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Para ficar: aspectos homoeróticos da lírica de Kaváfis[1]

1. Introdução a um duplo sentido do qual iremos abusar:

Ontem, andando por um bairro
longe do centro, passei diante da casa
onde eu entrava quando muito jovem.
[…]
as lojas, as calçadas, cada pedra,
e os muros, e as janelas, e os balcões;
nada, nada de mau ali ficara.
(KAVÁFIS, 1982, p. 148: “Diante da casa”)

Para falar, como pretendemos, de Konstatinos Kaváfis, um autor que, nascido no Egito, se tornou uma das grandes referências da moderna poesia grega, duas estratégias argumentativas se impõem.

A primeira requer uma série de recortes básicos da história, com menções a determinados fatos, vários deles da Antigüidade. Dificilmente se consegue tratar da Grécia sem que se retome um certo passado, objeto de reconstituições de toda a espécie. Tal passado veio a repercutir, e muito, sobretudo com a perda da independência das cidades gregas, num processo de ressonância cultural em que, mais próximo a nós, o próprio Kaváfis — dito o poeta da Alexandria — colaborou. Preferindo o pretérito, ou seja, recolhendo material da historiografia para muitas das suas composições, ele mesmo nos sugere o método da referência a eras mais ou menos recuadas no tempo.

A segunda estratégia a que aludimos implica alguma ousadia interpretativa perante a obra do escritor, pois jogaremos com mais de uma acepção do verbo ficar, uma das quais não se acha nessa obra, mas para o uso da qual pretendemos encontrar justificativa.

Vamos à primeira etapa da discussão.

2. A herança helênica, transmitida pelos seus apropriadores:

De Medos e de Armênios, Sírios, Gregos, todos temos bastante.
(CAVAFY, 1986, p. 72)

O complexo cultural a que pertencemos nos incute uma imagem de certos aspectos da Hélade ou Grécia. Sintetizando bastante a história, podemos dizer que tal imagem se articula em nossas mentes com os dados seguintes.

Invadida em torno de 2.000 a.C., por tribos indo-européias autodenominadas helênicas, a Província Balcânica foi a área a partir da qual se desenvolveu uma civilização fragmentada politicamente, sem a existência de um centro imperial unificador das suas cidades-estado. Com o tempo, os helenos colonizaram territórios do Mar Egeu, da costa ocidental da Ásia Menor, do Mediterrâneo e do Mar Negro. Travando guerras vitoriosas contra o império persa, os mesmos helenos exacerbaram a sua tendência à divisão, deixando crescer a rivalidade entre Atenas e, sobretudo, Corinto e Esparta. Disso resultou o confronto bélico entre a liderança espartana e a ateniense, cada uma congregando em torno de si as demais cidades da região, na Guerra do Peloponeso, na qual, por fim, a Hélade se enfraqueceu. Aproveitando-se de tal debilidade, o império macedônico, sob as ordens de Felipe, dominou as populações helênicas e as unificou à força. Prosseguindo com as conquistas de Felipe, o seu filho Alexandre o Grande arrasou o império persa e continuou subordinando a Hélade à Macedônia, constituindo um vasto domínio, que, além dessas duas entidades geopolíticas, incluiu territórios que se estendiam do Egito ao Rio Indo. Todavia, com a morte de Alexandre, fragmentou-se o seu império em reinos dominados pelos comandantes do jovem conquistador. O retalhamento do império macedônico facilitou a posterior subjugação desses domínios, empreendida pelos romanos, que, aliás, atribuíram aos helenos o nome de gregos. Por sua vez, séculos após a pregação de Cristo, os romanos tiveram que efetuar a divisão do seu Império em dois governos, reunificá-los outra vez e, outra vez, dividi-lo, agora em definitivo, em Império Romano do Ocidente, com a capital em Milão, e Império Romano do Oriente (ou Bizantino), com a capital em Constantinopla, antiga Bizâncio. A queda do Império Romano ocidental veio em 476; a do Império Romano oriental ocorreu bem mais tarde, em 1453, com a famosa tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, os quais agora a rebatizaram Istambul. O domínio do império turco-otomano estendeu-se, até os séculos XIX e XX, sobre parte do mundo que vamos focalizando, inclusive a Grécia, que apenas recuperou a independência em 1829, transformando-se, todavia, numa peça menor no jogo da política mundial das grandes nações, que vinham destruindo o que restava desse poderio turco-otomano, ou seja, islâmico (cf. SENA, in: CAVAFY, 1986, p. 150-166).

