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Onde está Silvinha?, do livro A rainha que piava e outros contos

O casal Fontella — Alberto (Beto) e Silvia — recebeu para jantar e drinques naquela quinta-feira dia 12 de agosto. O amplo apartamento que habitavam, de frente para a praia de Camburi, estava todo iluminado e encantou M. Louis Ferdinand Destouches, um elegante negro haitiano, convidado de honra da noite. M. Destouches viera a Vitória em viagem de negócios e, em nome de um consórcio belga instalado em seu país, fechara contrato de fornecimento de latas de alumínio para cerveja com a Sociedade Industrial de Embalagens S.A., recentemente instalada em Vitória sob a direção do anfitrião. Viajaria de regresso para o Haiti no sábado, dia 14, deslocando-se de Vitória para o Rio na sexta, no primeiro avião da ponte aérea.

Os Fontella, ele com 37 anos e Silvia com 30, não tinham filhos e viviam em ótimo relacionamento, desfrutando de todos os prazeres que a folgada renda de um executivo de primeiro escalão pode proporcionar — apartamento duplex com vista para o mar, dois carros importados, sítio em Santa Teresa e, ano sim, ano não, viagem de recreio à Europa. Beto, logo depois que fora desligado a pedido da Escola Militar de Agulhas Negras, fizera, na Universidade Federal do Espírito Santo, o curso de administração de empresas, e Silvia, apesar de não lecionar, possuía licenciatura plena em literatura hispano-americana.

Namoravam-se desde antes da saída de Alberto para a Escola Militar e estavam casados há oito anos. Tinham um traço em comum — foram namorados únicos.

Perto da meia noite, quando praticamente todos os convidados haviam se retirado, Destouches também se preparava para sair e, como perfeito cavalheiro, homenageou Silvia com um presente um tanto exótico: uma perfeita miniatura de urna funerária em ébano, no interior da qual repousava, sobre veludo escarlate, um afiadíssimo cortador de livros, todo de prata. Explicou aos anfitriões que se tratava de artesanato produzido em uma aldeia nas montanhas do Haiti. E despediu-se educadamente, no seu característico patoá.

Depois de arrumar e limpar o que foi possível naquele fim de noite, o casal, bastante cansado, recolheu-se ao leito cerca de uma da manhã. Alberto tinha compromissos na fábrica às nove horas do dia seguinte e Silvia planejara, na mesma manhã, apanhar no trabalho suas duas únicas irmãs, Selene e Silvana, para, juntas, irem almoçar em casa do pai, Sr. Gervásio Alcântara, em Jucutuquara. Aproveitariam o almoço para um bom papo com a mãe, a simpática e sorridente gorducha D. Siloé. Era plano das meninas fazerem um pouco de companhia à mãe porque Seu Gervásio, funcionário aposentado da Secretaria da Receita Federal, estava agitadíssimo naqueles dias com a realização do III Encontro Nacional dos Criadores de Curiós Cantadores, que reunia em Vitória os melhores espécimes do país. O aposentado concorreria com seu curió Céline a um dos prêmios oferecidos. Os Alcântaras, apesar de o velho ser maranhense, comportavam-se como autêntica família capixaba, por influência do gênio sempre alegre porém impositor de D. Siloé, nascida e criada em Jucutuquara. E também pelos 35 anos que o velho residia no Espírito Santo. Transformadas hoje em três belas mulheres, as três “Ss”, como as chamava D. Cotinha, vizinha e amiga há trinta anos, pertenciam ao que se convencionou chamar de classe média e todas — orgulho do velho Gervásio — passaram pela Universidade: Selene, funcionária concursada do T.R.T., era formada em direito e casada com Pedro Nunes, escritor (festejado autor de Aldeia) e funcionário público, e Silvana, psicóloga e professora adjunta da UFES, tinha como marido o engenheiro Sérgio Bichara, viciado em Mozart e nos Beatles. Pelo menos dois domingos por mês reuniam-se maridos, filhas, genros e netos para um churrasco (este sempre preparado pelo Sr. Gervásio), uma moqueca de badejo ou uma piramidal macarronada com galinha ao molho pardo, especialidades de D. Siloé. Era, sem dúvida, um círculo familiar entrosado, respeitável, sem problemas e bem-humorado.

