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O pai

Dentro da empresa era chamado o pai.

Assim o tratavam os filhos, diretores como ele, ou os funcionários com os quais privava mais de perto. Expressiva e afetuosa, a expressão se institucionalizou. Definia, a um só tempo, o pai, o conselheiro, o líder, o administrador, o companheiro e o amigo. Durante mais de dez anos este tratamento quadrou-se bem, no Grupo CIEC, ao papel de liderança que ele exerceu junto aos filhos, funcionários e discípulos.

Não foi dos primeiros a chegar.

Quando se engajou na empresa já constava esta vários anos de existência.

Mas soube, como poucos, assumir, com dedicação, e zelo, o espinhoso lugar que se lhe destinara: o árido campo das finanças.

Financista de primeira água, desfrutava da vantagem a mais de quem havia transitado, sem apego e sem vaidades, mas recolhendo experiência de vida, pelos altos cargos da administração pública e particular.

E, apesar da admirável folha de serviços a que não faltou o exercício da mais alta magistratura do Estado, ingressou na CIEC sem alardes, quase pedindo licença para entrar.

Com aquele jeitão apenas aparentemente seco, incorporou-se harmoniosamente à equipe dirigente da empresa da qual se considerava mero colaborador, proclamando o privilégio de integrá-la ao lado dos “meninos”.

Seu estilo de trabalho personalíssimo primava pela seriedade.

Meticuloso, tinha o poder de se concentrar vigorosamente em tudo que fazia. Dele se poderia dizer que não brincava em serviço. Mas não se lhe escapava a ocasião de encaixar, no que dizia ou escrevia, a frase de espírito, a blague fina, o motejo leve. Servia-se da ironia com propriedade e sabia rir com prazer.

Revelava-se estilista em simples memorandos ou em lacônicos bilhetes ao fecho dos quais apunha observações apropriadas muitas vezes picantes, correlacionadas com o assunto.

Com raro senso de oportunidade, recorria a ditos e provérbios, hoje definitivamente integrados ao jargão correntio da empresa, repetidos com a referência: “como dizia o pai”.

Avesso às “soluções de cavalaria”, não prescindia, sempre que lhe cabia decidir ou opinar em matéria controvertida ou de alto interesse, do aconselhamento dos que o cercavam e assessoravam nos diferentes setores empresariais, sentenciando: “cada macaco no seu galho”.

Na mesa de reuniões dos dirigentes do Grupo CIEC mantinha-se reservado até a hora de votar.

Seu voto era o que vinha do lado esquerdo da cabeceira da mesa, substanciado pelo peso da experiência e do tino administrativo, rompendo a expectativa que acompanhava a indagação: “E o pai, como vota?”

Jamais reivindicou a prerrogativa da decisão única. Considerava-se um, dentre os que decidiam, acatando democraticamente a deliberação da maioria ainda que pudesse dela, às vezes, discordar.

Com freqüência mantinha com os filhos discussões de alto nível sobre os problemas da empresa. Disse alguém, testemunha dessas tertúlias: “Vale a pena vê-los”.

Sua sala constituía local de trabalho desde que nela penetrava, o gesto primeiro consistindo em abrir as janelas voltadas para o mar, postando-se durante alguns minutos, a contemplar a baía e o movimento dos navios, sorvendo o prazer da brisa que por ali entrava.

A mesa, sempre organizada, ficava diante do retrato azul de Churchill por ele mesmo pintado. Criara o hábito de trabalhar com o radinho de pilha funcionando em surdina e ao sopro do pequeno ventilador de mesa que agitava os papéis em que escrevia ou conferia com rigor cifras e números, ticando-os.

No último dia de cada ano estimulava os funcionários a picarem papeletas para lançar do alto do edifício sobre a cidade, marcando festivamente a transição de um exercício para outro.

Sentia-se à vontade onde estava, bem consigo mesmo, afinado com os filhos e os demais companheiros de equipe.

Via a CIEC com olhos místicos, empenhando-se na preservação da imagem empresarial positiva que ajudou a construir e consolidar e que, certamente, tivera a capacidade de prever, muitos anos antes da empresa começar a existir, ao encaminhar um dos filhos para a carreira de engenharia, antevendo, de modo profético, as possibilidades imensas que a associação dos irmãos engenheiros seria capaz de produzir no futuro.

O tempo se encarregaria de comprovar a correção da previsão. E, em mais este ponto, ele, “o pai”, enxergou por cima do tempo.

[A Tribuna, 29 de setembro de 1974.]

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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