“Chegueei, chegaaaste. Viiinhaas fatigaada e triiiste,
Triiiste e fatiiigaado eu viiinhaaa.
Tiiinhas a aalma de sonhos povoaaada,
De soonhos povoaada a aalma eu tiiinha.”
“Gostei da letra, seu Pedrinho. “É do Chico?,” perguntou Lenilda que viera da cozinha para servir um cafezinho ao escrivão.
“Não, Lenilda.”
“Do Caetano?”
“Também não, Lenilda.”
“Não vai dizer que é de Roberto Carlos!”
“Não, minha amiga. São versos do poeta Olavo Bilac, em que botei melodia por minha conta,” explicou o escrivão de polícia, satisfeito com o efeito que causara na periferia.
“O senhor inventou a música no seu cavaquinho?”
“Digamos que sim,” admitiu Pedro, brincalhão.
“Pois olha, seu Pedrinho, o senhor pode ficar rico, botando música em poesia.”
“Isso dá muita complicação, minha cara. A lei de direitos autorais não perdoa quem aproveita tema que não é de sua autoria. Eu só fiz por diversão.”
“Como é que não deu nada para Martinho da Vila quando ele copiou a Madalena do congo da Barra do Jucu?”
“Isso eu não sei explicar. Talvez porque capixaba é caído por gente famosa que vem de fora botar banca aqui na terra. Tem até um historiador que já disse que esse tipo de exploração começou com Duarte de Lemos…”
“Aquele que virou avenida?”
“Ele mesmo. Apareceu por aqui e ganhou de Vasco Fernandes Coutinho, nosso primeiro donatário, a ilha de Vitória, sabe por quê?”
“Nem imagino…”
“Para ajudar Coutinho na colonização do Espírito Santo.”
“Mas o seu Coutinho também teve interesse na ajuda, o senhor não acha?”
“Que teve, teve, mas foi antes dos dois se desentenderem… Foi briga de cachorro grande, que chegou até ao conhecimento do rei de Portugal por meio de uma carta.”
“Eu fico impressionada como o senhor sabe tanta coisa, seu Pedrinho! Mas foi bom falar em carta. Veja esta aqui e me diga o que significa esta palavra.”
Lenilda abriu a folha de papel e mostrou, com o dedo com a unha de esmalte quebrado o termo magnânimo, grafado em letra ligeiramente tremida.
“Eu já vi esta caligrafia,” pintou um alerta na cuca de Pedro, enquanto explicava à amiga: “Magnânimo quer dizer generoso, uma pessoa muito bondosa, como o nosso delegado Digital,” completou o escrivão em tom de mofa.
“Já entendi,” disse a faxineira, pescando também a brincadeira.
“Esta expressão refere-se a você?” indagou Pedro.
“Não, seu Pedrinho. Foi o senhor quem escreveu esta palavra, que agora veio de volta nesta cartinha, só que dirigida a mim, e não ao senhor,” disse a faxineira, saboreando o efeito da informação no espanto que se estampou na fachada do escrivão.
“Como é que é?”
“É o que eu lhe disse. Foi o senhor que usou esta palavrinha, que eu nunca tinha ouvido na minha vida, numa carta para dona Magnólia Louzada. E agora ela devolveu nesta carta que está em suas mãos,” explicou a faxineira, concluindo: “O senhor já ouviu falar em palavra dita e retornada? Foi o que aconteceu.”
“Pera aí, Lenilda. Explica direitinho para eu entender o que está se passando,” disse Pedro que já ia de cigarro pelo meio, desde que tomara o cafezinho.
“É melhor o senhor ler a carta toda, pra ficar por dentro do assunto,” sugeriu a faxineira, pondo-se diante do escrivão em atitude de quem admira a paisagem vista da ponte. E foi então que Pedro leu. E o que Pedro leu foi o seguinte, na letrinha trêmula de Magnólia Louzada:
“Senhora distinta arrumadeira:
Desculpe-me por não chamá-la pela sua graça de batismo, mas é que não tive o prazer de ter sido apresentada à senhora quando uma vez estive nessa delegacia para registrar uma queixa e fui recepcionada pelo prestativo e atencioso amanuense, seu Pedrinho.