Às 7:30 horas de sexta-feira, 13, o despertador tirou Alberto do sono. Virou-se, resmungou, mas levantou. A mulher, estranhamente aos seus hábitos, também já havia se levantado. A forma perfeita de seu harmonioso corpo ainda moldava os lençóis e a colcha. O marido calçou os chinelos e foi, estremunhado, até a ampla copa. Chamou Silvia e, não obtendo resposta, voltou ao quarto, à suíte, onde, conforme já verificara, não se encontrava a esposa. Daí dirigiu-se até o living e à sala de jantar, e não a viu. Também nos outros dois quartos, um transformado em sala para computador e outro para hóspedes, não topou com Silvia. Por desencargo de consciência foi à área de serviço e dependências da criada, que dormia fora, com o mesmo resultado. Só pode ter saído, pensou. Mas sair àquela hora para quê, se o jornal era entregue na porta, o pão trazido pela empregada quando chegava e não era hábito de Silvinha ir à praia àquela hora — pelo menos sem avisá-lo — acrescendo que o dia amanhecera com vento sul e carregado E mais: houvesse Silvinha saído e as duas correntinhas e o trinco da porta principal não estariam fechados por dentro, como estavam. Pela porta de serviço também não poderia ter saído, uma vez que esta somente se abria com acionamento de um dispositivo eletrônico a ela ligado e operado do quarto de casal quando aí soavam de uma cigarra os quatro toques convencionados com Capitu, a empregada. Alberto estranhou tudo isso mas não se preocupou. Engoliu um suco de melão gelado e queimou a boca com uma xícara de café solúvel. Acendeu um Kent king-size, fez a barba, tomou uma ducha quente e vestiu-se, escolhendo com cuidado a roupa: terno cinza escuro feito sob medida no De Carli, sapatos pretos do Motta (do Rio) e meias de seda da mesma cor, camisa branca e gravata de seda pura com listras vermelhas e azul marinho.

Outra xícara de café, outro cigarro e consultou relógio: 8:10. Ainda tinha tempo para localizar a mulher. Afundou numa poltrona no living, ainda cheio de lembranças da recepção da noite anterior, e pôs-se a refletir: se Silvinha tivesse saído, as portas do apartamento não poderiam estar fechadas por dentro. Pelas janelas e varandas nem pensar, pois moravam no oitavo andar. Mas, para sua própria tranqüilidade, foi à varanda envidraçada da sala de estar, à do quarto e às janelas. Olhou para baixo, para a rua, já com intenso tráfego, e também para a área interna do edifício. Nada de anormal. Tudo como habitualmente. Telefonou então para as cunhadas e também para a sogra. Não, Silvinha ainda não passara por lá, embora tivessem encontro marcado, mas somente para depois das 11:30. Cabeleireiro ou manicure a esta hora era impossível. O mesmo com relação aos shoppings e consulta a médicos ou dentista. Espera, deixe-me conferir os sapatos. Sabia que a mulher possuía, entre calçados sociais, sandálias e tênis, dezenove pares. Mas, na sapateira, deparou com os 38 pés, alinhados como soldados. De chinelos, vaidosa como era, Silvinha jamais sairia. Essa eu perdi, comentou para si mesmo. E começou a irritar-se. Não se aventurou a verificar o guarda-roupa, pois não sabia quantas peças a moça tinha. Espera aí, e correu ao quarto de dormir: lá estavam, na mesa de cabeceira, o relógio Vacheron que lhe dera meses atrás como presente pelo trigésimo aniversário e o par de brincos de pérolas. Sobre a penteadeira repousava a bolsa de couro, que abriu com certo nervosismo: tudo intacto, talões de cheques, caneta, óculos escuros, cartões de crédito, agenda, algum dinheiro, telefone celular, chaves do carro, etc. Tudo isso fê-lo reforçar a opinião de que a mulher não saíra, ainda mais que as portas, insistiu, estavam trancadas por dentro. Mas como, meu Deus, não saíra, se uma nova e minuciosa pesquisa revelou ser ele, no momento, a única pessoa presente no apartamento? Nova olhada pelas varandas e janelas e nada: só serviu para constatar que tudo estava nos eixos. Cabeça de bagre, nem me lembrei, e ligou o telefone interno para a portaria do edifício. “Não, não, Dr. Alberto, peguei o turno das cinco da manhã, eu e o Altamiro da segurança, e as únicas pessoas que saíram foram aquele velho aposentado do Banco do Brasil, do 601, às seis, para andar no calçadão, e mais ou menos às 6:15 o piloto da Rio-Sul, um que todas as segundas e quintas dorme no 301, no apartamento de D. Myrian, a viúva do senador Terêncio, o senhor sabe do caso. Tenho certeza, sim, Dr. Alberto, nem pela portaria principal nem pelo portão de serviço ou da garagem vi D. Silvia sair. Um minutinho e já volto.” Voltou esbaforido e informou: “Tanto o Mondeo do senhor quanto o Daiwoo de D. Silvia estão na garagem, Dr. Alberto.”

