Voltar às postagens

Ofício que Francisco Manoel da Cunha dirigiu ao conde de Linhares sobre a capitania, hoje província, do Espírito Santo, 26/2/1811

(MS. oferecido ao Instituto pelo sócio correspondente,
o Sr. coronel Inácio Acióli de Cerqueira e Silva.)

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor — Como V.Ex. se desvela pelo aumento do Estado e da nação; como V. Ex. com ardente desejo quer promover a prosperidade da capitania do Espírito Santo e a navegação do rio Doce, como um mais seguro garante das capitanias centrais; debaixo dessas vistas, permitia-ma V. Ex. apresente, as seguintes reflexões: o é tão satisfeito e cheio de mim, que sem atropelar os deveres da minha vassalagem, eu me deixo unicamente conduzir pela alegria que tenho de falar submissamente a V. Ex. por meio desta Memória.

A capitania do Espírito Santo, antigamente tão florescente pelo comércio direto com a Europa e África, perdeu o seu brilhantismo. A agricultura está ali como paralisada, que consiste em algodão, milho, arroz, feijão, açúcar, café, aguardente, o tudo em pequena quantidade e de pouca consideração. Algumas vezes as embarcações daquela capitania vão a Pernambuco e Rio Grande do Sul, mas a sua navegação ordinária é sempre ao longo das costas limítrofes do Rio de Janeiro e Bahia: um só negociante capaz de animar os diversos gêneros do comércio, ou sejam em artigos europeus, asiáticos ou africanos, não aparece na vila da Vitória; daqui nasce a desgraça o comiseração daquele país, de tal sorte que, arruinando-se qualquer prédio, jamais o reedificam. Um dos ramos principais da negociação daqueles povos era o corte, venda e exportação das madeiras, que tanto animava aquela província: este corte foi proibido pelo atual governador, sendo somente permitido àqueles que, ou cortavam madeiras para o mesmo governador, ou impetravam dele esta especial graça: tal é o estado presente da capitania do Espírito Santo.

Seja-me lícito agora lançar um golpe de vista sobro o rio Doce. Na verdade este rio promete as maiores vantagens, mas infelizmente já não existe um Antônio Pires da Silva Pontes. O rio Doce, Excelentíssimo Senhor, necessitava de um mecenas; V.Ex. lá mesmo da Europa lançou as suas vistas favoráveis sobre ele; e enquanto os rios Amazonas, São Francisco, Paraíba do Norte e outros já viam rolar sobra as suas águas as ricas produções brasilienses, o rio Doce ainda vivia como esquecido e sepultado no meio das tribos Botocuda e Manaxó; e ambicioso de equilibrar-se entre esses canais que abrilhantam a celebridade dos Estados, ele clamava por um Ptolomeu, um Pedro Grande, um Luiz XIV. Estes homens, gozando o fruto da sua reputação e das suas vitórias, dormem hoje em glorioso ócio; mas Portugal, que ainda conservava os seus Sullys , Colberts e Richelieus, ouviu atentamente os seus clamores. Foi então que V.Ex., dominado pela amor da nação, enviou o capitão-de-fragata Antônio Pires da Silva Pontes para o governo da capitania do Espírito Santo, em cujo distrito o rio Doce forma o seu leito, encarregado de indagar todos os segredos, que sempre fértil natureza tem ali encoberto.

Com efeito este rio, nascendo em Minas Gerais, e comunicando com o Serro, Espírito Santo e Bahia, vem a formar no meio dessas províncias uma cidade continuada, cuja rua principal é o seu majestoso curso. Se o Amazonas e o rio de São Francisco viram aparecer sobre as suas margens vilas o povoações; se a agricultura aí foi conhecida pelos indígenas; se o comércio mesmo descobriu novos objetos da sua curiosidade, a marinha imensas matas de construção; e o ávido mineiro, passando através de todos os obstáculos, vem ainda hoje depositar suas mercadorias nas praias do oceano, é porque os gênios tutelares desses canais, eu me explico, os governadores, velavam dia e noite na fortuna daqueles lugares e povos, já humanizando o selvagem, instruindo o ignorante, já semeando a concórdia, animando o trabalho, e adiantando os direitos reais: conduta esta que tem imortalizado o Excelentíssimo conde da Palma (general que foi de Goiás, e hoje de Minas Gerais) nas célebres expedições de Tocantins, Santa Rita e Santa Luzia.

