SEREIAS NA BEIRA-MAR
Duas mulheres
dois golfinhos
debruçam-se frente a frente
na frente da repartição.
Tecem instante d’água
na arquitetura moderna.
Seus longos cabelos são mantos.
Faces pétreas.
Faces de quê?
Com os olhos,
alisá-las com os olhos.
Para moldá-las
o ar nelas resvala.
Luz lhes salpica sombras-texturas.
Inda agora mesmo as vi paradas e hirtas
encimando escura plataforma.
Serão de mármore, de massa, de que matéria
tais decoradoras de jardim burocrata?
De concreto, decerto armadas de concreto,
revestidas de branca pátina…
Que importa sua natureza se podemos amá-las?
À sua volta vê-se espelho d’água
retangularmente escavado.
Azul pastilhando vidrotil?
Água revestida de azulejo?
Se os delfins jogam esguichos oblíquos
de suas bocas sensuais
o mar ali perto tudo pode.
Devemos nomeá-las — tal manha, grã beleza —
a nova Fonte Grande da cidade.
Suas sinuosidades
combinam com as dos peixes.
Serão mães deles?
Serão sereias?
Sereias serão.
Serão sereias?
Sereias serão.
Serão sereias? (ritmo de congo)
Sereias serão.
Serão sereias?
Sereias serão.
Serão sereias?
Sereias serão.
Serão sereias?
Sereias serão.
Serão sereias?
Sereias serão. (etc)
Serão sereias?
Sereias sei não.
Sirenas de aberto canto?
Nereidas na Beira-mar?
Nos colos seus infantes jorram finos arrojos
— aquático brilho pra cidade.
São de Bruno Giorgi estas delícias?
São de que artista estas donzelas?
Cheschiatti? Celso Antônio?
São únicas, originais, cópias cambiáveis
pousadas na sede de departamento nacional?
Sendo
de ignoto artífice,
produzidas em série,
iguais e vis-à-vis,
perturbadas com alto muro e grade,
sem luz noturna,
manchadas de ferrugem,
requerendo desvelos,
necessitando restauração
não lhes façam nenhuma sacanagem —
são servidoras quase aposentadas,
estátuas das estradas de rodagem.
CANTO DE PRAIA
I
Melo Bico
tropeça nas ruas.
Seus dois filhos,
tropeça nas ruas.
Cesta — garrafa — copo — pente — bebida.
Melo enrugada.
Bico bebida.
Ah, cabeça gris!
Ah, cachaça bebida!
Ah, pente alisando cabelos lisos!
Cesta — garrafa — copo — pente — bebida.
Pente alisando cabelos compridos,
pente alisando cabeça grisalha.
Ah, Melo Bico! A que tropeça nas ruas!
Cesta — garrafa — copo — pente — bebida.
Tropeça nas ruas,
voz rouca fala,
voz rouca xinga,
rouca grita, xinga, fala, tropeça,
tropeça nas ruas.
Cesta — garrafa — copo — pente — bebida.
Tropeça nas ruas,
bebe tanto Melo Bico bebe,
bebe muito,
muito mais,
muito mais mesmo,
tropeça nas ruas,
bebe mais,
tropeça nas ruas
e pára.
Da cesta tira garrafa,
da cesta tira copo,
bebe cachaça,
tropeça nas ruas,
da cesta tira o pente
e se penteia.
Bebe e se penteia, bebe e se penteia,
bebe e se penteia
e mija em pé.
Bebe mais,
tropeça nas ruas,
fica eterna
— não eterna ali, não eterna aqui —
eterna para sempre.
V
Nascido em Itabuna 1910, 24 de junho;
casava-se Seu Zé Pretinho
em 1936, 18 de fevereiro,
na capela que havia perto do hospital infantil.
Casou também
com bar-esquina-venda de Santa Lúcia
— Aqui em frente
batelão descarregou tijolo pra minha casa.
— Jenipapina ou batida de acerola?
— Jenipapina, Seu Zé.
E coco, jaca, ovo de codorna.
Entregador de gás:
— Vera da Mocidade Independente,
lembra a Vera porta-estandarte? É minha mãe.