“Porra, assim não dá,” gritou Alberto. “Não saiu mas também não está aqui, não pulou pela janela e nem está com os parentes.” E, no meio do desespero, gritou duas ou três vezes o nome da mulher, que ecoou na solidão do apartamento. Pediu desculpas à empregada, que no entretempo chegara, e avisou-a de que não jantariam em casa.

Ligou novamente para a residência do sogro e explicou a D. Siloé, detalhadamente, o que estava ocorrendo. A boa senhora bramiu para o Sr. Gervásio, “Anda, homem, te mexe, a Silvinha foi raptada ou então brigou com o Beto, sei lá, fala com ele.” O velho, fone na mão, perguntou ao genro, meio cabreiro, “Vocês brigaram? Já exigiram resgate?” “Que briga, que resgate nada, Sr. Alcântara,” como o chamava quando estava nervoso, “o senhor está no mundo da lua? Tudo bem, não há sinais de violência, Silvinha simplesmente não está aqui, sumiu, as portas estão trancadas por dentro e ainda por cima ninguém a viu sair e não há indícios de anormalidades na vizinhança do edifício, estou aqui sem saber o que fazer, feito um idiota, sozinho, preparado para ir para o trabalho.” E desligou com raiva.

Bom, o jeito é aguardar os acontecimentos. No decorrer do dia tudo, certamente, se esclarecerá. Mandou o manobreiro tirar o carro da garagem e acelerou para a fábrica, no Civit. De lá — e de péssimo humor, diga-se — telefonou várias vezes para casa e não obteve resposta, ou melhor, a empregada dizia sempre que Silvinha não estava. Ao meio-dia, antes do almoço com os auxiliares mais graduados numa churrascaria próxima à empresa, mais uma vez ligou para a casa do sogro, onde este e D. Siloé, em companhia de Silvana e Selene, almoçavam trombudos, silenciosos e intrigados com o misterioso desaparecimento de Silvinha. Nenhuma notícia dela. Às dezoito horas, depois de um pesado dia de trabalho, com telefonemas para o Rio e São Paulo, contratos, faxes para lá e para cá, briga com os xiitas do sindicato dos metalúrgicos, voltou para casa. O Mondeo deslizava macio e silencioso pela pista, todo fechado, ar condicionado ligado, e Alberto ouvia pelo toca-cd trechos do baléSylvia, de Delibes. Influenciado pela delicadeza da música, pelo menos naquele momento estava calmo e antegozava a hora de chegar em casa, encontraria a esposa e até ririam do “sumiço”. Colocaria uma roupa esporte e, com a adorável Silvinha, iriam tranqüilamente jantar na cantina do Ettore um espaguetinho acompanhado por uma garrafa de um certo Amarone, abalizada indicação do seu antigo professor na UFES, Ivan Borgo. Após a cantina, veriam um filme no VC, em casa, ele com planos de uma ardorosa noite de amor com Silvinha, morto de saudades que estava dela e acreditando piamente na reciprocidade desse sentimento.

