Imaginem a seguinte sequência cinematográfica: botas em close chutando a porta de uma casa; porta saltando das dobradiças e caindo com estrondo; passos que avançam pela casa ressoando fortemente; mãos empunhando armas de grosso calibre; invasores com máscaras ninja, puxadas sobre o rosto; gritos de homem acordado de surpresa no meio da noite; uma mulher na nonagésima idade que começa a passar mal, acometida de um infarto do miocárdio – tudo isso em penumbra de filme “noir” com trilha sonora adequada.
Não foi com esse formato cinematográfico que a notícia saiu na televisão. Sua divulgação, porém, logo replicada nas redes sociais onde hoje rola tudo o que se passa no público e no privado, teve um impacto tão grande quanto teria numa versão de cinema.
Mas Pedro, o escrivão da Chapot Presvot, não soube de nada porque estava em viagem (alguns dias de licença) no Uruguai. “Vou conhecer as livrarias de Montevidéu e, se puder, dou um pulo a Punta del Este”, apregoou botando banca entre os amigos.
Foi.
Enquanto Pedro ia, Digital, o delegado da Chapot Presvot, fez a asneira que foi descrita em sua roteirização de Tropa de Elite, comandando uma invasão policialesca à casa de um morador do Morro da Assunção, atrás de cocaína.
A operação, que o delegado denominou Dragão Branco, estava autorizada por mandado judicial, só que a tropa foi bater atropeladamente em endereço errado.
A truculência terminou de forma deprimente: a mãe do dono da casa sendo levada às pressas pelos próprios atores da operação (a palavra cai à feição) para ser medicada no Pronto Atendimento do hospital mais próximo. E ali mesmo, enquanto a infartada era socorrida depois de penar dolorosamente por doze horas numa maca encardida, largada no chão do corredor, ali mesmo o dono da casa invadida, que ainda por cima era líder comunitário e mestre de capoeira no morro onde morava, botou a boca no trombone. Assim, a desastrada ação de Digital virou notícia de televisão, com a abertura de um inquérito para apuração dos fatos, o delegado sendo temporariamente afastado das suas funções na Chapot Presvot, 272.
Quando Pedro voltou da viagem é que soube do desastre.
Façamos, porém, um corte oblíquo no texto para informar o estado de espírito com que Pedro voltou. E o termo que o define é beatífico. Esmero-me buscando precisão: Pedro voltou em levitação beatífica. Porque, indo a Montevidéu, descobriu, conforme propalou entre os amigos, que conhecera a urbe utópica, a Pasárgada real onde se tem a mulher desejada com tudo o mais que o Poeta poetizou e não poetizou. Uma cidade limpa e sem mendigos, onde todos trabalham e o trânsito flui pacífico, respeitando os pedestres – RESPEITANDO OS PEDESTRES, engrandecia Pedro a sua informação com sabor de descoberta platina. Uma cidade onde se pode andar a qualquer hora pelas quinas e esquinas das madrugadas sem risco de assaltos e onde habita um povo educadíssimo. Livrarias? A cada quadra se esbarra numa! A CADA QUADRA, espocava Pedro. Comida? Farta, barata, deliciosa! Maconha? Oficializada para quem se entrega ao vício (que não é o caso de Pedro).
“Já decidi: vou viver em Montevidéu meus últimos anos de vida!”
“Um Shangri-lá no sul da América do Sul?” perguntou Nanico, o outro escrivão da delegacia.
“Um Shangri-ali colado ao nosso Rio Grande, mas tão diferente deste Brasil podre e asqueroso em que estamos chafurdando,” disse Pedro.
Concluído o corte oblíquo, voltemos ao ponto em que estávamos: Pedro tomando conhecimento da burrada de Digital com a operação Dragão Branco. Ao saber do que ocorrera, Pedro soube também que ele – ninguém mais, ninguém menos do que ele, o recém-viajado e recém-chegado da Pasárgada uruguaia – fora designado escrivão do inquérito que iria apurar a responsabilidade (ou irresponsabilidade) de Digital na desarvorada operação que comandara.
“Por que eu?” perguntou a Nanico, que lhe deu a notícia salgadérrima.
“Foi dedo do deputado Ribeirinho,” disse Nanico. “O deputado, que protege Digital, acha que com sua larga experiência burocrática na delegacia você pode aliviar a barra do nosso mui querido chefe.”
“Não acredito que você me diga isso, Nanico! Você não sabe que se há um sujeito que gosta das coisas bem certinhas, esse sujeito sou eu?”
“Estou lhe dizendo o que eu acho que o deputado Ribeirinho acha. Azar dele se você é o cara que não mija fora do penico,” disse Nanico.
“Além do mais, meu desejo é que Digital se estrepe pelas trapalhadas que comete com as suas impetuocidades, como ele próprio define seus rompantes,” comentou Pedro.
“Eu sei disso, meu amigo, principalmente agora que a velha esticou as canelas!”
“Que velha?” perguntou Pedro.
“A que sofreu o infarto quando Digital invadiu a casa dela.”
“Então a situação é pior do que eu imaginava, com morte no enredo.”
“Morte e pedido de indenização…” disse Nanico que soltava as más notícias em picadinho.
“Indenização pela morte da velha?”
“Não, pela porta que Digital pôs abaixo na invasão e pelo mobiliário destroçado na busca da cocaína que não existia”.
“Uma confusão nunca vem sozinha…”, comentou Pedro.
“É por isso que o deputado Ribeirinho deixou o número do celular pra você ligar pra ele,” falou Nanico, estendendo na direção de Pedro a anotação num pedaço de papel. “Ele chegou a dizer textualmente (não é assim que você gosta de falar?): Diga ao Pedro que ele não vai se arrepender… E Digital também está procurando por você. Ele está dizendo que, por causa de um vacilo que ele teve, querem fazer dele “bode respiratório” das muitas cagadas que os delegados andam fazendo por aí. Logo ele, um delegado durão pra quem bandido deve ser morto no campo de batalha, pra não entupir cadeia.”
“Vê se me poupa do seu papo furado, Nanico!”, protestou Pedro. “Vê lá se eu vou querer falar com Digital ou ligar pra Ribeirinho. Joga a merda desse número no lixo.”
“Já que você não quer pegar, eu vou botá-lo em cima da sua mesa. Da minha parte, o recado está dado,” disse Nanico, dando sua missão por cumprida.
“Bote onde você quiser,” disse Pedro, “porque eu vou agora mesmo tirar outra licença médica. A minha bursite crônica já começou a se manifestar. Digital e Ribeirinho que arrumem outro escrivão pra amaciar os interesses deles. Acho até que um escrivão é pouco. Tem que ser uma comissão inteira. Eu é que não me prestarei a pantomimas!”
“E se você não conseguir a licença?” perguntou Nanico, se fazendo de sonso.
“Cacete, Nanico! Você está do meu lado ou do lado deles?” revoltou-se Pedro.
“Eu perguntei porque quero que você pense em todas as alternativas pra sair desta enrascada.”
“Pois saiba que, se eu não conseguir a licença, alego motivo de foro íntimo pra não ser o escrivão da comissão”.
“E Digital e Ribeirinho sabem lá o que é foro íntimo? Pra eles foro íntimo deve ser xoxota de mulher”, insistiu Nanico, continuando a cutucar Pedro com vara curta.
“Se ainda assim não der certo, vou indicar seu nome pra me substituir na comissão. Bem que você merece por estar me aporrinhando a paciência,” disse Pedro, retirando-se da delegacia em busca de sua pretendida licença.
Boa sorte é o que devemos desejar a Pedro, num corte oblíquo final para terminar o texto.
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)