— Vê outra pura aí, Seu Zé!
O japonês fala de poesia japonesa.
1995, 16 de setembro,
bebemos passábado de manhã.
Escrevo em 1995, 7 de novembro.
Bar-esquina-venda melhor que instituto histórico.
VII
Pego o bonde andando.
Na rua passava boi
passava boiada
passava bode
passava bonde.
Passaram em trajeto de ida e volta
passaram
um milhão, duzentos e cinqüenta e nove mil,
seiscentos e dezessete vezes bondes,
bondes vezes passaram.
USINA BONDE SOM:
— ligo grande motor elétrico: vrum, vrum, vrum, vrum…
— acelero: vruuuuuuuuuuuuuuuuuummmmmmm…
— aperto pedal da buzina: plém, plém, plém, plém…
— aciono freios a ar: chiiip…, chiiiiiiiiiip…,
chiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii…
— curvo rodas de ferro nos trilhos: sssrrriiiiiiiiiiimmmmmm…
— aperto campainha para saltar: téim, téim…
— cobro passagem soando moedas: plic, plic, plic…
— registro passagens no mostrador: pleng, pleng, pleng…
— abaixo cortinas: vraaaaaaaaaaaaaammmmmmmm…
— subo cortinas: praaaaaaaaaaaaaaaa…
— viro encosto dos bancos: plá, plá, plá, plá, plá, plá…
USINA BONDE LUZ:
— Grande corpo escurece as outras estrelas.
— Todo iluminado passa devagar na noite preta.
— Luz do seu dentro desenha a quase manhã.
Ainda flutua a tudo alheio.
Passeia além de trilhos e dormentes.
E sacoleja. E incandesce.
E faz téim, téim.
Salto do bonde andando.
X
Lenço rodeando
o murundu de cabelo
“Maria Cachucha,
com quem dormes tu?”
Maria Cachucha
rosto engelhado,
sem cachos cuidados
no murundu da cabeça,
com quem dormes tu?
Vestido molambo,
velhos pés maltratados,
Maria Cachucha,
com quem vives,
comes e bebes,
com quem amas e fazes mistérios,
com quem sonhas tu?
“Eu durmo com um gato
chamado Racout.”
TRAGÉDIA PELO JORNAL
Pensem no pai de “Jardim Subúrbio”.
Matou a filha pequena
deixando armado o revólver
na mesinha de cabeceira.
E quatro meses depois,
com saudade da menina,
foi a ela se juntar
tomando forte veneno
e morreu no mesmo lugar
e deixou cartas fechadas
desculpando todo mundo.
Durante quatro meses
foi morrendo, foi morrendo,
sem vizinhos que acudissem,
sem mulher que prevenisse,
sem as contas que salvassem
o contador inseguro.
Dor imensa não sabia
como distribuir a partida:
Deve, haver ou pagamento?
Despesa, recebimento, saída?
Não soube classificar
a sua dor neste mundo:
não era viúvo, nem órfão
— tinha perdido a filha —
não soube dizer pra ela,
não soube dizer pra família,
qual era a dor que sentia
perdendo parte da vida.
E pra morrer por completo
perdeu sua vida toda,
perdeu sua inteira vida.
POEMA OITAVO
Ler poemas receio,
sempre mudam a vida.
A vida é pra ser mudada,
leio poemas.
Mas receio, me envergonho,
adio.
Por que conhecer o outro,
se antes não me conheço?
E tresleio, aos poucos,
de través,
atravessado em dúvidas.
Do vício me impregno
e releio.
Tão uns e outros mesmos poetas!
Tão vindos do caos ao tao!
Ou ao taos: este tal de tao é plural.
É o tal — tão pouco e tanto.
E leio os versos todos.
Versículos de grande livro
com título fácil: Uni-verso.
Versos, reversos,
anversos, versos,
tudo versado em verso,
tramados em livro só.
Outros e outros versos se reúnem.
Outros mais ainda se ajuntarão
ao único livro humano de poemas.
