco vai dar na medida da corda que segura o primeiro calão. E pensa: “É coisa que só pode sobrá, fartar nunca.” Como um felino à espreita da presa, mantém a calma. Silêncio absoluto.

Cabantonho coloca lentamente a embarcação na posição de ataque. Seus olhos esbarram nos olhos do proeiro. É agora, tudo pronto!

Na praia a expectativa é geral. Todos aguardam o sinal do chefe, sentado na popa. De repente, Cabantonho cerra o punho, risca os olhos no proeiro de pé, ergue o braço e faz como quem dá um soco no vento que ecoa como um grito de atacar.

Agora os dois remam em ritmo forte, constante. O único barulho é o da proa, abrindo o mar em dois, por detrás do cardume, mas ligeiramente afastado.

Cabantonho, remando e de governo na grande curva de cerco ao cardume, vai fechando à medida que avança. Jacumã perfeito.

Em terra, Cirilino e Curuba mantém a ponta da corda sem pressão pro barco avançar ligeiro. Puxar mesmo, só quando o proeiro entregar a corda do segundo calão pro Fiinho e Jonsé, lá do outro lado.

Está tudo indo bem. O cardume parece pressentir o perigo. A mancha escura pára. O barco corre liso, silencioso como pode, deita o primeiro calão no mar. Daí para frente segue lançando a rede à medida que a canoa avança. Cabantonho rema sozinho. Rema e governa. A canoa não pode diminuir a marcha, não pode sair do rumo, não pode adernar. Há como um dueto de força e sabedoria entre os dois homens, em perfeita harmonia com o mar, com o barco e o cardume. Coisa de cutuba para anhangá nenhum botar defeito. Coisa de capixaba nascido e criado nesse litoral, que nem guruçá acostumado a arranhar essas praias tão lindas. O cardume se assusta, muda de rumo, quase não anda…

A praia está apinhada. Tem gente de todo jeito. Todos olham, poucos entendem.

Cabantonho volta a remar dobrado. Remando e governando. Maglória continua lançando a rede. Chega a vez do segundo calão. Após deitá-lo na água, lança toda a corda cuja ponta final está atada ao banco da embarcação. Pega novamente o remo, rápido e em remadas redobradas, na maior velocidade que for possível faz o barco deslizar com a proa na direção da praia. Está fechado o cerco. A corda é desatada do banco e mordida nos dentes para ser entregue a Fiinho e Jonsé que caíram na água para recebê-la.

Fiinho é outro negão espadaúdo, bem encorpado, mas de cabeça pequena e orelhas miudinhas. Fora desse serviço de rede é magarefe no matadouro de seu Rodolpho Valdetaro, lá no pé do morro do convento. Ninguém nunca soube o seu nome, porque pai e mãe sempre o chamaram assim. Já o Jonsé dizem que nunca teve pai nem mãe, porque sempre morou emprestado, desde garotinho, num barraco ali perto do campo do Tupi. O seu nome certo é João José. É um maratimba que veio sozinho lá das bandas de Castelo. Andou se metendo com gente ruim, mas deram uma “prensa” nele que num instante melhorou. Ele é bom, porque tudo que precisa ser feito ele está logo fazendo. Sempre assim, conversando e agindo, não precisa mandar.

Os homens das duas pontas iniciam o arrastão mais ou menos por igual e sem pressa. Procuram controlar a puxada da rede que deve ser o mais uniforme possível de ambos os lados. E levam a corda até a parte de cima da praia.

