Apesar do meu lastro montanhês, devo dizer que me rendo ao mar, especialmente aos domingos, dia de moqueca. Ressalva: a rendição incondicional não aconteceu porque não existe borracha capaz de limpar a lembrança das neblinas esgarçadas e dos verdes do país da infância. Mas vou me submetendo a essa agradável ambiguidade que tem lá suas doçuras na medida em que não preciso formular a alternativa entre montanha e mar. Enfim, e/e e não ou/ou. Há alguns anos, por exemplo, me dava o privilégio de tomar banho de mar pela manhã e dormir a quase mil metros de altitude, num certo sítio aninhado entre as montanhas. Agora, mesmo não tendo mais nem um centímetro quadrado de terra naquelas serranias, continuo com um latifúndio montanhês na alma.
Visto o quê, sendo hoje domingo, assumo a condição de senhor de robalos e badejos que pulam nas ferventes panelas de barro. Postas, douradas como as madeixas de Rapunzel, que me levam à torre de requintados tesouros gastronômicos.
Enquanto aguardamos a chegada de nosso peixe e para evitar demonstrações de pressa ao garçom, o que nunca é recomendável, vou procurando pensar em outras coisas. Como, por exemplo, no profissionalismo desses trabalhadores do mar que não falham na messe que alegra nossos corações domingueiros.
Há alguns anos, um especialista em educação dizia que o bom profissional não se formava apenas com um treinamento rápido. Mesmo que isso possa soar óbvio não o era na época em que foi dito. Havia os que, a pretexto de formar quadros profissionais com urgência, tentavam atropelar a boa técnica e se firmavam em quantidades, ignorando a qualidade, já que precisavam de números para as estatísticas. Sabemos todos, em especial os da área, que ambos esses termos devem ser igualmente considerados à vista de objetivos definidos. Além do mais, a eficácia do aprendizado precisa de alguma coisa adicional. Uma certa atitude de “pertencimento” que exige vocação, tempo de estudo e/ou de prática mais prolongados no tempo. Pensei nesse especialista em educação quando conversava com alguns pescadores que estão numa “idade histórica” diferente da dos educandos que estava na mente do especialista. Fazem parte da parcela de profissionais formados apenas pela prática mas que ostentam uma atitude, uma espécie de orgulho e de satisfação pelo que fazem e que os aproxima do ideal imaginado pelo educador. Eles não tinham tempo de estudo mas carregavam essa tradição de competência de lavradores do mar, traduzidas nesses peixes como o badejo que são pescados a quase trezentos metros da superfície, segundo me dizem. Badejo, porque ele sabe que, na outra ponta, está o capixaba que não aceita generalizações: “Quero uma moqueca de peixe.” Não é capixaba. Capixaba pede peixe pelo nome, o que afinal é uma forma de valorizar o profissionalismo de quem não pesca peixe mas o peixe tal e tal. Se se trata de capixaba, o pescador sabe que precisa usar seus conhecimentos para atender a esse cliente que ele respeita porque ama o mar e suas coisas tanto quanto ele.
Um respeito pelo mar como o de certo pescador de Manguinhos de anos atrás que apanhava lagostas, sua especialidade. Seu “pesqueiro” ficava naquelas pedras perto da ponta dos Fachos. O tal apanhador trabalhava apenas uma hora por dia e nesse tempo pegava x quilos de lagosta. Conhecia aquelas pedras como a palma da mão e talvez conhecesse a própria biografia de cada lagosta apanhada. Não tinha erro. Uma hora de trabalho e tantos quilos de lagosta. Nem mais nem menos. Quem estivesse de fora podia dizer: “Mas que desperdício!” Se trabalhasse as oito horas regulamentares pegaria sete vezes mais do que pescava numa hora. Ele, nada. Só trabalhava daquele jeito. Depois, ia para o boteco do Chico tomar uma talagada.
Sei que a atitude desse pescador se explica por outras vias mas não quero entrar por esse caminho. Deixemos a História em paz, por ora. Talvez seja apenas oportuno lembrar que se trata de uma prática herdada das sociedades caçadoras/coletoras. Um anacronismo que encanta mas que bate de frente com o aumento da população. De qualquer maneira, um elemento de utopia quando se vê a sociedade tradicional apenas sob esse signo da “boa vida”, como o chamou Heimann. O advento da “sociedade econômica” que precisa alimentar as multidões que sobrevieram à revolução populacional rasgou a fantasia e, no momento, até o sonar entra em cena para localizar cardumes visando atender a essa avalanche de novas necessidades que explodem em ritmo crescente. Uma lembrança que atordoa um pouco pela superposição de uma tecnologia avançada sobre um bem natural. Hasta quando?
Mas acabei falando demais. Sem maiores encucações, contemplemos essa moqueca que está chegando para nossa mesa e nos faz desejar vida longa para os trabalhadores do mar e seus produtos maravilhosos.
[Crônicas de 2004.]
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)