A publicação de Poema Deitado no seu Peito, de Ana Cristina Costa Siqueira, pela Scortecci Editora (São Paulo, 2012), soa postumamente aos meus ouvidos, como se o seu livro pertencesse a uma poeta que morreu inédita — ou que estivesse morta em vida ou para a vida, tomada de uma incontrolável melancolia. O que é o caso.
Sinto que se trata de algo parecido com uma tentativa de reparar uma injustiça imperdoável. Talvez seja porque ela, apesar dos 54 anos bem vívidos e bem pesados, tenha algumas semelhanças com Emily Dickinson, cujo espírito de sua arte só se revelou, desencarnando-se, após sua morte, quando finalmente seus versos foram impressos em prol da criação da identidade da alma feminina.
Como Emily, Cristina é uma exilada dentro do seu próprio corpo almado, aprisionada dentro do seu silêncio tímido, e só se liberta momentaneamente quando escreve. Quem, por acaso, ler seus poemas, não acreditará, se vier a conversar com ela, que Cristina os tenha extraído de seu laconismo. Mas é porque tirou as palavras de sua boca para destiná-las apenas ao papel.
Como em Emily, estão presentes o lirismo, o sentimento de comunhão com a natureza, o prazer em cantar o cotidiano e em lidar com ele: a paixão pela poesia como meio-mor de se expressar e de vivenciar o mundo, tudo isso revestido por uma aparência virginal, tímida, ousada e familiar.
Uma das melhores poetas da nova geração capixaba, nasceu em 23 de setembro de 1958 em Juiz de Fora, MG, e veio para o Espírito Santo em 1977.
Amiga de longos silêncios face a face em seu eterno batom vermelho, é também autora de cartas belíssimas reunidas no inédito primeiro romance epistolar capixaba, Cartas Deitadas no seu Peito — Cartas a Oscar Gama Filho (1983 -2006), que pode ser inscrito no Guiness e enriquecê-la ao ganhar o título mundial de cartas de amor sem resposta: são 23 anos sem retorno! A incapacidade de responder à altura da beleza de seu texto me impossibilitou a réplica, tornando-a desnecessária quando ela desenvolveu cartas de uma beleza tão espaçosa que ganhava o espaço por si só e, como um buraco negro, sugava até a luz e as palavras que me permitiriam uma correspondência. Mas guardei todas e as devolvi 30 anos depois.
Cristina era, desde cedo, dona de um corpo de talento e de primor técnico grande o bastante para que ela não o controlasse com a perfeição que o futuro, hoje chegado, lhe forneceria. Por isso só as devolvi 30 anos depois. Estava nova demais para apreciar a beleza cegante dos diamantes de sol.
Dia a dia, ao longo de três décadas, escrevemos e debatemos, e tanto e a tal ponto que uma ponte mágica se construiu entre nós quando criamos, juntos, a sua obra — eu de muso carnavalesco.
Anos de contato pontifício levaram-na a aliar voos condoreiros e imagens grandiosas aos seus pequenos cacos de lirismo e de cotidiano, influenciando na composição de um retrato ao mesmo tempo estranho e arrebatador pela união do lírico ao grandioso e ao ácido que se encontram neste magnífico Poema Deitado no seu Peito — um Jogo de Amarelinha (homenagem a Cortázar), publicado pela Scortecci Editora, de São Paulo, em 2012, com 142 p., lançado na Bienal de Literatura de São Paulo no ano passado.
[In A Gazeta, Caderno Pensar, 13/04/2013.]
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