Voltar às postagens

Outras crônicas

Com a morte de Renato Pacheco, ocorrida em 18 de março deste ano, o Espírito Santo perdeu a mais preciosa de suas lendas vivas. A perda foi tanto maior porque Renato Pacheco era vário e diverso, exercendo atividades de professor, juiz, jornalista, historiador, sociólogo, folclorista, poeta, contista, romancista, todas elas com aquele misto de capacidade e charme que só às lendas vivas é facultado. Paralelamente, o repositório de informações sobre o Espírito Santo, que guardava em sua mente e distribuía de modo generoso a quem o procurasse como fonte de consulta, fazia dele a mais completa enciclopédia sobre o Estado de que se tem notícia. Por fim, aqueles que tiveram a honra e o prazer de serem seus amigos perderam não só uma sólida referência humana e humanística como também a forte presença de sua amizade irrestrita e fraterna.

Renato Pacheco era sócio da Cultural-ES e colaborador da Estação Capixaba, onde a sua caricatura, traçada por Dave Liebke, foi escolhida para servir de ícone da seção Bravos Companheiros e Fantasmas, recebendo ali, desde a inauguração da seção, os visitantes de braços e sorriso aberto. Renato está presente na Estação Capixaba não só no seu verbete literário, veiculado na referida seção, como também em duas colaborações no Canteiro de Obras, o romance O senhor Kurtz morto e o livro de contos Veneno para matar uma rata, ambos ainda inéditos em formato de livro impresso. Cedera-nos também, para veiculação no Canteiro, um outro romance inédito, A mão esquerda de Deus.

Numa pequena homenagem à sua memória, estamos reproduzindo aqui duas crônicas suas, ambas inéditas, escritas que foram para a revista Você, mas, por motivos hoje esquecidos, não publicadas ali. 
(Reinaldo Santos Neves)

* * *

UM BONDINHO CHAMADO SAUDADE (E OUTROS BONDES)

Em Zurique, junho de 1990, subindo, em moderníssimo bonde, a ladeira da Universidade, ouvi, nitidamente, Alvarenga e Ranchinho, no carnaval de 1935, pedindo: “seu condutor, dim-dim, seu condutor, dim-dim, pára o bonde pra descer o meu amor”.

Num átimo, não estou mais em Zurique, e sim em Vitória, subindo no bondinho circular a ladeira Coronel Monjardim e, menino deslumbrado, observo os amores e negócios que ali são tramados…

Vitória teve bondes puxados a burro, eufemisticamente chamados de “a tração animal”, desde 1907, do Centro ao Forte de São João, e, em 1909, até a Praia do Suá. Os bondes elétricos circularam, entre nós, de 1911 a 1963. A primeira linha chamava-se Estrada de Ferro, ia de Paul a Piratininga, entrava pelo 3° Batalhão de Caçadores (hoje 38° BI) e sua inauguração deve ter sido coisa muito importante, pois contou com a presença do presidente da República, marechal Hermes da Fonseca.

Em 1940 o bondinho de seis bancos, o circular de tantas infâncias vitorienses, foi suprimido. Lá se vai ele pela última vez da praça Costa Pereira, subindo a rua Sete e a Coronel Monjardim, até a Assembléia, onde vira os bancos, e desce a Dom Fernando, Parque Moscoso, 23 de Maio, rua do Comércio, praça Oito e de novo Costa Pereira. Restaram, extinto o circular, as linhas Cruzamento, até a Fábrica de Tecidos, Jucutuquara, até os sertõezinhos de Maruípe e Fradinhos, Praia do Canto e Santo Antônio, que levava, vivos e mortos, ao cemitério público.

A garagem dos 27 bondes (alemães, belgas, norte-americanos e alguns mestiços) e os transformadores que permitiam sua operação ficavam no final da rua Sete, onde hoje é a sede da Escelsa.

De noite, os bondes recolhiam. Certa feita, três adolescentes (não lhes digo o nome) roubaram dali um bonde e foram até a Vila Rubim, onde acionaram tanto os freios que subiu aos ares uma fumaçada doida. A aventura não teve maiores consequências, outros eram os tempos. Os alunos do São Vicente botavam sebo nos trilhos na ladeirinha da Casa de Fogos do Raimundo Nonato, e cadê que o bonde subia?… O motorneiro carrancudo tinha que colocar areia nos trilhos…

Em Cachoeiro de Itapemirim houve serviço de bondes, estudado por Levy Rocha, instalado em 1924 pelo engenheiro e futuro escritor católico Gustavo Corção. Seu trajeto era da Fábrica de Tecidos ao Amarelo, passando pela ladeira da Matriz. Havia dois bondinhos, até 1938, e o povo, jocosamente, os apelidara de “Upa” e “Cupa”. Diziam: “Enquanto o Upa subia o Cupa descia…”, com perdão do cacófato, que é folclórico, os velhos cachoeirenses que o confirmem.

O bonde também fazia alguns estragos, nem tudo eram flores: afundava o nível das ruas, abalroava carroças e carros, quebrava, em postes lindeiros, cabeças desavisadas de pingentes não coroados, e atropelava transeuntes, como ocorreu, na Marcos Azevedo, com a filhinha do professor Ceciliano, que perdeu uma perna e veio a morrer um mês depois, por causa do ferimento. O motorneiro, coitado, ficou tão abalado que toda noite sonhava com o acidente, et pour cause foi afastado do serviço.