Sem que apareça sequer um fragmento de verso ou prosa de Kaváfis na comprimida página de história apresentada acima, deve-se dizer que o conglomerado de fatos, que a constitui, comparece, de maneira direta ou não, nas páginas que o próprio escritor redigiu em grego. Certos aspectos de tal conglomerado são legíveis, inclusive, na sua visão irônica da existência, compreensível como a atitude de quem se tornou cético perante a sucessão de espetáculos gloriosos e de reveses que tiveram enormes implicações na sorte da etnia em cujo seio ele veio ao mundo; aspectos que também são legíveis numa das temáticas da obra de Kaváfis: a questão da pederastia, que, podendo praticar-se de maneira menos restrita nos universos grego e latino enquanto pagãos,[2] veio a sofrer enorme condenação nas comunidades cristãs, numa das quais, afinal, nasceu o poeta, ou seja, a célebre Alexandria fundada pelo filho de Felipe no Egito.

Boa parte da herança grega que se espalhou urbi et orbi resulta das derrotas dos helenos: de início, diante dos macedônios e, mais tarde, dos romanos. Os primeiros, que viviam no noroeste da Península Balcânica, reivindicavam ser da mesma origem étnica dos gregos; quanto aos segundos, é conhecida a sua admiração por determinadas qualidades do povo que conquistaram. E uns e outros espalharam aspectos do legado helênico que acabamos de mencionar.

É fato compreensível que a Alexandria, vários séculos após a sua fundação no Egito por um conquistador macedônio, viesse a tornar-se o berço de um dos autores da modernidade grega, e não da egípcia muçulmana: Kaváfis pertenceu à colônia helênica da cidade, cristianizada em decorrência do Império Romano do Oriente. Tamanho entrecruzamento de fatores não deixou de atuar na sua lírica, fosse ou não na temática homoerótica da mesma.

3. Enfim, “o rápido surgir da carne”

Sabe-se que, ao morrer em 1933, Kaváfis, nascido em 1863, deixou para serem publicados 154 poemas, datados de 1905 ao ano do seu falecimento. Tais composições constituem os chamados “poemas canônicos”, editados em livro em 1935. Com o transcorrer do tempo, todavia, vieram sendo lançados a público “poemas inéditos”, “poemas ingleses”, “traduções”, “traduções inéditas”, “poemas inconclusos”, “rascunhos soltos” e, até, “poemas proscritos” pelo próprio autor [!], material que este não tivera o cuidado de destruir e sobre cuja publicação iremos argumentar adiante (cf. CAVAFIS, 1997, p. 7-20).

Desde 1970, o escritor pode ser bem lido na nossa língua, graças ao poeta português Jorge de Sena, que, nesse ano, lançou 90 e mais quatro poemas, de Constantin Cavafy. Em 1982, José Paulo Paes apresentou, no Brasil, o volume Poemas, de Konstantinos Kaváfis, que contém cerca da metade das suas composições canônicas. Em Portugal, Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis seguiram os passos de Sena, vertendo em conjunto, de início (1988), 25 poemas e, depois (1994), Poemas e prosas, de Konstandinos Kavafis.

A nossa preocupação em evidenciar as diferentes transliterações do nome do poeta da Alexandria e, ainda, as datas das versões portuguesa e brasileira da sua obra justificam-se: a transliteração envolve já a problemática da tradução, que terá importância à frente; quanto às datações, estas são igualmente relevantes aqui, pois abordamos um poeta que, com forte atração pela história, não apenas indicou, conforme assinalamos, o ano da escrita deste ou daquele texto da sua produção, como ainda jogou com datas em alguns dos títulos dos mesmos: “Dias de 1903”, “Filho de hebreus (50 d. C.)”, “Dias de 1896”, etc.