Pesca da manjuba com rede de arrasto. Foto: Jair Santos, déc. 40.
Nessa hora não se consegue adivinhar de onde vem tanta gente para ajudar. Essas praias são desabitadas. Só se vê uma casa lá no meio da Praia da Costa e outras quatro de taipa, de gente muito pobre dentro desses matos, e nada mais! É uma criançada dos infernos que só serve para atrapalhar. E dizem que eles são a riqueza dos pobres. Tá doido!
Nesse magote entram os banhistas, é claro, eles também gostam dessa coisa diferente de ajudar na pesca de rede. Entre eles, senhores, casais de namorados, alguns janotas, gente de mãos finas muito sem jeito que só quer curtir a novidade para ter o que contar. Aparecem também aqueles que precisam. Ajudam na certeza de que não voltarão de mãos vazias. São as famílias que moram por ali naqueles chavascais e vivem em cima dessa areia quente do cão; gente que, entra ano sai ano, tem garantido o seu “piraém” graças à pesca da manjuba. É muito chato, mas aparecem também homens e mulheres que não prestam pra nada, porque só fazem pedir. São aqueles tipos indolentes que só andam mamados. Dentre eles está sempre presente uma mulher muito conhecida de todos. É Alcelina, filha de um tal Puruca. Dizem que não houve entre aqueles homens um só que não a tivesse levado pro mato. É claro, isso só aconteceu quando ela apareceu ali na praia, novinha, de cabelo liso e comprido até a cintura, bem cabocla, risonha, vestindo uma blusa que mal escondia os seios fartos. Depois que prendeu o primeiro entre as pernas, não perdeu a oportunidade de mostrar a sua personalidade de mulher decidida, muito independente, e não admitia que dois machos fizessem cena de ciúme por sua causa. Todos lembram da “decisão” que deu, aos berros, no primeiro machão da praia “Ei, ei … mas que negoço é esse? Deixe de sê besta homi. Fica sabendo que eu sou dona do meu nariz e vou pra donde eu quisé, com quem eu quisé. Onti eu fui pro mato com você, acabô… hoje eu quero ir é com esse aqui, tá ouvindo?” E assim, no dia seguinte, a sua fama correu de boca em boca nas ruas de Vila Velha inteira. Alguns dias depois todos sabiam que ela era doida por homem e para onde ia, um lote de rapazes saía atrás, feito cadela no cio. Resultado: comeram toda a sua beleza num instante. Hoje é uma mondonga paupérrima que vive da ajuda de todos eles.

“Cuidado!!! Ei, cuidado aí…” Quem grita a pleno pulmão é o Cabantonho de lá da canoa. “Ô Curuba, pede carma a essa gente aí. A rede num pode sê puxada com tanta força. Assim poca o cabo do calão. Ô Curuba, acerta aí o seu lado, homi de Deus. Fala pro Fiinho … Mecê num tá vendo que o cardume é grande e tem peso demais no saco da rede? Vê se acerta o arrasto com o outro lado…”

Lá do barco Cabantonho grita para acertar o que não está bom. Ele e Maglória ficam por detrás das bóias vigiando o cardume e orquestrando o arrastão. De repente a canoa vem vindo com toda pressa na direção da praia. O proeiro se joga na água, ali perto da quebração das ondas, escora o pé no fundo, empurra o barco de volta e sai nadando na direção de Curuba e Cirilino. Nota-se que está afobado, é claro, e mostra que o cardume está ficando fora do centro da rede e pode pegá rumo” na malha larga. Aí foge quase tudo…

“Puxa o seu pessoá mais pra dentro. Esse cabo tá muito aberto, fecha mais, fecha mais… Aí, aí tá bão. Curuba, fala pra essa gente que num precisa força. Manda ir subindo com carma.”

Cabantonho está lá atrás no saco da rede submersa, dum lado pro outro, sem barulho, de olho no cardume e na direção de subida da rede. De lá ele vê que vem chegando o grandão conhecido por Maria Bonita. Na hora H, porque sabe que é homem de precisão. Muito eficiente, porque arruma jeito pra tudo. Dito e feito, de uma olhada, entrou no barracão e já vem descendo com três picuás na cabeça. Ele sabe que daqui mais um pouco os homens que cuidam do arrasto vão precisar dos cestos. Maria Bonita é conhecido de longe porque por onde anda leva na cabeça um chapéu de palha de aba enorme. Diz que é o seu “sombreiro”. Vive de vender peixe por todo canto de Vila Velha. Só vende peixe fresquinho, apanhado na hora. Aos domingos pega de goleiro no Vasco Coutinho Futebol Clube. Uma vez por ano fecha o gol, mas no resto do tempo, é um frangueiro de dar nojo.

