Voltar às postagens

O romance da Margarida

No Romanceiro minhoto, de Joaquim e Fernando Pires de Lima, às páginas 89-91, registram-se três versões da “Margarida”, velho e malicioso romance lusitano, do qual, há muito, guardava eu, cuidadosamente, uma variante mais extensa. Ditou-ma a velhinha mais querida que eu conheci. Aprendeu ela o romance, quando mocinha, lá em Leça da Palmeira, região bonita de Portugal, onde nascera, e o reteve na memória privilegiada.

A versão dada por minha Mãezinha, embora muito semelhante às referidas pelos dois ilustres folcloristas portugueses, é maior do que qualquer delas. A variante a) do Romanceiro tem 48 versos; a b) 40, e a c) 36 apenas.

Vamos transcrever aqui uma dessas versões (a b), e, em seguida, a variante de Leça da Palmeira.

“Menina, que vai passando
Com a sua canastrinha:
Deixe ver a sua fruta,
Se ela é verde ou madurinha.
A minha fruta é boa:
Quem quer a pode comprar.
É laranja escolhida
Para gente particular.
Dê-me cá três vinténs dela,
Colhida por sua mão,
E na conta da laranja,
Dê-me também um limão.
Se eu não tenho limoeiro,
Nem macieira, nem pereira.
Se o senhor quer os limões,
Vá-os buscar à feira,
Que eu cá só vendo laranjas,
Sou uma pobre regateira…
E à conta da laranja
Não te queiras escamar;
Mudaremos de conversa,
Tratemos de namorar…
Deixe-me ir que levo pressa,
Quero ir à minha vida.
A graça com que me trato
É o nome de Margarida.
Margarida, linda moça,
Nome que eu tanto estimo…
A graça com que me trato
É o nome de Bernardino.
Não me esteja a demorar,
Que eu vou lavar os vestidos,
Para mandar engomar.
Que não digam os vizinhos
Que estamos a namorar…
Deixa falar os vizinhos,
Ainda que tenham razão:
Há de haver fogo do ar
E também algum do chão…”

Versão de Leça da Palmeira:

1. Ele
Menina que vai passando
Com a sua canastrinha,
Deixe ver a sua fruta,
A ver se ela é madurinha.
A laranja para ser boa
Deve ter a tona lisinha.

2. Ela
A minha laranja é boa,
Todos a podem comprar.
É laranja escolhida
Para gente particular.
Se o senhor duvida disso
Até lha dou a provar.

3. Ele
Isso é muita franqueza
Dar-ma laranja a provar.
Eu conheço pelo cheiro
Eu só a quero apalpar.
E diqa-me o preço delas
E como mas há de dar.

4. Ela
São a derréis cada uma,
Quatro por uma pataca.
Eu tenho-as muito caras,
Não as posso dar mais barato,
Para ganhar alguma coisa
E não perder no contrato.

5. Ele
Dê-me cá três vinténs delas
Colhidas por sua mão,
Mas, na conta das laranjas,
Há de me dar o limão
Para tirar uma nódoa
Que tenho no coração.

6. Ela
Eu cá só vendo laranjas,
Limões não tenho a vender.
Eu de limões só tenho dois
Que inda estão a amadurecer.
São cá para meu remédio,
Não os posso oferecer.

7. Ele
Eu só queria os limões
Lá desse seu limoeiro…
Eles hão de ser sumentos,
Eu conheço pelo cheiro.
Se mos quisesse vender
Eu não olhava dinheiro.

8. Ela
Eu não tenho limoeiro,
Nem macieira, nem pereira,
Ando vendendo laranjas,
Sou uma pobre regateira.
Se o senhor quer os limões.
Mande-os comprar à feira.

9. Ele
Lá por causa dos limões
Não se queira escamar.
Mudaremos de conversa,
Tratemos de namorar.
E diga-me lá sua graça,
Como eu lhe hei de chamar.

10. Ela
Não me esteja a demorar,
Quero ir à minha vida,
Eu não sei namorar
Que ainda sou rapariga.
Se quer saber o meu nome,
Eu me chamo Margarida.