Já é o momento, entretanto, de focalizarmos um dos chamados poemas canônicos do autor alexandrino. Citemos o texto mais motivador da nossa análise, em versão de Jorge de Sena: “Para ficar”, de 1919.

Devia ser uma hora da noite
ou uma e meia.
A um canto da taberna,
atrás da divisória de madeira.
Sós ainda na deserta sala
que um candeeiro mal iluminava.
O criado, obrigado a esperar, adormecera à porta.

Ninguém nos teria visto. Mas, embora,
estávamos os dois tão excitados,
que nada nos faria ter prudência.

A roupa se entreabria… — muito pouca
na ardência de um divino mês de Julho.

Prazer da carne,
por entre a roupa;
o rápido surgir da carne — e a imagem dela
cruzou vinte e seis anos, até vir
a estes versos, para ficar.
(CAVAFY, 1986, p. 91)

Na madrugada, numa taberna, dois corpos se encontram de modo fortuito. A menção à “prudência” (que, afinal, não se tem), a fugacidade forçada do contato carnal, a referência ao entreabrir do vestuário são indicações de que, muito provavelmente, assistimos a uma cena de homossexualismo, cuja representação se dá desse modo porque uma cultura de dominância heterossexual impõe ou permite tal mise-en-scène clandestina, tal atuação às ocultas. Clandestinidade: nas sombras noturnas de uma taberna se fazem certas coisas típicas de um universo erótico — ainda assim, com a noção de que elas são perigosas, exigem a prudência, pois, mesmo não sendo esta a atitude dos praticantes ou participantes “excitados” do ato, nem por isso ela fica sem nomeação, ou seja, sem lembrança potencialmente ameaçadora.

A ação com que nos deparamos no poema é exemplar. Mas do quê? De um dos modos possíveis de praticar o sexo reservados por um determinado gênero de cultura a alguns dos seus membros. No caso em pauta, praticá-lo em locais que se situam no bas-fond da sociedade, o que levou um tradutor espanhol do poema em causa (Pedro Bádenas de la Peña), em nota ao mesmo, a falar em “sórdida ambientación”, sem deixar de destacar o “tono apasionado del conjunto” (in: CAVAFIS, 1997, p. 235, n. 86), tom típico, aliás, da expressão das chamadas “minorias”, sejam estas sexuais, étnicas, religiosas, políticas, etc. No quadro que, antes, esboçamos — incluindo dados e datas desde a fixação, na Península Balcânica, de tribos helênicas —, nesse quadro acha-se implícita a formação do poder que também atua na cena do texto em foco, ou seja, o que acarretou a desvalorização da atividade erótica entre pessoas do mesmo sexo.

O tradutor espanhol antes referido valeu-se do verbo “Perdurar”, ao verter o título do texto que vimos Jorge de Sena traduzir como “Para ficar”. Noções que, obviamente próximas entre si, em termos de sentido, nos conduzem a certo ponto de análise. Aqui, será aproveitada uma reflexão sobre a escrita, desenvolvida por Jacques Derrida na conferência “Assinatura acontecimento contexto”.

Na sua conferência, Derrida se propõe a enunciar os “predicados essenciais numa determinação minimal do conceito clássico de escrita”, generalizando-os, todavia, para “todas as ordens de ‘signos’ e para todas as linguagens em geral mas também […] para o campo do que a filosofia chamaria a experiência, mesmo a experiência do ser: a dita ‘presença'” (DERRIDA, 1991, p. 358). Três alíneas compõem tais predicados:

a) O signo escrito, sendo “marca que permanece, […] não se esgota no presente da sua inscrição”, pois pode atuar na ausência do “sujeito empiricamente determinado, que, num contexto dado, emitiu ou produziu [tal marca]” (DERRIDA, 1991, p. 358: destaque nosso).
b) Funcionando assim, o signo escrito “comporta uma força de ruptura com o seu contexto, quer dizer, o conjunto das presenças que organizam o momento da sua inscrição. Esta força de ruptura não é um predicado acidental, mas a própria estrutura da escrita” (DERRIDA, 1991, p. 358: destaque nosso).
c) O signo escrito porta tal “força de ruptura” porque pressupõe um espaçamento, que o constitui. O espaçamento referido “o separa dos outros elementos da cadeia contextual interna […], mas também de todas as formas de referente presente […], objetivo ou subjetivo” (DERRIDA, 1991, p. 358).