A rede está chegando perto. Dá pra ver a grande mancha escura do cardume, bem no centro, na alvitana, mais ou menos no meio da carreira de bóias. Aumenta a expectativa, cresce o vozerio. No semblante de todos desenha-se um misto de alegria e tensão. Os pescadores estão atentos para a subida correta da rede, porque, agora, os dois lados iniciam o movimento de aproximação. Os puxadores devem continuar subindo e se aproximando. Tudo com calma e atenção redobrada. É a hora mais perigosa, porque o cardume começa ficar apertado entre a rede e o fundo mais raso.

“Olha só, olha só! A água tremelicando mais que fervura.” O peixe está acuado e tenta sair mas não sabe como. Quando ocorre fuga por cima o jeito é bater com a pá do remo na água e enxotar para trás. Mas, quando o cardume descobre local de fuga pelo fundo, basta meio minuto. Some tudo, como se atendesse ao comando de uma “madrinha”. Aí está tudo perdido, porque não fica umazinha de amostra.

É assim, porque nesse tipo de pescaria a rede é de pequena altura, nunca arrasta no fundo como aquela usada na pesca do camarão. Esta rede só apanha peixe de superfície, como é a manjuba.

Quanto mais perto o cardume, mais escura parece ficar a cor da água. A mancha se acentua no azul escuro, cor do dorso da manjuba. O peixe pula cada vez mais à medida que é apertado no seu espaço. As pontas dos calões já estão aparecendo. É porque a rede está no raso. Fiinho entra na água para arrumar o o calão do seu lado, que está chegando com a cabeça tombada para dentro. Os calões, dos dois lados, terão que subir ali nas ondas com as cabeças tombadas para fora. Só assim a chumbada ficará o mais rente possível do fundo.

“Olha lá, olha… já tem manjuba caindo nas ondas”, exclama alguém. Enquanto isso a malha larga dos dois lados está chegando em cima. Na água, agora só a malha fina, a alvitana cheia de peixe!

“Nossa Senhora, aí deve ter umas cinco toneladas de peixe”, exclamou Curuba no seu exagero. Fiinho de um lado e Cirilinho do outro vão pra dentro da rede e procuram, com os pés, manter a chumbada bem rente à areia. Mais tarde Cirilino explicou: “Mecê sabe, ali onde pocam as ondas o chão nunca é prano e esse é o jeito que a gente dá pra dificurtá a saída das manjubas pelo fundo.”

Toda aquela gente que assiste o desenrolar da maravilhosa faina está descendo pra ajudar e ver de perto o mais lindo espetáculo da nossa terra. Coisa indescritível. Como a manjuba, ajunta-se o povaréu. Cresce a confusão, porque todos querem participar, outros, apanhar o seu primeiro peixe. Já não é vozerio, mas gritaria, porque as vozes são abafadas pelo estalido contínuo do cardume se batendo. Parte dele aparece fora da água em intenso brilho prateado. É o reflexo do sol sobre o ventral do peixe.

É claro que esse magote atrapalha demais e cada pescador faz o que pode para levar a bom termo a sua tarefa.

