O DOM DO AMOR
O amor tem o dom
de arrancar porteiras
derrubar barreiras
ampliar o som
O amor tem o dom
de assaltar trincheiras
hastear bandeiras
implantar o bom
O amor tem o dom
de quebrar geleiras
atear fogueiras
alterar o tom
O amor tem o dom
de anular fronteiras
rebrotar palmeiras
no Armagedon!
ILHA
Há um rumor de gaivotas se esgarçando pelas altas estradas da tarde.
O mar alterna vagas ondulações de azul com espasmos de espuma branca.
Vez ou outra faíscam peixes-relâmpagos em vôos apassarados.
Acenos do sol cadente acendem, na praia deserta, um claro colar de calor.
Talvez distante daqui exista uma cidade onde multidões incendeiem-se em guerras banais.
Mas isso, se há,
está, agora,
a milhas de nós
que estamos sós
nesta ilha
-sem terra, nem mar-
onde os nossos caminhos
acharam de se encontrar.
BANHO E FANTASIA
A água, se desliza por teu corpo,
inventa ondas, angras, enseadas
ou se faz rio, doce, sinuoso
por selvas, serras, vales, esplanadas;
sobre a geografia do teu corpo
chove o chuveiro público água farta
inundando o país misterioso
que observo com olhos de pirata;
nasce o desejo na tarde em Bicanga,
brinca a brisa em tua pele molhada.
Eu alço vôo. A paisagem canta!
Registro a fantasia que não ouso:
navegar pela líquida estrada
da água que desliza por teu corpo!
EUGÉNIA
O palco é um mar de percalços
de sobressaltos
de contratempos
(lugar de tormentas
e tormentos)
O corpo é o porto
que as palavras
desnorteadas
abarca
(não sem embate
não sem vergasta)
A mão toma a canção
e acaricia
O braço é barco
sobre a melodia
O ombro é desassombro
e poesia
(a voz vem sobre nós
em flor e fúria):
Eugénia:
a mulher no melhor
da sua parte
parindo pérolas
no tear da arte.
MARIA BONITA
Há um lampejo de fuzil no gume do teu olhar. Chapiscam faíscas de relâmpagos desamparados na meia-luz do teu sorriso. Teus dentes prendem lâminas oxítonas. Teus dedos, em riste, riscam o rumo da trilha.
O pó do sol do sertão tinge o fogo dos teus pelos. Teus pés bailam sobre pedras como se o chão fosse azul. Tua voz sopra sussurros que silenciam estampidos. Tua pele é quase noite quando amanhece o desejo.
Exibes um beija-flor sobre a pétala do púbis. Os seios trazes pequenos, adolescentes, frutais. Nos teus cabelos me abrigo dentro da noite sem lua.
Tuas mãos garimpam mel na aridez das minhas pernas. Tua língua soletra estrelas na minha pele encardida. Tua boca me convoca ao sumidouro do gozo.
Vocativos remoídos arfam no redemoinho.
A noite entoa delírios pelos céus do meu país!
SERÁ O AMOR?
Será que é o amor que sopra esse vento rendado de primavera sobre o incêndio da tarde de dezembro?
Será que é o amor que acende a roseira-brava e espalha as suas flores pelas janelas desatentas do domingo?
Será que é o amor que embaralha as trilhas das andorinhas e determina esse roçar rasante de asas e esses trinados de prazer?
Quem estará conduzindo esses urubus, esparsos pelo espaço, rumo ao cume do olhar?
Quem arranja o contraponto estridente do bem-te-vi sobre o colchão confuso das notinhas dos pardais?
Quem invade a noite do peito e a madrugada do olhar com esses grandes archotes silenciosos?
Será que é o amor que anuncia, na aurora do mar, na alvorada do monte, a chegada do novo dia?
Será que é o amor que alça o sol sobre a barra tingindo as águas de azul?
E este olhar insaciável? E esta tormenta no peito? E esta sede de luz?
Será que é coisa do amor?
CANTILENA DE UM CORAÇÃO PARTIDO
I
duas vezes amo a um só tempo
numa equação ingrata
e descabida
se não sou dois
se sou nenhum, se nada
não devo, então, amar
assim às carradas
não há dois corações
num mesmo peito
dois sentimentos iguais
não coabitam
é difícil alimentar o antagonismo
sem por à mesa
o cálice do cinismo
II
Ambíguo –bígamo-
rodo aturdido
no carrossel do tempo em desvario:
o dia não se repete no calendário
nem pode a hora
se duplicar
num mesmo horário
no atropelo desse tropel
tropeço e tombo
caio, isso sim,
num desconsolo esconso:
o coração me diz que está cansado
desse exercício de amor
demasiado
III
não há dois corações
penso e repito
e o coração não se reparte
sem lesão
meu coração se parte dolorido
e grunhe gravemente
o seu gemido
grave é a voz de um coração
feito em pedaços
no vão esforço
de se fazer de dois
só eu o ouço roufenho, combalido
na cantilena
de um coração partido
IV
partido estou, também,
no centro
dessa conjunção
bifurcam-se em mim
o rumo das estradas
estou cravado em cruz
e sou a encruzilhada
doi-me o peito
por amar em dobro
dobro-me ao peso
deste grão amor
transito arrastado, com dificuldade
amando muito mais
do que permite a idade
V
é de amor que trato
nestes versos trôpegos
que é amor que trago
muito, em profusão
esse fruto raro e tão saboroso
deu de brotar em penca
no meu peito idoso
é de amor que trato
neste poema torto
que de amor talvez
eu venha morrer.