Mas que decepção quando deparou com o apartamento desconcertadamente vazio, sem vida, triste como o deixara pela manhã. Aí finalmente Alberto perdeu o que lhe restava de calma e controle. Em prantos, telefonou para o sogro, passaria por lá para apanhá-lo e para uma conversa séria sobre o caso. Deixou algumas recomendações na portaria do edifício e rumou para Jucutuquara, onde Seu Gervásio já o esperava. A sogra, assustadíssima e chorosa, quis que ele fizesse um lanche, mas Alberto não tinha fome, tinha sim um começo de desespero. Apanharam o concunhado Pedro Nunes em Bento Ferreira e decidiram, os três, tomar a providência mais recomendada pelas circunstâncias: registro oficial da ocorrência — o que foi feito na Superintendência de Polícia Civil na Reta da Penha. O delegado Bertholdo Witter, o “professor”, de plantão e coincidentemente o mais competente policial do Estado nos casos de pessoas desaparecidas ou seqüestradas, quando notou a posição social dos queixosos e a importância econômica de Alberto, acionou o “esquema especial” adredemente montado para as ocorrências da espécie e designou logo o investigador Humberto “Rolo Compressor” para acompanhar o caso. Após preencherem formulários e mais formulários e depois de uma hora de respostas a irritantes e minuciosas perguntas dos policiais, algumas feitas com a sutileza de um rinoceronte enfurecido e outras dignas do raciocínio de um dromedário, dirigiram-se os três e mais os dois “tiras” ao apartamento de Alberto, na orla de Camburi. Ali, o delegado e o investigador fizeram novas anotações, vasculharam todo o imóvel e se retiraram, levando duas ou três fotografias de Silvinha. O sogro e os dois genros, sem nada para fazer, devoraram num bar ali perto sanduíches de queijo e presunto, empurraram tudo com uma cerveja morna e se recolheram aos seus lares. Alberto recusou o oferecimento de Pedro para ficar em sua companhia. Já eram dez da noite.

Na manhã seguinte, sábado, Beto viu com desespero as manchetes de A Gazeta e A Tribuna. O primeiro matutino, sóbrio, registrava: “Esposa de industrial desaparece misteriosamente”, e na seção policial relatava a notícia dentro dos padrões do jornal. Já A Tribuna, em caixa alta, primeira página, bradava: “Socialite desaparece de cena: Seqüestro ou Fuga Amorosa?”, especulando nas páginas centrais sobre as duas hipóteses e informando estar todo o pessoal da Especializada mobilizado para solucionar o caso. Ambos os diários publicaram fotos de Silvinha na primeira página, em cores. O sacana do delegado Witter está se promovendo às custas do meu sofrimento, ruminou Alberto, desmotivado até mesmo para um cafezinho. Passou o sábado e o domingo melancólico e ensimesmado, em companhia dos sogros, cunhadas e concunhados. O almoço de domingo parecia até um velório, comentou a gorda D. Siloé. Mas o apoio dos parentes e mais a solidariedade de alguns amigos sinceros reconfortaram-no um pouco e deram-lhe ânimo para enfrentar a semana. Segunda pela manhã, andando às tontas pelo imenso apartamento vazio e topando a todo momento com o olhar atarantado de Capitu, a empregada, Alberto percorreu os jornais. Esses, se nada acrescentavam ao que já havia sido noticiado, mantinham o caso aceso, que isso vende bastante e também porque os focas estagiários do curso de comunicação, que de bobos nada têm, sentiram que aquilo era assunto para cultivar e render bastante, em vista da notoriedade do casal envolvido. Alberto então efetuou uma ligação para Ribeirão Preto, para a matriz da firma. Explicou aos diretores que, em vista dos recentes acontecimentos, os quais relatou minuciosamente, não tinha condições psicológicas para — pelo menos no momento — dirigir a importante filial de Vitória; considerava-se licenciado por duas semanas, esclarecendo que passaria o comando da sucursal a seu imediato, o engenheiro R. Pacheco. Praticamente afastada a hipótese de seqüestro pela ausência dos elementos que rotineiramente caracterizam tal crime, Alberto lucubrou intrincados raciocínios sobre o já dramático desaparecimento, os quais esbarravam sempre na impossibilidade de Silvinha ter deixado o apartamento, uma vez que todas as portas estavam rigorosamente fechadas por dentro. Esse detalhe, que não lhe saía do pensamento, pouca atenção despertara nos policiais, que o julgaram mirabolante: estavam mais preocupados com a hipótese de seqüestro, que, isto sim, é que dá ibope. E, na ociosa solidão do apartamento sem vida, Alberto começou a esquadrinhar todo o imóvel. Revolveu todos os pertences da esposa, roupas, calçados, livros, cosméticos, meias, peças íntimas, discos, jóias, bijuterias, cofre. Abriu todos os armários, caixas, bolsas. Pelo visto não faltava nada, estava tudo aparentemente em ordem. Até uma gaveta um tanto disfarçada no comprido móvel de laca que ocupava toda uma parede do living e que servia de pequena biblioteca, bar, estante para bibelôs e para a coleção de porquinhos de louça, que era a paixão de Silvinha, foi aberta. Lá estavam o seu Smith & Wesson 38, caixa de balas, alguns cinzeiros de cristal ainda não usados, maços de cigarro, isqueiro de mesa e, jogada num canto, a invulgar miniatura de urna funerária de ébano, que continha o cortador de papéis de prata, brinde de M. Destouches a Silvinha na noite da recepção. Na noite anterior à manhã em que ela desaparecera. Desistiu por fim da pesquisa. Tomou um Valium 10 e dormiu, fatigado, triste, com dor de cabeça.