Segundo Derrida, esses três predicados da escrita fazem parte da lógica da iterabilidade, para o esclarecimento da qual o filósofo chega a recorrer à etimologia: “iter: de novo, viria de itara, outro em sânscrito” (DERRIDA, 1991, p. 356). O que é iterável, repetível, pode sê-lo em diferentes contextos, por diversos emissores, enxertando-se em outros textos que, inclusive, possuem a capacidade de alterar-lhe bastante o significado.

Precisamente porque tais predicados são generalizáveis, a ponto de incluir a chamada experiência, pudemos, antes, dizer que a ação ou cena homossexual com que nos deparamos no poema é exemplar, isto é, repetível, iterável, como acontece com qualquer exemplo (homo- ou heterossexual), com qualquer modalidade de evento: caracteriza isto o próprio evento de que temos participado aqui nos últimos dias, o qual, por mais singular que se apresente, exemplifica o que se denomina Congresso.[3]

Ainda exemplifica a iterabilidade a publicação antes mencionada, após a morte de Kaváfis, de poemas seus que ele não desejava fossem editados, mas os quais não tivera a precaução de destruir. Para utilizar as formulações de Derrida, tais composições, permanecendo como marcas, com possibilidade de atuar para além do momento da sua inscrição por um “sujeito empiricamente determinado”, comportando um potencial de ruptura com o seu contexto dito original, vieram sendo efetivamente impressas ao longo do século XX. Embora exista aqui um evidente problema de “indústria editorial”, com as implicações quer de prestígio intelectual para os estudiosos que lidaram com o espólio do autor, quer de lucro para os editores, não se deve ignorar que a questão é delicada: para citar dois exemplos quase sempre recordados em discussões como a presente, caso se obedecesse aos desejos de Virgílio e de Kafka, parte fundamental das suas obras, ainda inédita, jamais veria publicação. Isto diz respeito ao que, em outro passo do seu ensaio, Derrida trata como “possibilidade da ‘morte’ do destinatário”, em ligação paradoxal com a noção de transcendência: “o valor ou o ‘efeito’ da transcendentalidade se liga necessariamente à possibilidade da escrita e da ‘morte’ assim analisadas” (DERRIDA, 1991, p. 357).

Antes de rever o poema “Para ficar”, observemos “Os perigos”, de 1911, modelo da temática histórica da poesia de Kaváfis. Modelar o texto também é, na arte kavafiana de misturar ironicamente elementos culturais do compósito e, por vezes, contraditório quadro que sintetizamos, do qual foi um herdeiro obstinado. Citemos o autor, agora em versão de José Paulo Paes:

Disse Mirtias (estudante sírio
em Alexandria, no reinado
de augusto Constâncio e augusto Constantino,
e que era meio cristão, meio gentio):
“Fortalecido com teoria e com estudo,
eu não hei de temer minhas paixões como um covarde.
Meu corpo entregarei todo ao prazer,
à voluptuosidade entressonhada,
aos desejos eróticos mais audaciosos,
aos ímpetos lascivos do meu sangue, sem
temor algum, porque quando eu quiser
— e vontade terei porque, alentado
como hei de estar pelo estudo e a teoria —,
reencontrarei no momento preciso
meu espírito ascético de outrora.”
(KAVÁFIS, 1982, p. 116)

Ora, a iterablidade também atua aqui. Pouco importa ser Mirtias um dos muitos personagens inventados por Kaváfis, tanto quanto não tem grande relevância haverem Constâncio e Constantino vivido, de fato, numa época de confronto político-religioso entre paganismo e cristianismo, no Império Bizantino (cf. CAVAFIS, 1997, p. 228, n. 26). Aqui, a iterabilidade, implicando repetição e diferença, atua em mais de um nível.

Em primeiro lugar, Mirtias não existiu, mas deve ser visto como exemplo étnico possível de homem ambíguo (meio cristão meio pagão), existindo numa época de confronto que induzia a tal ambigüidade: a ficção e a história se acham bastante entrelaçadas, pois a primeira reitera potencialidades da segunda, todavia sem a esta reduzir-se.

