DEDICATÓRIA (1966)
A leitura
de uma Odisséia
dedico
ao pobre Homero
cuja obra se discute
e cuja existência se ignora
tão mitologicamente cego
que é clássico da literatura mundial
sem o saber.
POEMA DE TRÊS DIAS (D.F., 1966)
28/8
Hoje a lua está cheia.
Gente morreu e nasceu.
Escuto música
e faço um trabalho sobre Roma.
O homem do posto ainda trabalha
esguichando água em um
carro americano.
O Relógio em cima de um
papel amarelecido
também trabalha.
Desligo o rádio e olho para uma
paisagem japonesa
que
parece tranqüila.
Hoje decididamente a lua está cheia.
29/8
O planalto no escuro.
Ao derramar um pouco de leite
agachado
escuta uma valsa candanga
num rádio vienense.
O riso não é mais que uma reação tímida
ou vulgar.
Passos apressados fogem do frio
do planalto ainda no escuro.
30/8
É preciso descrever o passado.
Passado que já é este poema
tentando ordenar o incerto.
Lá foi de um modo.
Aqui foi de outro.
Aqui já foi de outro — eterna análise.
Descrições rápidas carregadas corretas
indicam muita coisa ou nada.
Mas é preciso ficar
a descrever o passado?
SAUDADE PRESENTE (1968)
Um dia
e
o
outro
estanques…
estanques…
Uma hora
depois outra
curtas… curtas…
e a inspiração se indo
e o estudo se indo
e a vida se rindo
se rindo não — sorrindo
uma vida sorrindo —
adolescência
um passado chegando —
infância
a saudade sempre existe
quando criança —
saudade fetal
adolescente —
saudade infantil
adulto?
feto-infanto-juvenil
a vida sorrindo
sorrindo de boba.
CAMINHO (1970)
Vai o avião
sobre trilhos de ar
Barulho turbinoso
no sol da tarde refletido
SONO-HERODES
Falem baixo
pra não acordar
o amor aos outros
que dorme agora
em todos nós
Dormem os meus amigos
Dormem as minhas amigas
Dormem todos
Até o menino
arrastado pelo temporal
que foi dormir
para sempre
num bueiro
Que
sono-herodes
levou
o menino
à morte?
Falem baixo
para não despertar
todos nós
deste sono
em Vitória
março-Vitória
de mil novecentos
e setenta e sete
———
© 2004 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
———
Fernando Achiamé nasceu em Colatina, ES, em 22/02/1950 e fixou-se em Vitória a partir de 1955. Formado em história pela Universidade Federal do Espírito Santo e em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy II (Pela Aliança Francesa do Brasil). Especialista em arquivos pela Ufes. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)