VERSINHOS
Quando encontro teu sorriso
na avenida central
eu me descentralizo
-dou pra dizer bom-dia aos cães-
e o dia se transforma em luz
Quando, domingo, te vejo na igreja
imaculada, vegetal
com teus olhos de deusa e tuas pernas bonitas
eu me infernizo
-começo a improvisar despudorados hinos
em teu louvor-
e a missa se transforma em profana prece.
Quando, escondidos, te beijo apressado
nervoso, calado, feliz
e minhas mãos acariciam teus seios púberes
eu me desorganizo
saio na noite a falar com o nada
depois fico na cama, insone,
-murmurando pequenos versos emocionados-
e a noite se transforma em poesia!
NATAL
Nascem seus seios
ardendo por trás do vestido branco
que o sol transpõe
(Senhor Deus-menino, da manjedoura, com seus olhinhos
entre vacas, carneiros e pastores,
nos observa).
Quando a estrela ilumina seus olhos
(Baltazar desce do seu camelo cansado
e oferece incenso)
eu emudeço.
Em torno de nós toda uma multidão.
Seus seios nascem,
suas pernas…
Senhor, dê-me uma palavra!
Inútil.
(José permanece calado ao lado de Maria.
Os reis se retiram.
Aos pés do menino ouro, incenso e mirra)
Talvez, se eu perguntasse pra ela o que é mirra…
Não.
Permaneço calado diante da virgem
imaculada e bela
(os pastores voltam ao campo
entre vacas e carneiros)
Ela passa por mim e sorri.
Eu emudeço.
Seus seios nascem,
suas pernas…
me perdoa, Senhor!
OUÇO PASSOS DENTRO DA NOITE
Ouço passos dentro da noite.
Mais que passos, ouço sussurros!
Vêm de longe, se aproximando,
se aproximando, se aproximando…
De quem serão os passos dentro da noite?
Será a prostituta vadia,
a puta de todos, rondando-me a insônia?
Quem sabe os mortos inquietos
passeando nostálgicos por estas ruas?
Talvez, apenas, os garis
de vassouras às costas
que, depois de amontoar o lixo de todos,
procuram descanso.
Por que não o ladrão
que depois de uma noite infrutífera
volta pra casa, murmurando coisas pra lua?
Ou será Deus?
Ou será o Diabo?
Saio pra ver:
ninguém, nenhum som,
apenas as ruas vazias
e o silêncio estirado sobre os paralelepípedos.
De quem serão os passos dentro da noite?!?
EM FAVOR DO MORIBUNDO
Diante da morte só há a morte,
é inútil que se chore
qualquer palavra que se diga é inútil,
a morte suplanta.
Não vá dizer consolos ao que morre
que é desnecessário.
Por mais íntimo que você seja
há neste momento uma distância imensurável:
neste momento você é a vida
e diante dele a morte reina absoluta
e tudo que você disser é vida
e tudo que você chorar é vida.
Afaste-se do que morre,
deixe que ele se entregue a sua própria morte
pois só ele pressente o peso da terra
sobre os olhos.
A HISTÓRIA
1
A História não se passa
em outro lugar
senão aqui
em outro tempo
senão agora
a hora
não dilata
para aguardar a revisão
tão somente passa
e a História se define.
2
Com quantas estórias
se faz a história?
Aqui
agora
vale perguntar.
3
Quando a História vier
com seu passo exato
se nutrir do nosso tempo
e de cada mão
inquirir o trabalho
e de cada idéia
de cada ideal
a verdade
quantos nomes sobrarão?
Vale agora perguntar
Aqui
Já!
4
Porque a História
não é outra senão esta:
avessa
á omissão;
5
Porque a História
coloca cada homem em seu lugar
reduz (ou amplia) cada homem
ao seu próprio tamanho
e não entroniza
(ou canoniza)
quem se veste de rei
(ou santo)
retira o manto
e vasculha a alma
os atos.
6
Visto que a História
sabe descobrir fatos
que não foram escritos
e casos
que não foram contados,
a verdade,
amordaçada no momento,
se fará ouvir nitidamente
pela História a fora
a dentro.
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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)