Retornando a “um tempo alvar, tempo ledo” pela via da lembrança, toda a aridez da existência se torna fértil para o poeta; e germinar é quanto lhe custa. E à medida que retorna a O país d’El Rey, a imaginação re-criadora do poeta vai nos desvelando a paisagem de “contorno insano e vário” e “horizonte sem medida”, território de que, enfim, o poeta se declara constituído, e tanto que, curando suas feridas com “terra, verde e salitre”, pode considerar-se verdadeiramente redivivo.
Utilizando habilmente o tradicional metro septassílabo — que permite ritmos vários — intercalado de metros outros, de igual diversidade rítmica, Roberto Almada consegue obter efeitos de movimento e teatralidade que conferem ao poema um caráter dramático. Pois ultrapassando os limites de uma saga particular, é o drama do homem contemporâneo que aparece em todos os momentos deste livro. Todos esses recursos aliados à subversão da ordem sintática corriqueira conseguem evitar a quase inevitável monotonia do poema longo. E assim este cantor singular que é Roberto Almada consegue dar à sua poesia ressonâncias épicas raramente encontráveis.
Como em O país d’El Rey, “são coisas por refazer: / o pão de milho e centeio […]”, a bênção da mãe, animais, objetos, e tudo o mais de cuja falta se ressente o poeta, eis então que, convocados, ou melhor, recriados, vão aparecendo seres e coisas, não faltando nem mesmo “uma veste de seda, / pulseiras de ouro antigo” e “um sorriso esquecido” na imagem da mãe que é solicitada para companhia, num dos mais belos momentos do livro.
Já procedendo à edificação de A casa imaginária, o poeta nos convida a todos que estamos afundando com os soberbos castelos erguidos sobre o pântano para que edifiquemos nossa própria casa, não importando sobre quais bases, se “em pó ou argila / em rocha se preciso […]”. “Edificai que esse é o vosso / exercício e vosso abrigo”. Aqui, particularmente, a voz de Roberto Almada alcança a plenitude espiritual: ética contida na estética, questão menor para os que acham que a poesia deve acompanhar, abanando o rabinho e ganindo de deslumbramento, os passos da tecnocracia, que nos quer insulados na incomunicação. Os verdadeiros poetas, os profetas, ou seja, os vates, querem ser ouvidos. Se é inútil atirar pérolas aos porcos, mais triste é gritar no deserto. Para os grandes poetas, uma das questões mais difíceis é expressar a verdade revestida de beleza. Os gregos inclusive têm uma palavra tò kalón para designar ao mesmo tempo a beleza e a virtude.
Nestes tempestuosos momentos em que vivemos, arrastados para rumos quase sempre indesejados por correntes que se entrechocam e nos atordoam, é preciso que edifiquemos nossa própria casa. Entretanto, alerta o poeta, “cuidai de a terdes edificado no amor”.
Neste livro, a árvore é a metáfora perfeita do homem contemporâneo, uma árvore que não se prende ao chão pois “se sentiria apenas uma árvore”, o homem condenado à existência fragmentada, isolada, dentro de uma sociedade dividida em classes antagônicas, o homem como uma colcha de conflitos que não se resolvem senão pela re-ligação com sua essência e sua alteridade. Mas como, se o Estado nos tira todo o tempo de amar, pensar etc., obrigando-nos à luta pela sobrevivência?
Como em toda grande poesia, também esta tem um lugarzinho para a esperança, a esperança justamente de um lugar (sem dúvida, a Utopia de todos os poetas, criaturas impertinentes que, para Platão, não podem ter lugar na República). “Apenas um lugar. E enquanto o busque / tão perto me apareça quanto um sonho”. Assim seja, Roberto Almada.
[Orelha do livro O país d’El Rey & A casa imaginária, de Roberto Almada, Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1986.]
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Waldo Motta (Edivaldo Motta], poeta e ator, nasceu em São Mateus, ES, a 27 de outubro de 1959.