Se o rio Doce, Excelentíssimo Senhor, não teve a glória de observar em si os aumentos já reproduzidos nos outros, contudo ele foi testemunha do incansável zelo do primeiro governador enviado para escrutinar e promover as suas vantagens. Os quartéis e destacamentos foram estabelecidos, a navegação foi animada; e os indígenas de Minas Gerais comunicaram-se pela primeira vez com os capitanienses por meio das correntes daquele rio. Infelizmente o rio Doce perdeu na sua infância, assim posso explicar-me, este zeloso aio, sucedendo-lhe o atual governador Manoel Vieira de Albuquerque e Tovar, que devendo em tudo seguir os passos do seu antecessor, não só o vituperou, como também nada mais fez lá nas belas planícies daquele terreno; porque os quartéis da Regência Augusta, de Contins (hoje Linhares) e do porto de Souza, fundados pelo imortal governador Pontes, são os mesmos que existem hoje e se excetuarmos a João Felipe de Almeida Calmon, afazendado antes na vila de Benevente,[ 1 ] onde ainda conserva o seu estabelecimento, e hoje transplantado em Linhares com alguns escravos desde novembro de 1809, não se vê ali outro lavrador capaz de adiantar a agricultura, sucedendo o mesmo no destacamento da Regência Augusta, onde se acha Joaquim de Queiroz há três meses que aí se foi estabelecer, deixando o seu antigo domicílio no termo da vila da Vitória.

Muitos desertores, que viviam espalhados pela capitania do Espírito Santo, sendo chamados pelo governador atual para que se recolhessem às suas respectivas praças, ou fossem residir no rio Doce, aceitaram: este último partido; mas de nada podem servir estes homens, quase vagabundos, sem os precisos e competentes meios para laborarem a terra; e a maior parte deles, bem como muitos pedestres, desampararam aquele lugar delicioso, não pelo temor das moléstias epidêmicas, como diz o atual governador, mas sim pelo seu desmarcado terrorismo, que aí desenvolve eles desertaram novamente, levando cada um a sua arma das que desta corte foram para se fazer a guerra ao gentio.

Esta guerra não teve o êxito que se esperava; algumas divisões destinadas a penetrarem o interior do país para atacarem a nação botocuda, sem mais combinarem as suas operações, apenas faziam algumas marchas, o retrogradavam logo em dois ou três dias. O gentio assoberbado, e de alguma sorte vitorioso, inutilizou sempre o nenhum esforço dessas divisões, e audazmente continuou a atacar os lugares mais vizinhos da vila da Vitória, como agora fez por duas vezes na maior parte da freguesia da Serra, chegando a última até mesmo Carapina, distante duas léguas da vila capital, onda se acham refugiados os habitantes daqueles sítios.

O rio de Santa Maria e as fazendas situadas pelas suas margens igualmente foram objetos da vingança daqueles bárbaros, sendo vítimas algumas pessoas, entre as quais uma mulher foi atassalhada[ 2 ] ainda mesmo viva, e depois devorada pela ferocidade daqueles antropófagos. É de admirar, Excelentíssimo Senhor, que só houvessem na ocasião em que o inimigo atacou as circunvizinhanças da vila capital, retirando-se logo depois a gente que marchou contra ele: providências estas que se não deram na primeira catástrofe da Serra.