Já Constâncio e Constantino, como referências deveras históricas, são arrancados dos seus contextos de origem e enxertados no contexto específico do poema, marcado pela ironia típica da arte de Kafávis. Igualmente iterável é a questão da homossexualidade, sobretudo da maneira como é tratada na poesia kavafiana: se a “voluptuosidade entressonhada” e os “ímpetos lascivos do meu sangue” ainda podiam caracterizar um desejo heterossexual, nenhuma dúvida resta que a passagem “desejos eróticos mais audaciosos”, conjugada ao título “Os perigos”, remete ao homossexualismo, pois ambos, título e passagem, nos recordam a mistura de receio e fervor que — tão mais tentadora porque proibida — veio a caracterizar uma prática do erotismo empurrada para as margens da sociedade, ao longo da história. E essa remissão atinge todos os versos de “Os perigos”, indicando qual a espécie de libido ali se manifesta.

Retornando a “Para ficar”, recordemos o seu desfecho reiterador: “Prazer da carne, / por entre a roupa; / o rápido surgir da carne — e a imagem dela / cruzou vinte e seis anos, até vir / a estes versos, para ficar”. É conhecida a tendência kavafiana de quase sempre apresentar as composições mais declaradamente eróticas, nos termos de Jorge de Sena, como “rememorações do passado” (in CAVAFY, 1986, p. 173). Isto envolve tanto os versos que produzem efeitos autobiográficos, quanto os de motivo histórico, conforme Sena observou:

Em muitos deles […], é expressamente declarada a idade dos protagonistas, ou o título dos poemas nos recorda exacta ou aproximadamente o ano a que o texto se reporta — é como que um reflexo do espírito “histórico” no cuidado autobiográfico, ou um desejo equivalente de situar, para sempre, mas com rigorosa precisão, no tempo, os prazeres ou as angústias que o poeta recorda, ou as pessoas que evoca (in CAVAFY, 1986, p. 174).

Se “Para ficar” não nos diz a “idade dos protagonistas”, nem assim deixa de conter uma indicação temporal. Sabemos que a “imagem” do encontro amoroso na taberna “cruzou vinte e seis anos”, até chegar aos versos, que, metalingüisticamente, o autor considera destinados a permanecer. Uma imagem é também um signo (um ícone, na terminologia de Charles Sanders Peirce). Valendo-nos do predicado de permanência que, atribuído ao signo escrito, Derrida generaliza aos demais e, ainda, à própria experiência, diríamos que, na cena de “Para ficar”, esse ícone erótico (ou “ero-ícone”) se apresenta separado do seu suposto contexto existencial e reinscrito no contexto do poema.

O passado é — digamos — reposto num presente que, como tal, não pode fechar-se em si, remetendo ao futuro, a novas reinscrições sígnicas, como: a dos leitores dos versos no grego do original, a da tradução de Jorge de Sena, a da nossa discussão de tudo isto agora, mais de oitenta anos após a redação do poema, a de quem acompanhe o nosso discurso, a de outros que debatam depois, por escrito ou não, sobre o poema em causa, e assim por diante, num processo semiótico em tese aberto ao infinito, na sua sucessão de interpretantes.

Em “Para ficar”, vemos haver, portanto, uma espécie de circulação dos seus signos entre passado, presente e futuro, o que é o mesmo que entender que nenhuma presença tem nas suas estrofes valor absoluto. A força de ruptura do espaçamento atua aqui, como se passa em outras composições de Kaváfis. Ela impulsiona os versos metalingüísticos de “Coisa rara”, que citamos agora, em tradução de José Paulo Paes. Kaváfis apresenta-nos um velho poeta, que, nesta composição de 1913, bem pode ser um auto-retrato, que ele desejou guardássemos de si:

É um velho ancião. Decrépito, curvado,
vencido pelos anos e os excessos,
ele atravessa a passo lento o beco.
Enquanto volta à casa, que lhe oculta
a ruína e a velhice, ele medita
no quinhão reservado ainda aos jovens.