Como suportar um amor binário
num velho coração
de meio centenário?
PEDRA
Eu vi a pedra chorar, mano velho.
Vi a dor
brandir um grito grave
no duro desespero
do seu olhar estático.
Vi uma linha de sangue fina
escrever
uma história cruel
na ferida
do seu flanco mutilado.
Eu vi a lágrima da pedra deslizar,
num clamor estrondoso,
pelas bordas
do seu grande nariz desolado.
Vi uma magra relva
de cabelos ralos
se agarrando
empedernidos
aos resíduos
da sua cabeça fendida.
Sim, a pedra chorava:
sua fronte declinada
esculpia,
sobre o suporte furta-cor do céu,
um gesto de tristeza.
No vão do seu olho vazado
ecoava uma litania
gritada
por um coral lúgubre
no estertor do poente.
Eu não pensava, mano, que veria
um dia
uma pedra chorar.
Menino ainda, ouvi
a mata em pânico
carpir seus troncos decapitados
encarapitados
em carretas acorrentadas
que levavam pra além-mar
uma floresta atlântica.
Vi rios agonizarem
choramingando
por leitos desviados.
Vi córregos
magros e sujos
se arrastando, minguados
feito esgotos ignotos,
pelos desvãos das cidades.
Vi fontes fartas e férteis
sucumbirem sedentas.
Vi onças-pintadas
perdidas,
errando, cegas de sol,
por desertos de solidão.
Vi macacos e macucos
macambúzios, soturnos, fugidios.
Ouvi o silêncio pungente
da terra nua e
o lamento do vento
a esculpir na areia o seu cantochão.
Vi um bando cigano
de meninos famintos
tentando achar,
com olhos baços
com unhas crassas,
uma fresta de alegria
uma nesga de pão
na floresta de vidro e cimento
que veste, agreste,
a cidade árida.
Eu vi, mano, o homem chorar.
Escutei o grito universal
do gênero.
Provei, com o escasso paladar
do olhar,
a lágrima da guerra e da inanição.
Cultivei, na fechada floresta
do meu território animal,
a dor fundamental
da condição humana.
Agora, eu vejo a pedra chorar
e choro uma dor
que eu não sei
se é a dor da pedra.
Mas choro solidário,
no ventre da tarde
no dorso do vento,
um pranto duro e rude
que brota de fundas escarpas
além da carne e da alma.
Choro, mano, agora,
ao pé desta pedra depredada,
lágrimas densas, ardentes, escuras
lágrimas que fendem
a terra gasta
lágrimas de magma
que se misturam
ao pranto da pedra
e vazam das mãos da tarde
sobre os cabelos da noite.
Choramos, então, eu e a pedra,
essa dor comum
que é, também, a dor da água
a dor do pássaro
a dor da árvore solitária sobre a serra
a dor do vento
a dor do vale vazio
a dor da Terra.
DE IDADE
I
O tempo
tem falado comigo
a todo tempo:
ouço-o
no osso
na tessitura lassa
de um músculo
no ranger
da articulação
hirta
na fadiga
do fígado.
II
O tempo mastiga
minha dentição
cediça
(rumino o tempo
com os meus dentes
decadentes)
III
Do espelho
o tempo, tácito,
mira
meu olho pasmo.
IV
É o tempo
que exige este esforço
do pescoço
quando me torço
desengonçado
pra olhar pro passado.
V
A minha embriaguez
nunca me deixou
tombado
por certo é o tempo
que me entorta
assim pra um lado.
VI
Esta dobra
na derme
-este vinco
amarrotado-
é que me compele
a admitir
que o tempo tem passado.
VII
Alguma coisa tampa-me
o tímpano
reduzindo a estalo
qualquer estampido.
Fica o tempo
a zumbir
no meu ouvido.
VIII
O tempo
em algum momento
perderá o passo
num descompasso
do meu coração.
O recurso
da poesia
será vão.
IX
No travo
da minha garganta
um prelúdio de adeus
o tempo canta.
X
Não há tempo maior
do que este tempo
que escuto em mim:
todo o Tempo
se esgota
no meu fim.
MINÉRIO
Fique aí remexendo palavras, poeta.
A vida espera.
Amalgame-as
com a sua saliva
à seiva seca do papel;
torneie-as
até torná-las belas;
lapide-as
até vê-las límpidas;
alise-as
até que elas luzam:
lustre, com destreza, a sua lira.
Sem atropelos,
poeta.
A vida espera.
Se não espera, poeta,
a vida anda:
no seu balanço,
na sua dança,
sem descanso
a vida vai
faz peripécias
estripulias
depois expira,
vira mistério:
ficam a poesia
e o poeta
feitos minério.
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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)