O Barão de Itapemirim, diretor geral dos índios aldeados na Província do Espírito Santo, informava, em 1859, que “na altura das cabeceiras do rio Muqui existem duas hordas de índios Puris que apenas de tempo em tempo aparecem em alguma fazenda”. Devem ter-se entendido bem com esses índios os coronéis João Pedro Vieira Machado, dono das fazendas Entre-Morros e São Francisco e João Jacinto da Silva, da fa- zenda Boa Esperança, cujas propriedades abrangiam todas as terras do antigo arraial do Lagarto.
No ano dos três oito (1888), os dois Joões, abastados fazendeiros, devotos do santo homônimo, destinaram duas quartas de terras na Boa Esperança para patrimônio da igreja. Todavia, só após o transcurso de sete anos foi iniciada a construção de uma capela.
Em dezembro de 1897, os moradores do arraial encaminharam um ofício ao presidente do Estado, contendo 72 assinaturas, encabeçadas pelos fazendeiros João Pedro Vieira Machado, Silvino Luiz da Fraga e Antônio Francisco Moreira, pedindo a desanexação do subdistrito de S. João do Muqui e seus arredores (o distrito era S. Gabriel do Muqui) do município de Cachoeiro de Itapemirim, e juntavam, como pedia a lei, um documento comprovando que aquele centro lavoureiro, com mais de cem almas, dava uma renda anual superior a cinco contos de réis.
Decorridos dez anos, o florescente arraial, composto já dumas cem casas, cobria área de meio quilômetro. Mais da metade da população, calculada em quinhentos habitantes, era composta pela colônia síria. Na rua principal (Vieira Machado), que ligava o povoado à estação da Estrada de Ferro Leopoldina (inaugurada em 1902), localizavam-se as principais casas do comércio. Havia um hotel, propriedade de Eudóxio Caiado ou José Ramos. E mais: um bilhar; a farmácia de Altino Dias Rosa; um gabinete dentário, de João Longo; um médico, o Dr. Aurélio Soares de Araújo: um fígaro, o Maneco Barbeiro; dois sapateiros: José Cúrcio e Júlio Barreto; além de uma marcenaria, uma selaria e três padarias. A iluminação pública era a querosene e o português Viana (narigudo) cuidava, com desvelo, de acender, todas as tardes, os lampiões, apagando-os pela madrugada.
O pequeno templo católico, devotado a São João Batista, estava terminado. E havia uma cadeia, assobradada, de má construção.
A primeira professora pública, D. Alzira Almeida Ramos (mãe do Dr. Macário Ramos Júdice), ocupava-se, na sua escola, em ensinar o B com A ou a tabuada cantada.
O povo se animava nas reuniões familiares. Nas casas em que havia piano, qualquer pretexto servia para a promoção de um arrasta-pé. Nas fazendas faziam-se bailes a harmônica, ou orquestra de cordas, que duravam a noite inteira.
Animada mesmo, foi, sempre, a festa do padroeiro. Vinham cavaleiros de Campos e zonas mais distantes do Estado do Rio, que engrossavam a cavalhada, exibida na parte da tarde. Os festeiros cuidavam de um programa completo: alvorada com a banda de música e salva de 21 tiros; missa cantada; batizados; leilão de prendas; cavalhada; procissão; ladainha e os fogos de artifício, com foguetões de lágrimas e o indefectível quadro do padroeiro, fosforescendo… Na arte pirotécnica, haveriam de se destacar, por muitos anos os irmãos Pavani.
A festa de 1908 teve o programa abrilhantado por um aeronauta, o capitão Magalhães Costa, que apareceu a se exibir em ascensão no balão Granada.
O ano de 1912 foi bem marcante para o progresso da comunidade. A 16 de janeiro, instalou-se a Coletoria Estadual, sob a responsabilidade do chefe de secção da Diretoria de Finanças do Estado, major Eduardo Nascimento. A 1º. de novembro, os três interventores nomeados em caráter provisório, pelo coronel Marcondes, presidente do Estado, para regerem os destinos do município, criado em virtude da lei de 22 de outubro, comunicavam a instalação do mesmo. No dia 15 daquele mês, realizaram-se as eleições para os cargos de governadores municipais e juízes distritais. A 23 de maio de 1914, a Câmara se reunia para dar posse aos eleitos nos cargos de presidente e vice-presidente e ao primeiro prefeito eleito, tenente Emílio Coelho da Rocha, que, havia dois anos, vinha ocupando os cargos de subdelegado e delegado de polícia. Em documento do mesmo ano, no qual o prefeito prestava esclarecimentos ao presidente Marcondes, vê-se que existia o Sindicato União Agrícola, no município. Noutro ofício, ele solidarizava-se com o presidente do Estado nos protestos contra a sentença do Tribunal Arbitral, que retirou grande parte do território capixaba, na questão de limites com Minas.
A 23 de maio de 1915, eram reeleitos, respectivamente, Dr. Geraldo Viana, presidente da Câmara e o tenente Luiz Siano, vice-presidente. A arrecadação do município, no ano anterior, atingira a 21 contos e quebrados e as despesas andaram pela mesma casa dos 21. O dispêndio com o funcionalismo não chegava a quatro contos e quinhentos e os subsídios ao prefeito estavam fixados em seiscentos mil réis. Entre os melhoramentos realizados e os em projeto, eram de notar: conclusão do edifício da Câmara; instalação elétrica a vapor, cujo dínamo tinha potência de 87 ampères. Na praça Coronel Geraldo Viana, fora construído um coreto. Cuidara-se do serviço de abastecimento d’água, por meio dum empréstimo de trinta contos. Em frente à igreja matriz, o prefeito mandara construir, em forma de cogumelo, artístico chafariz, iluminado com lâmpadas multicores, e os operários não pouparam cimento na liga, tão bem argamassada que, anos depois, precisaram de usar da dinamite para destruírem aquela obra ornamental.
Eu poderia apresentar alguns detalhes pitorescos e interessantes sobre a personalidade do primeiro prefeito de Muqui, que tinha diploma de tenente da Guarda Nacional e usava respeitáveis bigodes, enrolados em forma de chifre de carneiro. Falaria do seu matrimônio com D. Vicência, filha da italiana Isabel Curcio, denodada trabalhadora na construção do belo templo que a cidade possui e do primeiro sapateiro, .José Curcio. Podia até fazer uma referência à casa onde morou o tenente prefeito, que foi justamente onde a cegonha lhe deixou o presente de um menino, no ano de 1916, mas a modéstia me aconselha ficar por aqui mesmo…
[In Crônicas de Cachoeiro. Rio de Janeiro: Gelsa, 1966. Reprodução autorizada pela família.]
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Levy Rocha nasceu em 14 de merco de 1916, em São Felipe, então distrito de São João do Muqui. Graduado em Farmácia, residiu em Cachoeiro de Itapemirim e no Rio de Janeiro, interessando pela história de seu Estado natal. Publicou vários livros. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)