11. Ele
Margarida, linda moça,
A quem eu tanto estimo.
Eu tomar amores contigo
Era todo o meu destino.
Se queres saber o meu nome.
Eu me chamo Bernardino.


12. Ela
Adeus, senhor Bernardino,
Não temos mais que falar. Uma vez que é seu gosto
Querer comigo casar,
Peça licença a meu pai,
Licença para eu casar.


13. Ele
Diz-me onde é tua morada,
Eu vou-te lá procurar.
Se se fizer muito tarde
Até lá posso ficar.
Lá por essa noite adiante
Temos tempo de falar.

14. Ela
Ir ficar à minha casa?
Isso é muita confiança!
É vergonha para mim
Por causa da vizinhança.
Ainda que nada seja,
Sempre há desconfiança.

15. Ele
Deixa falar os vizinhos
Ainda que tenham razão
Desde que eu te receber
E te der a minha mão,
Há de haver fogo no ar
E também algum no chão.

Pelo confronto entre as versões do Minho e a nossa, verifica-se que esta é, de todas, a mais completa, quer pelo número de versos (90), quer pela regularidade da estrofação. Enquanto as variantes do Romanceiro se distribuem em quadras e sextilhas desalternadamente, a variante de Leça da Palmeira é toda ela em sextilhas certas, com rimas regulares dentro da fórmula abcbdb, algumas toantes (estrofe 10: “vida” — “rapariga” — “Margarida”; estrofe 11: “estimo” — “destino” etc).

Encontra-se nas versões a) e b), como na variante nossa, o verbo escamar, com sentido de zangar-se, aborrecer-se, significado não registrado por Morais. Na estrofe n° 5, nota-se o encaixe de um velho pedido amoroso, comum em trovas. soltas. Confira-se, por exemplo:

Abaixai, ó limoeiro,
Quero tirar um limão.
Quero tirar uma nódoa
Que tenho no coração
(Cancioneiro Capixaba, trova n° 6)

Aliás, desse romance da Margarida, desgarraram-se alguns versos, em variantes que, isoladamente, se cantam como quadras-soltas. São eles os seguintes, que constam do livro Cantares do Minho, de Fernando de Castro Pires de Lima (vol. I, trovas n°s. 1.278 e 1.602):

“Bernardino, lindo moço,
Adeus té quando voltar!
eu vou pedir a meus pais
licença para me casar…

Margarida, linda moça,
Eu amo-te e estimo-te;
De hoje para o futuro
Chamar-me-ás Bernardino.”

Augusto Cesar Pires de Lima, em seus Estudos etnográficos, filológicos e históricos, (vol. 4, p. 195), também registra estas quadras soltas, retiradas ao romance da Margarida:

“Menina que vai andando
Com a sua canastrinha,
Diga-me se a fruta é boa,
Se ela é boa, madurinha.”

“A minha fruta é boa
Para quem a quiser comprar;
É laranja escolhida
Pra casa particular.”

Em nota às trovinhas, diz o autor: “Estas duas quadras pertenciam talvez a um diálogo em verso, que colhemos por completo em Santo Tirso. Comparem-se com a primeira parte do conto:

“Menina que vai passando
Com a sua canastrinha,
Diga-me que fruta leva,
Se ela é boa, madurinha.
A laranja para ser boa
Deve ter a tona fininha.”

“A minha fruta é boa,
Se o senhor a quer comprar;
Se o senhor devida disso,
Inté la dou a probar.”

Conforme salientam os folcloristas Pires de Lima em seu valioso Romanceiro minhoto, o romance da Margarida é “de feição maliciosa, tanto do agrado do povo português.”

De fato, sente-se claramente que os limões da Margarida aí estão empregados em figurado sentido, o mesmo, aliás, que se vê nesta graciosa adivinha, recolhida em Roda d’Agua, perto de Vitória:

Laranjeira de meu bem
Duas laranjas tem…

[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]

Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Deixe um Comentário