Acordou tarde na terça. Água mineral gelada, café solúvel quente e cigarro. Barba por fazer, não faria, porra. Estava de ressaca do sonífero e malissimamente humorado quando, ao passar os olhos pelo obituário do jornal, lembrou-se do caixãozinho de defunto com a adaga dentro — presente dado à mulher pelo crioulo que falava um francês engrolado. Levantou-se, puxou a discreta gaveta, apanhou a urna e abriu-a. Teve então o maior choque de sua vida: no interior do estojo, no lugar em que deveria estar o cortador de papel de prata, jazia uma bonequinha de pano, com o cortador muito menor que o original a atravessar-lhe o peito, à altura do coração, de onde escorria um filete de sangue já seco. Mas o incrível, assombroso, era que a bonequinha representava uma cópia fidelíssima de Silvinha, com o mesmo corpo, as mesmíssimas feições e até a mesma meia camisola que usava na madrugada em que desapareceu. Um cadaverzinho perfeito, aterrador e agourento, real até no detalhe do sangue escorrendo do ferimento do peito. Alberto afundou na poltrona, apavorado, com o estojo nas mãos, congelado pelo terror que lhe causara o macabro achado. Depois de alguns minutos de indecisão, levantou-se, fechou a urna e trancou-a no cofre do quarto. O que fazer, agora que ao já intrincado caso juntava-se mais o elemento fantástico e perturbador da urna? Resolveu, melhor pensando, que não contaria a ninguém sobre o sinistro presente. Depois veria o que fazer. E esse depois chegou três dias após quando, desesperado com a ineficiência da polícia, que já lhe levara um cheque “para auxiliar na gasolina e no lanche dos investigadores,” consultou o médico Dr. Windsor Tristão, sem revelar-lhe o segredo da urna, se era possível verificar, através de teste de DNA, se um fio de cabelo e uma gota de sangue seco poderiam ser cotejados para apurar se se tratava de material pertencente à mesma pessoa. Frente à categórica afirmativa do estudioso facultativo, não foi difícil para Alberto colher em uma das escovas da penteadeira uns fios de cabelo da mulher. A gota de sangue seco obteve-a cortando um pedacinho de pano junto ao peito da aterradora boneca, no local onde penetrara a minúscula adaga. Reunidos esses elementos, remeteu-os incontinenti para o Laboratório de Engenharia Genética do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Enquanto aguardava o resultado do exame, num suspense à altura de Hitchcock, outras teorias absurdas ocorriam-lhe ou eram geradas pelos cérebros férteis dos parentes mais próximos que, mesmo sem saberem da existência do pequeno esquife, já tinham apelado para a macumba. Seu sogro, coitado, começou por sentir dores no fígado e, depois de informado de que fígado não dói, transferiu o sofrimento para a próstata; nem um sexto lugar obtido no III Encontro Nacional dos Criadores de Curiós Cantadores conseguiu animar o velho. D. Siloé, emburrada, apelava para Santo Antônio, do qual era incondicional devota, fazia responsos e consumia uma bateria de missas na igrejinha de Jucutuquara.

