Estes poemas foram extraídos do livro Eu conheci Rimbaud & Sete poemas para armar um possível Rimbaud (1989).
COLHEITA DO AMANHÃ
Sou poeta. Lançada ao meu rosto toda a merda
do mundo, nela busco a cerda
central, nó da vida, e dela faço esterco,
Sêmen das flores em que me perco.
E da ex-merda faço nascer uma flor sem afã,
Para a colheita, hoje, do dia de amanhã.
CHOROBLUES DO JUIZ
E na nudez reencontro a pureza
perdida, vez do canto à mesa
de parto de adolescentes alegres servidos como tristeza
nos banquetes do juiz carcereiro do destino alheio,
Seio do erro em juvenis seios
de cisnes petrificados junto à morada
da vida sem remédio, sem amor, sem rock e sem namoradas.
Servo que busca o graal numa idade média já terminada,
Sagro-o cavaleiro da confraria do medo com os títulos do nada:
Mumificação do oco, pré-vivo, defunto antecipado
pelo desejo de deter o original, o novo, o vindouro, o inesperado,
Com o cajado que o sustenta o sagro zero
e de brinquedo refaço Guernica de papel e lá o desterro.
Com fé no que vem porque se espera com descrença,
Porque de tanta descrença até da descrença descremos,
Cremos de novo e vamos querendo voar,
Pois pedras de cisnes podem ser atiradas ao ar
por algemas quebradas por estilhaços do século que finda a jusante
bem antes da velocidade da luz do levante.
Tamanha crença comove as esculturas
e dá a luz a milagres que andam pelas ruas
disfarçados em aéreos pedaços de muro
em forma de cisne noturno no mais-que-futuro,
Cisne pétreo que, arrebentando tijolos, torna-se furo,
Torna-se o que é nada e, nada sendo,
É mais do que nada no nascendo que é.
“É” do verbo “se tornará”,
Erro que acerta o erro no ar.
Pelo desejo e pela crença alados,
Voamos para o futuro que se afasta mais rápido do que a luz
que sois sóis e que sem saberem a doam a nós,
Vossas luas que somos,
Em vós de novo tomamos emprestados nossos sonhos.
Vinho chileno em mim,
E eu, que amo o sim,
Adolescendo, pois não,
E os sendo no meu coração.
OS ARGONAUTAS
Tatuagem feita de espuma
e em cinza carvão de alma bruna,
Observo o líquido aço
da água fluindo no espaço
entre meu corpo e a escuna
estelar, sol eólico movendo as velas íntegras e unas
onde uma santa ora ao diabo, anseio amargo do
distante do lar do amar. Go two
O.V.N.I.s a leste da ilha da lua
do ex-atol de biquíni, cruel e nua
como os adolescentes que amo no trabalho e no lazer,
Adolescentes que detestam Lennon e amor e paz e ser,
Adolescentes que fizeram da alienação consciência de ser.
Neles embarco feliz, solitário marinheiro
exposto ao barco, ao ágio e ao sujo banheiro,
E assim sendo, não durmo ali, e sim no estábulo.
Ao lado de deuses e de animais, bolo e burlo,
Crudelíssimo, as palavras secretas da bula: amor e paz.
Com elas dizimo nações
quando minhas boas intenções partem do cais.
Companheiro de adolescentes cruéis
em que não crescem limo nem grama por onde rolamos os pés,
Ao lado deles limpo o convés,
Tá limpo, mas ao lado e ao invés,
Esperança de fazê-los ver a minha vez,
Mas, em vez, sempre sou cego, que neles vejo luz, talvez,
E assim de novo viro cinzas de fênix e faleço
e morro e renasço a cada mil anos e, então, rejuvenesço.
BORN TO BE WILD
O último ato dos mortos
é feder, ultimato
que arde o nariz até que acordo
o lobo. E, tudo errado e de acordo,
O lobo sou vivo e fedo pois estou morto.
