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Oscar Gama Filho: No escuro armados

Bem melhor do que nesta orelha, o brilhante trabalho de Marcos Tavares está exposto ao sol nu dos olhares no conto “Revisão”. Nele, este capixaba modelo 1957 descreve seu processo criativo, narra nosso primeiro encontro e — melhor do que isso — elabora quase que a sua poética. Está tudo ali: sua luta penosa com a palavra, a lapidação lenta do texto, a luta contínua com o dito e com o mal dito, a revisão contínua dos originais, o acréscimo de palavras novas e de frases de efeito a trabalhos que todos já davam como prontos, a inspiração que o assalta no meio da noite com jorros de idéias que o escritor não tem tempo de registrar: “um jugo de palavras”, ele diz. E eu confirmo. Para Marcos, escrever é um jugo de palavras. De fato, sua ficção poderia ser chamada até mesmo de neobarroca, já que se caracteriza pelo jogo de idéias (conceptismo) e pelo jogo de palavras (cultismo). Preocupação central de Marcos Tavares, a sua trabalhada e retrabalhada linguagem tem de ser lida, não só nas entrelinhas, mas também nas entreletras, nas entrepalavras e nas entrefrases, pois é do seu choque e da sua troca amorosa que nasce seu (troca) filho amado: o sentido, no duplo. Entretanto, dotado de ambigüidades e de sutilezas, em seus textos o significado não se apresenta como uma ordem a ser acatada, mas sim como uma sugestão, um convite a uma viagem em que só acharemos aquilo que nos dispusermos a colocar. Pois a voz do bom e do mau, do simples e do complexo, reside muito mais em nós do que em mudas folhas de papel.

Pelo estilo mágico de No escuro, armados navegam muitas embarcações e sempre no duplo sentido — da palavra, da frase, da situação e do sexo: tmeses, exploração visual do espaço gráfico, neologismos de função, intertextos, humor, mais humor, sempre humor, nonsense, neologismos, etc. Ecos concretistas estão presentes na utilização das palavras-valise (palavras-portmanteau) de Joyce e de Lewis Carroll, em que duas palavras se fundem para formar uma nova, sob o domínio de apenas uma sílaba tônica, como é o caso, por exemplo, de “chuventar” e “prostiputa”. Ecos praxistas podem ser achados no trabalho de levantamento de palavras pertencentes à área que será abordada.

Enfim, deve-se assinalar, também, a presença de recursos melopaicos, tais como aliterações, coliterações, assonâncias, paronomásias, que, a meu ver, não são apenas elementos puramente musicais, dispensáveis e até prejudiciais ao sentido da frase. A forma, acredito, também comunica conteúdos por meio da transmissão recíproca de parte de uma palavra a outra, pela qual ambas trocam sentidos ou fragmentos de sentidos, numa permuta de significados em nível de significantes. Assim, quando Marcos, em “Fabulosa”, escreve “era uma vez uma voz que, desde o tempo dos avós, nunca obtivera uma vez”, parte do significado da palavra voz está presente em avós, e parte de avós está presente em voz. A prova é que o sentido se altera se modificarmos o texto para “era uma vez um som que, desde o tempo dos seus ancestrais, nunca obtivera uma chance”.

O livro está dividido em duas partes: Babel revisitada e Os outros. Babel revisitada se detém sobre a língua, deglutindo-a desde o momento da sua criação (não só da criação literária, mas também da do mundo) e das duplas utilidades (“Empregos da língua”) e sentidos (“O último trago”) até o momento em que o olhar “científico” produz teorias lingüísticas (“De codificações”) e classificações tais como “provérbios populares” (“O detento S S O ou Vox Populi”). Em Os outros, Marcos, sempre com ironia, trata da aprendizagem do próximo, do saber do outro, passando pelo absurdo das lutas do homem contra o homem (“No escuro, armados”), pelo homoamor (“Praça da espera”, “Meus meninos”), pelo moralismo repressor (“Caso moral”), pelas neuroses humanas (“Auto-retrato”), pelo homicídio (“Ao amigo Alfred”), pelo resgate da fantasia via contos-de-fada (“Fabulosa”, “Fadações”), pelo nascimento e sua angústia (“Tal pai”), pelos sonhos literários (“Revisão”) e pela solidão (“From Dores do Rio Preto, with love”).

[Orelha do livro No escuro, armados, de Marcos Tavares, Anima/Fundação Ceciliano Abel de Almeida-Ufes, Rio de Janeiro/Vitória, 1987. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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