O resultado do exame solicitado veio mais rápido do que Alberto esperava, processado por uma máquina recentemente importada da Inglaterra, maravilha da engenharia médica. Salgada mesmo foi a conta apresentada. Tremiam-lhe as mãos ao empolgar o envelope com o logotipo do Hospital. Foi remetido em caráter urgentíssimo, conforme pedira, e entregue em casa. Sem mesmo saber o motivo de seu estranho comportamento, o rapaz verificou se as portas e as janelas do apartamento estavam trancados e cortou lentamente a borda do envelope, dele retirando a folha de papel com o resultado do teste, assinado pelo Dr. Michel D. Tallowsky, chefe do Laboratório de Engenharia Genética do nosocômio e titular da matéria no Departamento de Ciências Biológicas da USP. Dizia o estarrecedor laudo: “Tendo em vista o resultado dos testes de DNA promovidos por este Laboratório, informamos que os materiais enviados para exame (fios de cabelo humano e trapo de tecido de algodão com resíduo de sangue também humano) comprovam categoricamente tratar-se de amostras retiradas da mesma pessoa. Esclarecemos ainda, que, considerando a apreensão de V. Sa. revelada no telefonema que nos deu em 26 do corrente, ratificada pela carta que acompanhou o material remetido, tomamos a liberdade de efetuar novo teste, que apresentou definitivamente o mesmo resultado do exame inicial. Comunicamos que tal confirmação onerou em 40% o custo original do trabalho e aguardamos remessa bancária do valor de R$ 2.100,00.” Alberto desesperou, chorou, engoliu meio litro de Ballantine’s mas não comentou com ninguém que enviara o material para verificação nem o pavoroso resultado.

No dia seguinte, cabeça mais fria, decidiu: vou ao Haiti, vou localizar esse negro filho da puta e ele tem que me contar a verdade nem que eu seja obrigado a matá-lo. Foi ao Centro da Praia e numa agência de turismo adquiriu passagens de ida e volta Rio/Lima/Caracas/Miami/Port-au- Prince. Preparou mala com roupa leve para quatro ou cinco dias e juntou a ela a urna com a bonequinha e o resultado dos exames de DNA. Aos sogros, cunhadas, concunhados e amigos avisou que faria viagem de quatro ou cinco dias ao exterior, em recreio, para arejar a cabeça, e a negócios também, para se reintegrar na rotina do trabalho. E, no dia 2 de setembro, às nove horas da manhã, embarcou no Aeroporto do Galeão num 737-400 da Transcontinental para a planejada viagem, com chegada prevista na capital haitiana para as dezoito horas do mesmo dia.

Só que, pelo jornal das 23 horas da TV, os telespectadores ficaram sabendo que um avião 737-400 da Transcontinental (vôo 702), com 67 passageiros e quatro tripulantes a bordo, explodiu no ar quando sobrevoava a ilha Andros, no Caribe, vinte minutos após decolar de Miami rumo a Port-au-Prince, não deixando sobreviventes. A bordo viajava um brasileiro, o Sr. Alberto Fontella, de 37 anos, administrador de empresas.

[Transcrito do livro A rainha que piava e outros contos, IHGES, 1997.]

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João Bonino Moreira nasceu em Santa Teresa (ES) em 1931. Estudou em Vitória e, em 1949, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde permaneceu por vinte anos. Ele foi um dos talentos literários revelados pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo no auge de seu investimento na publicação de obras de literatura. (Para obter mais informações sobre o autor clique aqui)

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