Ah! Os anúncios do bonde, “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro”. Ah! O frio na barriga quando se pegava ponga — carona — com o bonde andando. Ah! A sensação agradável de subir os estribos, sentar-se nos bancos de sólida madeira, fechar as cortinas de lona, em dias de chuva, observando o aplomb do motorneiro, um capitão de longo curso, e os apertos do condutor para cobrar a passagem dos pingentes, em dias de jogo, em Jucutuquara, entre Rio Branco e Vitória…

Ah! Quem nunca andou de bonde não sabe o que é um transporte urbano decente. Agora que falam tanto em túneis e elevados, mais fácil impedir a entrada de ônibus da Rodoviária até o Terminal Dom Bosco e implantar aí moderna e elegante linha de bondes, nostalgia à parte, uma senhora solução não poluente, para o Centro de Vitória. Depois da reabertura do Bar Santos da Vila Rubim, é tudo que nos falta!

[Circa 1993]

FOLCLORE: SÃO PAULO, 1954

Naquele ano da graça de 1954 comemorava-se o quarto centenário de fundação da cidade de São Paulo. O presidente da Comissão de Festejos era o poeta Guilherme de Almeida, que, na programação, fez questão de incluir numerosas reuniões internacionais de especialistas das mais diversas manifestações científicas, literárias e culturais.

“São Paulo não pode parar” era o mote da cidade, motivação que, a médio prazo, iria tornar um inferno a vida na grande metrópole.

Renato Almeida, dublê de diplomata e folclorista, convocara, para agosto, um Congresso Internacional de Folclore, convidando, para o evento, os maiores estudiosos do mundo.

Aqui no Espírito Santo vivíamos fase áurea na pesquisa de nossas raízes. Guilherme Santos Neves, desde a década de 40, retomara os estudos da bela ciência do povo, iniciados, aqui, por Afonso Cláudio. No jornal A Tribuna publicava, semanalmente, artigos subordinados ao título “Dois dedos de linguagem e folclore” e, no Centro Capixaba de Folclore, conseguira uma equipe que vasculhava o Estado todo, Pickwicks modernos, em busca de nossas antiguidades populares. Fazíamos desfiles e concursos, inclusive de raias e papagaios, e era editado o boletim Folclore, com renome fora de nossas fronteiras. Já em 1951 havíamos participado do primeiro Congresso Brasileiro de Folclore, no Rio, onde nossa representação muito se distinguira.

Agora chegara a vez de São Paulo. Em carta que me escreveu, meses antes, Mestre Guilherme, humílimo, dizia: “Estaremos lá, se Deus quiser, mas sem trabalho escrito, desta vez. Vamos ouvir os mestres, sugar-lhes a cultura, quietinhos em nossa obscuridade. Com o propósito de aprender com eles, se pudermos compreendê-los.” Exemplo para estas vaidades medalhadas que andam por aí!

Lá estivemos, o nosso mestre e esposa, D. Marília, e mais Paulo Alfredo da Silva e D. Altair, Eugênio Sette e D. Antonieta. Hermógenes Lima Fonseca, em virtude de dificuldades momentâneas, não pôde comparecer, mas mandou o Ticumbi, grupo guerreiro de Conceição da Barra. Este vosso escrivão e esposa já estavam em São Paulo, eu fazendo curso na Escola de Sociologia e Política.

Nos dias aprazados, recebemos nossos crachás de congressistas internacionais.

O notável da festa ficou à conta dos dançarinos do Ticumbi. As belas festas e autos dramáticos do Nordeste, reisados, cheganças, mouros, já eram, de sobejo, conhecidos. Mas o Ticumbi, que muitos vinculavam ao Cucumbi registrado em Pernambuco por Pereira da Costa e considerado desaparecido, marcou forte presença. A luta entre os reis de Congo e de Bamba, ambos querendo a honra de presidir a festa de São Benedito, empolgou os folcloristas estrangeiros. Fernando Ortiz, de Cuba, considerou a existência, em sua ilha, de dança dramática semelhante. Lembra-me uma folclorista austríaca, o nome perdido nos escaninhos da memória, que rompeu o cordão de isolamento e se pôs a dançar, no gramado do Ibirapuera, ao lado de nossa gente barrense. Nunca a luta para festejar o glorioso Bino Santo se apresentou com tanto garbo, dança incontaminada, autêntica, forte. Os “oinhos miúdos” do Santo olhavam a multidão estupefata.

Além das sessões ordinárias, muitos foram os encontros paralelos. Havia muitas brigas entre os folcloristas paulistas e, em quase todas, consoante se comentava, à boca pequena, necessário se fazia chercher la femme.

Um nosso amigo de longa data, Alceu Maynard Araújo, não se dava com o secretário da Comissão Paulista de Folclore, Rossini Tavares de Lima. Por isso, convidou alguns participantes a sua bela casa no Jardim América. Lá estávamos, os capixabas, em meio a inúmeros estrangeiros. Com meu inglês de Barbados, servi, orgulhosamente, de intérprete a Ralph Steele Boggs e Stith Thompson, as grandes vedetes da representação norte-americana. À saída, de quebra, carreguei livros para Felix Coluccio, consagrado autor do Diccionario del Folklore Argentino, fato que ele, octogenário de boa memória, relembrou quarenta anos depois, em reunião em São José dos Campos, SP.

Afinal, depois daquele lufa-lufa todo, reembarcados os participantes do Ticumbi para o Espírito Santo, fomos para a sessão solene de encerramento, no Salão Nobre da Faculdade de Medicina, na rua Dr. Arnaldo. Gente engravatada, como de praxe.

Eugênio Sette disse-me muito impressionado:

— Já notou que as paulistas são feias e deselegantes?

E, homem justo que era, completou:

— Mas aquela mocinha ali é a exceção que confirma a regra.

— Ora, Eugênio, — retruquei, — aquela é a Lininha, capixaba da gema, da Praia do Canto, filha de D. Paulina Derenzi e do Dr. Paulo Mendes da Rocha…

Todos rimos e a sessão solene começou.

[Circa 1994]

———
© 2004 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
———

Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Deixe um Comentário