De que servem as estradas novamente abertas com detrimento dos povos em alguns lugares do sertão, chamadas pelo governador intermédias, e com despesas da real fazenda? Foi o meio mais pronto e eficaz para que o gentio facilmente fizesse as suas incursões, mostrando-se-lhe como com o dedo o trilho que deviam seguir. Esta verdade prova-se pelo que sucedeu no Piraquê-Mirim, onde foram devorados alguns índios que por ali residiam o laboravam a terra, logo que nesse lugar se abriu há mais de dois anos uma das ditas estradas: prova-se ainda mais pela conduta de um chefe das divisões chamado Miguel da Silva, índio de nação, que marchando pelo interior do sertão, e devendo sair defronte de Linhares, ao sul do rio Doce, tendo ao mesmo tempo ordem de abrir uma das sobreditas estradas pelas cabeceiras da lagoa do Campo, foi atacado na sua retaguarda, vendo-se na necessidade de fazer fogo avulso toda a noite, o que dantes não acontecia.

Refletindo agora, Excelentíssimo Senhor, sobre a navegação daquele rio, nada se observa. As embarcações que para ali navegam são aquelas unicamente que vão por ordem do governador conduzir as munições de boca ministradas pela Real Fazenda para os pedestres e novos habitantes de um e outro sexo, distribuídos nos três quartéis estabelecidos no mesmo rio, por ser tanta a desgraça e inércia, que nem a farinha de mandioca ali há para sua sustentação. Proximamente a sumaca Conceição, do capitão-mor José Ribeiro Pinto, apenada[ 3 ] para conduzir quinhentos alqueires de farinha, trezentas e quarenta e duas e meia arrobas de carne seca do Rio Grande, um barril de pólvora e o chumbo correspondente, destinado para o rio Doce, aí mesmo naufragou, perecendo igualmente cinco pessoas.

A barca que serve no rio Doce, e que foi feita na Aldeia Velha por Francisco Gonçalves, pela baixa de um seu filho, tem servido, com marinheiros pedestres, para conduzir certos gêneros de negociações particulares. As canoas que ali se esperavam de Minas dentro de oito dias, prometidas pelo governador no ofício que dirigiu a V.Ex., logo que a esta corte chegou depois da sua viagem, dizendo que vinham carregadas de gêneros permutáveis, ainda não apareceram, o os cômodos preços dos artigos sal o ferro, apontados no mesmo ofício, não foi coisa nova. Eis aqui o estado atual da navegação do rio Doce, navegação certamente digna dos Augustos, dos Lizardes o dos Creuilles, se não tivéssemos a fortuna de possuir a V.Ex. nos nossos dias.

Esta mesma navegação podia estar aumentada se o fértil terreno daquele rio tivesse a sua precisa cultivação; porque, exportando-se as produções, não deixaria de haver quem ali fosse, por meio de balizas semeadas na barra, procurar os gêneros desse Nilo brasiliense, como se praticarem Outros muitos jogares. Além disto , quando os ventos não fossem favoráveis ou propícios, podia bem estabelecer-se na Aldeia Velha um certo depósito dos gêneros para serem conduzidos por terra no Rio Doce, que dista duas jornadas; e os que dali viessem serem exportados pela barra da mesma aldeia, atendendo-se à estação. Se o governo atual aumentasse de distância em distância pequenas povoações, certamente a horda botocuda estaria mais alongada, e a domesticação das tribos Pataxó o Manaxó seria de grande vantagem para atraí-los, bem como fez Champlain, remontando o Rio de São Lourenço no Canadá com as nações Algonquine, Hurone e Iroquesa, e em 1627 Mr. d’Enambue na ilha de São Cristóvão a outras nas Antilhas.

Se a comunicação premeditada pelo rio de Santa Maria com Minas Gerais fosse realizada, seria assaz vantajosa, porque este rio vem desembocar no braço-de-mar que forma o ancoradouro da vila da Vitória, por cujo meio seriam exportados mais prontamente os efeitos que ali chegassem. Aqui recordo-me, Ex.Sr., que falando logo no princípio desta Memória sobre a vila da Vitória, esqueceu-me dizer que a galera Prontidão, vinda de Lisboa para aquela capitania, sendo remetida a Antônio Joaquim Franco, criado que era do atual governador, e que nada possuía, descarregou na dita vila; e excetuando o bergantiiá Lobos Unidos, que, despachando-se em Lisboa para o Rio Grande, foi descarregar no porto já mencionado no tempo do governador Pontes, nenhuma embarcação mais da Europa dirigiu para ali o seu destino.