Nessa ocasião, tive a impressão de que a senhora tem uma simpática relação de amizade com o amanuense, razão pela qual estou lhe escrevendo com um pedido particular.
Isso porque, outro dia, recebi do senhor Pedro uma correspondência apelando para o meu espírito magnânimo a fim de que eu retirasse a queixa que apresentei contra dois escritores capixabas que elogiaram o compositor Noel Rosa por ter feito cocô na praça da Independência, quando visitou Vitória em 1934!
Ele (o seu Pedro) havia me prometido convocar os escritores a essa delegacia, para eu lhes aplicar uns propedêuticos bolos de palmatória, e agora está querendo que eu o livre desse compromisso, sob o pretexto de me poupar o incômodo de ir até aí. Isso prova que ele não conhece Magnólia Louzada, pois não vou livrá-lo nunca da promessa que me fez!
Como estou começando a perceber que seu Pedro está querendo faltar com a palavra, apreciaria muito, dona arrumadeira, se a senhora, toda vez que for servir um cafezinho a seu Pedro, como a vi fazer quando aí estive, lembrasse a ele da necessidade de cumprir o compromisso assumido com a minha pessoa. Dê, por favor, uns apertuchos nele! Pode estar certa de que vou escrever também para seu Pedro, em resposta à carta que me mandou, mas gostaria de contar com o apoio que estou lhe pedindo.
É uma coisa tão simples: sempre que servir um cafezinho, peça para seu Pedro não esquecer do cocô de Noel Rosa! Ele vai entender direitinho. Posso contar com sua ajuda? Se algum dia a senhora precisar de um servicinho extra de faxineira ou algo parecido, pode me procurar no endereço que está no verso do envelope, no qual segue esta cartinha. Assinado, Magnólia Louzada, desde já sua amiga obrigada.”
Quando Pedro terminou a leitura, Lenilda perguntou: “É verdade o que Dona Magnólia escreveu?”
“É sim,” confirmou Pedro. “Eu queria poupá-la de vir à delegacia…”
“Não me refiro à vinda à delegacia. Estou falando do elogio ao cocô de Noel Rosa, feito pelos dois escritores capixabas. Houve mesmo o elogio?”
“Não foi bem assim como dona Magnólia escreveu…,” tentou escapulir o escrivão.
“Mas houve ou não houve?” pressionou Lenilda.
“De certa forma, houve, mas foi em tom de pilhéria… Só que dona Magnólia levou a coisa a sério…,” disse Pedro.
“Mas se ela levou a sério, outras pessoas também podem levar, não é?”
“Podem se não perceberem a ironia.”
“E vão concluir igualzinho à dona Magnólia, que considerou elogio o que foi escrito sobre o cocô de Noel Rosa?” continuou Lenilda apertando a gargantilha do escrivão.
“Se lerem do jeito que dona Magnólia leu, vão concluir do jeito que dona Magnólia concluiu…” cedeu Pedro.
“Ou seja, nós vamos ter de concordar que as pessoas podem chegar no Espírito Santo, ficar com a ilha de Vitória, levar nossa Madalena embora, fazer um cocô fedorento na Costa Pedreira, e ainda vão ser elogiados pelos próprios capixabas… Se é assim, Noel Rosa pode fazer parte do time de Duarte de Lemos e Martinho da Vila?”
“Com certeza…”
“Então, seu Pedrinho, dona Magnólia está coberta de razão. E me desculpe, mas não vou deixar o senhor tapear a pobre criatura. De hoje em diante, quando lhe servir um cafezinho, vou lembrar do cocô de Noel Rosa, para as providências que dona Magnólia pediu. E começo agora mesmo: quer que lhe traga outro cocozinho…?”
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)