Neste ponto o comandante das ações resolve fazer valer a sua autoridade e pede aos estranhos que se afastem para que seus homens possam trabalhar. Imediatamente todos os ajudantes reforçam a ordem do chefe e, cada um do seu modo, pede: “Afasta aí, afasta aí pu favô, dê licença, dê licença… Chega prá lá, pode afastá que vai ter peixe pra todo mundo… ” Sem muito resultado. Agora, cada ajudante mergulha correndo o pacará no meio do cardume e sai com ele cheio de peixe que vai sendo lançado na parte de cima da praia, onde não tenha nada que impeça esse trabalho tão pesado quanto corrido. Antecipar a retirada das manjubas com o uso de cestos é a forma preventiva de aliviar o peso excessivo na alvitana, especialmente quando ela já tem algum tempo de uso. Quase todos ali já viram uma rede pocar“.

No meio desse mundo de gente estão também alguns amigos dos pescadores que auxiliam como “fiscais”, “entendidos”, “mantenedores da ordem” e demais providências. Dentre eles são vistos João Forrão, seu Manduca Siri, Maria Bonita, Osmar Garoupa e outros. Mas os moleques são sempre os piores. São como busca-pés e não atendem a ninguém e, o pior, são todos filhos de gente dali. Filhos de gente conhecida. Uma coisa é certa: é preferível lidar com patescos que cuidar dessas pestes.

Autor: Jair Santos. Nanquim.
Ali estão também Jason, filho de Chico Leão, Altamir Bonfim, Caticoco, Toninho Cipreste, pescadores das pedras que vieram abastecer os seus mingachos. Eles preferem catar as manjubas de menos de um palmo, porque são as melhores iscas para quem pesca de caniço nas pedras ou de currico.

Aliviado o peso no saco da rede, o cardume é finalmente puxado para fora do batente das ondas e contido, na medida do possível, contra a fuga e contra o avanço do pessoal. Neste ponto, o mestre quer maior rapidez no trabalho dos cesteiros. A seu mando, Cirilino sai derramando um balaio cheio logo ali no meio do caminho. É uma saída estratégica para afastar um pouco os curiosos que fecham o caminho, as crianças principalmente. Na hora de distribuir caridade, o dono da rede é sempre generoso no seu cálculo, porque sabe que entre tantos, muitos deles são chefes de família que vivem da senga. Por isso, os mais pobres terão sempre manjuba para comer com feijão. Todos devem estar lembrados que, nas taperas do nosso litoral, é comum encontrar varal apinhado de manjuba salgada secando ao sol. É o piraém a ser estocado e que será comido nos tempos de manjuba arredia. É quando só os donos de barco têm chance de pescar de anzol na enseada e no alto-mar. Assim portanto, a manjuba se constitui na pitança dos pescadores mais pobres, aqueles que se iniciam no ofício. A maioria deles nada têm, são serventes que dão tudo de si na temporada da manjuba. O pagamento de cada jornada tanto poderá ser em dinheiro como em peixe. Quanto a isso, há um escambo previamente ajustado, de modo a ser satisfatório para ambas as partes. Fará jus à melhor recompensa aquele que participa no remendo das redes, na fabricação das poitas, na calafetagem e pintura de barcos, nos reparos do barracão e assim por diante.

Desgraçadamente para os mais pobres, de vez em quando aparece o tal intermediário que chega, avalia o cardume ou a quantidade de peixe, soma a carência aparentemente dos homens e diz estendendo o alforje: “Mestre, dou tanto pelo pescado.” A aceitação ou não da proposta só o mestre decide. Ninguém dá palpite. Mas deixa, que o mestre também não é nenhum besta. Ele, melhor do que ninguém, já tem de cor a valia de tudo junto. Sabe também que o atravessador jamais perderá porque a compra ruim poderá ser coberta pela venda de custo maior. Só uma coisa todos já sabem: se ficar fechado o “negócio”, o comprador não permitirá que se tire um nadinha do pescado. Nem mesmo qualquer ajudante mais direto terá esse direito. Quem quiser, deverá pagar o preço já negociado e, quanto a isso, todos sabem que cada nove manjubas pesa um quilo. É a regra geral no litoral capixaba, e isso é lei. Quando alguém começa fazendo safadeza, querendo trapacear, tem briga. “Botou dinheiro, muda o clima”, também é a lei.