Agora, Exmo. Sr., não posso dispensar-me de referir a V. Ex. o total desgosto dos povos da capitania do Espírito Santo, pois quando pensavam que com a vizinhança do nosso augusto Soberano e pai da pátria afrouxassem os imensuráveis despotismos que sofreu do governador atual, parece que ainda foi pior. Dois negociantes, Manoel Fernandes Guimarães o Pedro José Carreira Viseu, o primeiro foi acorrentado publicamente, ficando perdido de todo; e o segundo, que se acha louco, transitou amarrado pelas ruas, e ambos conduzidos a prisões de segredo, sem nenhuma causa eficiente ou suficiente. O padre Manoel de Jesus Pereira, natural a morador da vila da Vitória, que servia de coadjutor do vigário daquela vila, e pago por S.A.R., foi mandado paro o dito Rio Doce, unicamente por haver faltado a uma missa no Colégio, em lugar do capelão da tropa. O capitão José Ribeiro de Ataíde, porque na sua casa algumas noites concorriam outras pessoas daquela vila a conversarem, foi por isso arrancado do centro da sua família e desterrado para o sobredito rio, de onde voltou em breves dias quase expirando, e logo depois morreu; sendo ao mesmo tempo todos os outros mandados para diversos lugares, até que foram retirados depois.

Ainda não é tudo: a justiça tem igualmente sofrido seus obstáculos. O desembargador ouvidor da comarca, Alberto Antônio Pereira, foi injusta e despoticamente preso, e a casa deste magistrado viu-se cercada pelos soldados pedestres: os escrivães do público e notas foram atenuados e confundidos com os ameaços de desterro para o Rio Doce, e carregados de ferros. Manoel da Silva Trancoso Leitão, procurador do auditório, somente porque defendia uma causa cuja parte contrária o governador protegia, foi por isso preso, assentando-se-lhe praça de soldado na companhia de linha, tendo-a já de miliciano; e sem jurar bandeiras passou imediatamente pelo castigo de pranchadas, foi conduzido preso para a fortaleza da Barra, e conservado ali mesmo três meses.

Nenhuma só pessoa daquela terra tem sido isenta dos ultrajes e ameaços injuriosos do governador, nem ainda os deputados da junta da Real Fazenda, nem tampouco as câmaras daquela capitania. Eu atestaria fatos que o pejo e a modéstia pedem um morno silêncio, se estas reflexões não fossem dirigidas a V. Ex.: fatos que os povos daquele país provariam se vissem retirado o atual governador: fatos que estão gravados no fundo dos seus corações pelo temor e, no mesmo tempo respeito, que professam aos representantes do poder supremo.

Queira V. Ex. aceitar esta pequena memória fundada toda na pureza da verdade, memória que tenho a honra de apresentar a V. Ex. como um dos sustentáculos da nação, o herdeiro do sangue daqueles que cimentaram sobre seus ossos, lá no campo de Ourique, os degraus do trono português, o primeiro trono do Universo. Esta certeza me anima de tal sorte que, descobrindo em V. Ex. um desses gênios tutelares que velam em torno das monarquias e para felicidade dos Estados, fez com que eu não hesitasse um só momento procurando ter a honra de falar tão francamente a V. Ex., a quem protesto ser sempre com o maior respeito — de V.Ex. reverente súdito e menor servo — Francisco Manuela da Cunha. — Ilmo. e Exmo. Sr. conde de Linhares.

Rio de Janeiro, em 26 de fevereiro de 1811.

[Ofício publicado na Revista do IHGB, 12:511-18, 1849.]

_____________________________

NOTAS

[ 1 ] Hoje, Anchieta.
[ 2 ] Retalhada.
[ 3 ] Contratada.

Deixe um Comentário