I – A Nau dos Loucos
Eis-Vos-me aqui. Me importo
de Vós não haverdes me alistado entre os mortos,
Entre os drogados, os prostituídos, os dementes,
Entre os marginais, os idiotas, os deficientes,
Entre os mendigos, entre as crianças e os velhos, entre os entre,
Entre a tripulação da nau dos loucos
iluminados ardendo. Pavio curto perdido, cera derretida, gritos roucos,
Velo-me por eles, vê-los velas no toco
me toca em mim que sou estepe e lobo.
Mas de tanto me importar, com eles viajo e trago-os em mim,
Sorvo-os no que sou e sou-os assim.
Remando nas galés, escravo como meus irmãos,
Grito, enfim satisfeito, o meu grito de não:
“Ó vaga conquistada fazendo no saber divino uma elipse
para estar na nau desde o gênese e até o apocalipse!”
II – Motomorfose da Nau
Renascido no asfalto, numa moto-nau dos loucos de basalto
com que atravesso o espaço, deus bêbado na garupa e bem alto,
Tiete diabólica nua entre nós nos divide em dois,
E eu, que tenho deus em mim, divido-me em disputa, pois,
E sou eu
e o infinito.
Puto comigo, deus me condena a ser bonito
e, querendo morrer e amando o perigo, a nunca morrerei, ao maldito
mando descer. Mas fica o dito pelo não dito
quando Ele diz: “nascestes para ser selvagem,
Encarone-me com a Satã na vossa viagem,
Que eu lubrifico as roupas e sujo na equipagem.”
Se Ele me maldiz, eu, correndo a sem, O acolho
em mim, colecionador de coisas ruins até o olho,
Amante do mal, santos demônios marginais
sou e os colho e ponho onde me desvirginais:
“Dou-Vos minha alma e Vós ma devolveis,
Praguejo pela moto-nau dos loucos, maldito seja o que eu sei!”
Correndo com deus e Satã, temo perder a loucura,
Mas Lúcifer no farol incendeia a estrada e não me atura
e diz que ela é minha razão mais pura:
Tranqiilizo-me, cabeça feita por aquela figura.
De todos os lados vem o vento,
Inimigo da moto e da nau sustento.
Pessoas asfixiadas pedem-nos para ajudar,
E nós lhes damos um louco de ar,
Digo: pessoas asfixiadas na estrada pedem socorro;
Nós paramos e lhes damos um esporro.
Morrendo de tédio de falta de ter o que desejar,
Desejamos o ar que demos, mas não peço a ninguém para ajudar,
Pois ninguém ajuda um lobo e meu mundo é feito
de ar e esporro em mim e fico satisfeito:
Não tenho nem deus nem Satã para me ajudar,
E assim, mendigo despossuído,
Tenho-os no que nunca os tive tidos:
Os canhões fálicos da moto explodem o espaço a ir e o já ido,
Sou todo presente e presenteio-me com o que não tenho tido.
III – Autocanibalismo
De tanto me querer marginal e maldito,
Sou-os e sorvo-os no que sou por eles comido
com ânsia de serem o que sou eles no que sou.
Vencedor e vencido, neles viajo, levo-os onde vou
e voo.
PAPO RÁPIDO
Pela manhã indecisa e inexistente, indeciso a ser deus,
Retomo, esquartejados, os mitos meus,
Cortados pelos primeiros raios do dia
que recém-se se lê no jornal noturno que o anuncia.
Sento, então, em um bar fechado
por ser ele noite ou dia ou dado,
Sabendo que sou o acaso
que me senta ao lado um caso
de amor, uma desconhecida mulher que casa,
Que casa é, com quem formalmente converso
rodeado de público puritano e de frívolos versos.
Ela: “prazer em conhecê-lo”,
E me dá beijos púbicos nos pentelhos.
Eu: “como vai a família?”
E dou tapinhas em sua virilha.
Ela: “esse calor me perturba”,
E, com nobre indiferença, me masturba.
Eu: “onde você nasceu, de onde veio?”,
E amistosamente chupo os seus seios.
Formais, nós e todos no bar passamos as horas
pudicamente, jogando conversa fora.
Depois de papear com ela por cinco minutos,
Despeço-me, farto de não ter assunto,
E quando ela, castamente, do meu pênis se ergue,
Penso: “se for puritana assim na cama, ela é um iceberg.”
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)