Essas coisas de mais miséria para o lado do infeliz que trabalha duro e come mal são resumidas na praga que Alcelina joga pra cima dos malditos compradores, cheios de usura, que aparecem de repente e carregam tudo. “Miséria maió esses bandido miserávi hão de tê no dia do juízo. Deus num há de dá nem uma piquira pra matá a fome deles. Esses puto hão de morrê cos dente de fora de tanto rapá a casca do tacho e não tê nadinha pra comê.”

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GLOSSÁRIO

A água corre dura – Forma popular de referir-se à corrente marítima contínua numa mesma direção.
Anhangá – Nome dado pelos indígenas ao espírito mal, diabo.
Atravessador – Aquele que compra do pequeno produtor e revende com lucro.
Calão – Nome dado às varas que sustentam a abertura vertical das redes de pesca. Numa das pontas é colocado um pouco de chumbo para que fique na vertical quando submerso.
Canjerê – Reunião de pessoas, em geral negros, para a prática de feitiçarias, Candomblé.
Choça – Choupana, cabana, rancho.
Correr liso Linguagem local referindo-se ao barco que desliza facilmente sobre o mar.
Cutuba – Bom, inteligente, preparado.
Fazimento – Ato de fazer repetidamente, segundo linguagem do homem local.
Garatéia – Anzóis atados numa mesma linha de pesca.
Jacumã – Pá que os índios usam para manobrar barcos. Remo que serve de leme.
Lonjura – Grande distância, longitude.
Magote – Grupo de pessoas do povo, multidão.
Mamado – Desiludido, embriagado, drogado.
Mangangá – Enorme, muito grande.
A maré riscou – Repontou, deixou o delineamento ou marca do ponto máximo ou mínimo das marés.
Mariscador – Aquele que é entendido em caçada ou em pescaria.
Mazorca – Desordem, tumulto.
Mingaço – Recipiente com água no qual os pescadores conservam por algum tempo os peixes vivos.
Monções – Épocas ou ventos favoráveis à navegação. Oportunidade.
mondonga – Mulher imunda e desmazelada.
Muchá ou muxá – Bolo feito de milho triturado (canjiquinha) e cozido com água e sal para ser comido puro ou com café.
Palamenta – Conjunto de mastros, vergas, âncoras, remos etc. de uma embarcação pequena.
Patesco – Marinheiro pouco experimentado.
Pegar rumo – Fugir, sair, ir embora na linguagem do povo local.
Pesca de caniço – Pescaria parada com vara, linha e anzol, feita da pedra, da praia ou de qualquer lugar fixo.
Pesca de currico – Pesca feita de barco em movimento, empregando vara, linha e anzol ou só linha e anzol.
Picuá – Cesto, balaio, samburá.
Piquira – Peixe miúdo, pequeno.
Piraém – Peixe salgado e seco ao sol.
Pitança – Ração diária, pensão etc.
Pocar – Quebrar, rasgar, estourar, não resistir a um esforço.
Salso – Salgado. Diz-se especialmente do mar.
Senga – Sobra, resto.
Setentrião – O vento norte.
Tiquinho – Tico, um pedacinho de qualquer coisa.
Tremelicar – Tremer com freqüência, tiritar.
Tugúrio – Choça, cabana, refúgio.
Vento duro – Ventania constante na mesma direção. Vento forte, contínuo e sem rajadas. Referência idêntica à água dura, acima citada.
Vetusto – Muito velho, antigo, respeitável pela idade.

[Pesquisa, texto, desenhos e fotos: Jair Santos. Reprodução autorizada pelo autor.]

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© 2004 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Jair Santos é arquiteto e professor aposentado, natural de Alegre, ES, autor dos livros Vila Velha, onde começou o Estado do Espírito Santo e A igrejinha do Rosário.

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