Agora adolescentes lêem-lhe os versos.
Seus olhos vivos recriam-lhe as visões,
fremem suas mentes sãs, voluptuosas,
— e suas carnes firmes, bem talhadas —
com a beleza por ele revelada.
(KAVÁFIS, 1982, p. 124)

Não se nota, aqui, apenas a transferência das visões do seu contexto icônico para o contexto verbal da poesia, como ocorreu com a imagem da carne em “Para ficar”. O que neste poema restara implícito — a juventude — é explicitado em “Coisa rara”. Sendo igualmente uma obsessão da arte erótica heterossexual, a preocupação com a juventude, revelada por uma pessoa mais velha, é um dos temas insistentes na poesia homoerótica. O leitor desta pode, com facilidade, encontrar, em Kaváfis como em mais autores, o libidinoso olhar do indivíduo maduro ou já ancião dirigido ao efebo, algo típico da representação amorosa grega, iconográfica e lingüisticamente falando. Iteração de um topos que se percebe em baixos-relevos, pinturas, versos e, ainda, nas cenas transcorridas em ruas, tabernas e cafés, tudo isso, aliás, tematizado em versos do poeta da Alexandria.

Discutamos, entretanto, um dado do domínio da sexualidade tratado por Kaváfis, com o recurso a uma acepção lingüística talvez atual em demasia: o ficar dos mais (e até dos menos) jovens, uma prática erótica de relativa contemporaneidade, em termos significativos, no que se refere ao número dos seus adeptos.

4. Os “homos” como precursores?

Passemos, agora, ao encadeamento argumentativo mais arriscado da nossa análise, pois ele será deliberadamente anacrônico, projetando a contemporaneidade no passado.

A primeira acepção de ficar com que lidamos foi a de permanência, o “valor de transcendentalidade” dos predicados da escrita estabelecidos por Derrida. Transcendentalidade que, pressupondo a morte do sujeito que escreve, paradoxalmente lhe permite uma sobrevida, ainda que relativa: algo que, não sendo “eterno”, vem podendo durar décadas ou — por vezes atravessando eras e culturas — séculos.

O outro sentido do verbo que nos interessa é, de certo modo, oposto ao enunciado acima. Sem que o tenhamos pesquisado muito em mais idiomas, destaquemos um significado do termo no português do Brasil. Entre nós, ficar também é: “Namorar sem compromisso, durante um curto espaço de tempo (às vezes, por uma noite)” (Dicionário eletrônico novo Aurélio século XXI, versão 3.0). Ao que parece, tal acepção é mesmo recente, em matéria de prática amorosa, situada na era burguesa, envolvendo um número relevante de pessoas, não apenas a “boemia” que veio vivendo nas suas margens mais ou menos consentidas.

Valendo-nos da nova carga semântica do verbo no nosso português, digamos que os personagens da poesia kavafiana, à sua maneira, “ficam”, experimentam encontros eróticos fugazes. Todavia, uma distinção precisa ser feita aqui. Hoje, os casais heterossexuais vão “ficando”, graças à grande flexibilidade nos costumes, que possibilita a iniciação sexual em idade cada vez mais menor, algo que, prolongando-se hedonisticamente pela vida afora, se combina não poucas vezes à reconhecida dificuldade de os indivíduos estabelecerem vínculos afetivos duradouros, em tempos pós-modernos. Já o que estamos considerando, com deliberado anacronismo, o “ficar homoerótico” em Kaváfis obedece a motivação diversa, a outra lógica, a qual não é difícil esclarecer, como o fez José Paulo Paes:

Condenado à clandestinidade pela coação dos preconceitos sexuais, o “prazer (…) tão ilegal” a que faz referência o poema “Na rua” só pode ser satisfeito, a maioria das vezes, de modo tanto mais furtivo quanto fugaz. Da fugacidade dos amores que a inspiraram dá testemunho a lírica de Kaváfis não apenas no numeroso elenco de amantes a povoá-la como sobretudo na ausência quase total daqueles vínculos sentimentais, mais profundos e duradouros, que costumam complementar e prolongar a momentânea atração física. São, via de regra, amores de ocasião, surgidos de um encontro de rua e satisfeitos, à pressa e às escondidas, nalgum quarto de aluguel, “vulgar e miserável” como o do poema “Uma noite”. (In: KAVÁFIS, 1982, p. 61)