BLECAUTE
Em Alpinópolis, subestação de Furnas
na divisa Minas-São Paulo,
acionam chave seccionadora errada
e hidrelétricas se desligam
em c
a
s
c
a
t
a.
Em oito minutos caem automaticamente
oito usinas e estações.
Param às nove horas e dezoito minutos
Água Vermelha, Marimbondo,
São Simão, Jaguará, Nova Ponte.
Numa reação em cadeia escurecem
Emborcação e Cachoeira Dourada.
Às nove horas e vinte e seis minutos
apaga-se Itumbiara
e Brasília fica sem energia elétrica.
Senado no escuro.
No escuro metade de Minas,
parte de Tocantins,
todo Goiás,
muito do Mato Grosso.
Dissabores no Centro Oeste,
prejuízos no Sudeste.
Geradores nos hospitais,
elevadores com presos,
sinais de trânsito cegos,
transtornos pra tantos.
Tudo devido à manobra indevida
para manter circuito de sinalização.
Logo afetadas as usinas de
Água Vermelha em Indiaporã e
de Marimbondo em Icém, no território paulista.
Depois, as Centrais Elétricas de Minas Gerais.
Ah, Cemig! Não pudestes segurar funcionando
as hidrelétricas de São Simão em Santa Vitória,
Jaguará em Sacramento,
Nova Ponte no rio Araguari,
Emborcação no Cascalho Rico.
Blecaute em Cachoeira Dourada no rio Parnaíba!
Blecaute em Itumbiara no município de Tupaciguara!
Blecaute neste mundão de meu deus!
Tantos nomes indígenas.
Muitas invocações de santos.
Continuam em eletricidade lutas de índios e padres?
Engenheiro-chefe explica falha,
meio que desculpa o empregado
e perdoa a si mesmo.
Mecanismos refeitos —
energia retorna num estalo.
Bendito erro desvela,
revela,
acende uma vela
pra frágil tecnologia moderna.
SARABANDA
Não nos preocupemos.
Trilhos na estrada de ferro:
trechos de infinitos raios.
Não nos preocupemos.
Linhas-raios nos traspassam:
irradiamos ligações materiais ao universo.
Na solidão não somos sós.
Na morte pertencemos ao mundo.
Tudo se isola — e indiretamente se une.
E o que se escreveu na capa
de velha pasta no gasto arquivo:
“Eu, Fulano de Tal, ficarei aqui para sempre.”
Não ficou. Ficou o gesto.
A lembrança da pasta eliminada.
Ficou esta citação. Ficou isto aqui.
Isto aqui também fica — drenct, flinq, pluc,
fraammmmmmmmmmmmmmmmmmmmm
traz, traz tudo, trás-os-montes, etc e traz al…………..
A união existe.
Existe a completude, existe.
Criamos o desconhecido.
Outros seres tudo conhecem:
inquietude dos pássaros,
instinto dos felinos se bastando.
Desconhecemos o inútil.
Criamos o conhecido
e o universo comum nos lambe.
Não o ignoramos — fazemos versos
dos trilhos nunca vistos da São Paulo Railway,
já que “rail” lembra “raio”, pois é.
Alma — fácil de ressuscitar, e o corpo?
Poesia bruta — fácil de esquecer, e a lapidação?
Somos todos poetas sem registros.
Cheiro de bolinho de bacalhau
vindo de um bar no outro lado da rua.
Mas não estamos no dedão de um gigante.
Poetas sentem física?
Físicos descobrem poemas?
Mas nosso dedão não abriga universos.
Infinito espaço: universo desaba sobre si mesmo.
Tempo sem fim: momentos criam o universo.
E sempre podemos pensar o impensável,
como se o Nada nunca tivesse existido,
como se o Todo sempre estivesse ausente.
Como se o Todo não fizesse um só com o Nada.
Como se o Nada fizesse um só com o Todo.
E fazem.
Fernando Achiamé nasceu em Colatina, ES, em 22/02/1950 e fixou-se em Vitória a partir de 1955. Formado em história pela Universidade Federal do Espírito Santo e em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy II (Pela Aliança Francesa do Brasil). Especialista em arquivos pela Ufes. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)