Claro que tanto o “ficar homoerótico” quanto o “heterossexual” são manifestações da iterabilidade, apesar de obedecerem a lógicas diversas. Como é óbvio, se as pessoas “transam” com muitos parceiros e, ao mesmo tempo, poucas vezes com este ou aquele em particular, isto se denuncia como um dado reiterável, um fato social na acepção mais forte do adjetivo, na nossa cultura. Nela, hoje, ao menos em um aspecto, nota-se uma curiosa, mas compreensível, inversão de papéis, se confrontarmos “heteros” e “homos”: ao passo que parcela considerável dos primeiros vem “ficando” como há tempos os segundos o fazem, estes têm reinvindicado a chamada união civil, vulgarmente referida como “casamento homossexual”, direito que, na prática, se obtido, representará um avanço considerável nas relações humanas. Aliás, a propósito, lembremos que, freqüentando a casa dos Lacan, disse-lhes Michel Foucault em certa ocasião: “Não haverá civilização enquanto o casamento entre homens não for admitido” (cf. ERIBON, 1990, p. 158).

Para citar Kaváfis mais uma vez, findemos com os versos de “A origem”. Neles, o “artista” de novo entrelaça, metalingüisticamente, a fugacidade com a qual o seu “prazer proibido” se vê obrigado a manifestar-se e a necessidade de fazê-lo ecoar:

O prazer proibido consumou-se.
Eles se erguem do leito e, sem falar-se,
vestem-se à pressa.
Saem da casa em separado, às escondidas; vão-se
um tanto inquietos pela rua, como se
temessem que algo neles revelasse
em que espécie de leito possuíram-se.

Mas, do artista, como a vida se enriquece!
Amanhã, no outro dia, anos depois, serão escritos
os versos fortes que aqui têm sua origem.
(KAVÁFIS, 1882, p. 156)

Bibliografia

CAVAFY, Constatin. 90 e mais quatro poemas. Vers. port., pref., coment. e notas de Jorge de Sena. Coimbra: Centelha, 1986.

DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Trad. Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. Campinas, SP: Papirus, 1991.

DICIONÁRIO eletrônico novo Aurélio século XXI: versão 3.0. São Paulo / Rio de Janeiro: Lexicon/Nova Fronteira, [s.d.]. DOVER, Kenneth James. A homossexualidade na Grécia antiga. Trad. Luís S. Krausz. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.

ERIBON, Didier. Michel Foucault: 1926-1984. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Cia. Das Letras, 1990.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. 9. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001.

___. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1985. KAVAFIS, Konstandinos. 25 poemas. Ed. bilíngüe. Trad. do grego e n. por Joaquim Manoel Magalhães e Nikos Pratsínis. [S.l.]: Cotovia, 1988.

___. Poemas e prosas. Ed. bilíngüe. Trad. do grego e n. por Joaquim Manoel Magalhães e Nikos Pratsínis. Lisboa: Relógio d’água, 1994.

KAVÁFIS, Konstatinos. Poemas. Sel., est. crítico, n. e trad. direta do grego por José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

SENA, Jorge de. Comentário histórico à tábua biográfica, e situação histórico-literária na poesia ocidental. In: CAVAFY, Constatin. 90 e mais quatro poemas. Vers. port., pref., coment. e notas de Jorge de Sena. Coimbra: Centelha, 1986, p. 149-166.

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[1] Texto lido, em 03/08/2002, no I Congresso da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH), na Universidade Federal do Espírito Santo.

[2] Para a complexa questão da pederastia ou, se se quiser, homossexualidade grega, ver DOVER (1994); para uma análise desta que inclua os primeiros séculos da nossa era, ver FOUCAULT (1985 e 2001).

[3] Itere-se aqui parte da nossa nota 1: I Congresso da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH), transcorrido de 30/07 a 03/08/2002, na Universidade Federal do Espírito Santo.

[publicado originalmente no site em fevereiro de 2004]

Lino Machado é poeta e professor universitário. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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